28 fevereiro 2008


indivividualizar a má consciência

individualizar a consciência e fazer com que o indivíduo enxergue-se como anormal e se culpe por sua anormalidade;
o anormal consiste em todo aquele que foge à regra, que escapa ao modelo;
a anormalidade baliza os processos sociais de constituição de subjetividades/identidades;
toda situação assediada pela diferença deve ser severamente vigiada [o que significa vigiada inclusive de dentro]: a criança, o pobre, o iniciante, o adolescente etc;
a culpa opera essa internalização da vigília: a criança, o desempregado, a mulher [assediada ou estuprada], o transgressor;
assim é que se transforma a vítima em culpado;

assim opera a violência moral que oprime os indivíduos em direção à normalidade;
o que varia é a intensidade, mas a violência é a mesma;
dissemina-se na sociedade;
o preço da ordem social: a ordem moral e seus modelos;
o sistema da identidade: nosso regime de produção de subjetividade;

atacar para defender
não se coloca em questão, em momento algum, os valores e o regime de valoração da sociedade;
desde o juiz até seus familiares tudo funcionará no sentido de oprimir o indivíduo, de voltá-lo contra si próprio;
não há personagem na sociedade para evidenciar o caráter social do crime, para operar alguma relativização nos valores da sociedade;
todos insistem no uníssono monótono da má consciência;
vale a pena
subjetivação e o crime social
o cinismo dos policiais militares volta-se para sua auto-afirmação;
disseram-me hoje: não se esqueça que você está num presídio;

em minha primeira visita a diretora disse que você não notaria que estava trabalhando com presos, que logo fazemos amizade e esquecemos, mas que não se pode confiar nunca num preso sob hipótese alguma;

o que me chama a atenção, agora posso notar, é esse processo de individualização do crime, do ato de transgressão;
essa supressão da dimensão social da delinqüência consiste num instrumento tanto de violência psicológica para opressão desses sujeitos (que devem se tornar anulados socialmente), como da indústria da delinqüência, que visa mover essa máquina social (analisada por foucault);
inclusive, é isso que se evidencia na produção social da delinqüência;

hoje, me chamou a atenção a diferença que a diretora fez;
ela disse que era tranqüilo de trabalhar com aqueles que tinham cometido homicídio, pois os noiados só queriam uma chance para sair da cela;

fui até o pavilhão com uma funcionária;
ao chegarmos lá notei que os presos a solicitavam para fazer diversos pedidos;
quando saímos perguntei-lhe sobre a sua função que ela disse ser estritamente administrativa;
achei estranho por eles se referirem a ela e ela atendê-los como alguém que tivesse uma função social;

outro funcionário estava me sondando, perguntando sobre minha profissão;
ficamos conversando até entrarmos no tema da psicologia dos detentos;
dizia que, no convívio com aqueles que trabalhavam na limpeza, torna-se imperceptível o fato de que eles se diferenciam de nós;
dizia que o comportamento deles é muito bom e que você percebe que eles se arrependeram do que fizeram;
se arrependeram...
achei intrigante essa expressão que marca o caráter individualizante atribuído ao ato;
um ato cujo valor tem um grande peso social;
seja em sua execução como em seu processo de julgamento, esse ato se reveste de um caráter social evidente;
tratá-lo como um fato estritamente pessoal, numa perspectiva psicológica individualista, revestida de noções típicas do campo semântico do misticismo e da religião, consiste num ato de violência;

a dimensão social do crime pode ser estudada como contraponto dos processos de subjetivação típicos do regime penitenciário;

a construção social do sujeito [e, no caso, do detento] se evidencia nesses processos de subjetivação voltados a constituição de um indivíduo como um todo, uma mônada;

25 fevereiro 2008

remissão de pena devir revolucionário (3)
se a subjetividade é o campo (ou plano de imanência) que nos restou para a resistência revolucionária é aqui que elaboraremos nossas estratégias;
não consigo pensar que esse campo pertença mais à antropologia ou à psicologia que à filosofia ou qualquer outra ciência, mesmo mais estranha aos temas;
acredito que o intempestivo possui não os olhares definidos nas homogeneidades das abordagens disciplinares ou científicas, mas que são passíveis de abordagens originais que constituirão por outro lado e simultaneamente novas formas de subjetivação;
não se trata de partir de procedimentos para definir problemas na realidade;
isso equivale a formar-se para o mercado de trabalho, à vida autômato definida pelo trabalho, pelo capital;
o humano e o sucateamento da vida em geral urge como plano de imanência para novas experiências;

não se trata portanto de obedecer aos velhos procedimentos disciplinares ou científicos, baseados na relação sujeito-objeto;
não se trata muito menos de novas teorias psicológicas visando renovar a ciência e sua política;

trata-se de operar com uma nova imagem da expressão ciência política, em que esta deixa de se constituir como espaço técnico da teoria política, para diluir-se na vida das práticas menores ou micro, para constituir-se como processo de subjetivação, forma de assumir-se como criador (agente produtor) de conhecimento em socialidades em plena elaboração/construção;
trata-se de reconhecer e assumir, como campo de ação e resistência, os processos de padronização subjetiva disfarçados seja em consumo exacerbado de subjetividades controladas pela contabilidade do mercado, seja em assistência e políticas públicas (dividas com ou) administradas pelo estado;
de construir campos para a resistência a tais processos de homogeneização, dinamitando as esferas definidas e restritas pelas competências técnicas atribuíveis pelo estado e demais empresas de educação que
aqui se trata de travar uma guerra contra o imaginário das empresas de certificação profissional (faculdades, escolas técnicas etc) proliferam com a necessidade crescente não só de indivíduos certificados para o mercado, como de explorar ao máximo o mercado aberto com essa indústria da subjetivação pelo mercado de trabalho;
todos avançam em direção à um fatia do mercado, tornando cada vez mais real essa ficção assombrosa de sua onipotência inquestionável;
não há minimamente uma visão crítica ao mercado, mas um discurso monótono do economicismo liberalizante;

estamos trabalhando com um processo de despadronização (do qual não podemos perder de vista seus desdobramentos e apropriações pelos capitalismo)
por isso se trata de reformular a imaginação criadora de conhecimento em lugar de permanecer reproduzindo os modelos que herdamos ou em respeito aos velhos mestres;
a vida exige mais de nós, exige forjar novos instrumentos através de nós;
para isso estamos disponíveis mais à vida em suas hecceidades que ao mercado de trabalho e outras subjetivações padronizantes;


obra de jorge rivasplata trabalhismo e ecologismo: a produção e a vida

esses seringueiros articulavam há pouco (e entre poucos) o (inconfundível ar revolucionário do) discurso do legalismo trabalhista (que pegou a pecha de revolucionário pelo espírito de marselhesa que se conseguiu apropriar, transgredir e incutir na legislação trabalhista pela assessoria de imprensa do então ditador getúlio vargas);
por necessidade e conveniência política passaram, então, de forma experimental, a articulá-lo com um discurso focado na vida, um discurso ecológico que resultava num híbrido;

ao buscar sair da condição de instrumento do mercado e assumir outras funções e personagens, os seringueiros libertos conheceram uma franca decadência, durante a qual ficou difícil sustentar o que havia de anti-civilizacional ou de sustentabilidade indígena em sua auto-concepção de tradicionalistas detentores de direitos e políticas diferenciados;
a grande maioria, seguindo os fluxos globais da indústria e do mercado da borracha de que faziam parte, achou por bem civilizar-se da forma que pode, aceitando as diversas saídas proporcionadas pelos benefícios do estado;
estudos e saúde foram e são as formas de captura mais assimiláveis pelos recém-civilizados;
se as cidades da floresta arremedam os municípios, adaptando-se da sua forma aos hábitos urbanos como o consumismo, individualismo, tecnicismo, assim como à cultura de funcionalismo de estado que impera no acre, é por que seus habitantes se subjetivam, procuram as identidades que lhes convém a partir da articulação de signos colocados agora a sua disposição;

seja via estudo ou saúde, o processo de subjetivação capitalística a que se entregam (ou que integram) esses outros articula-se com o trabalho, mercado e o consumo;
nesse contexto, ser indígena ou seringueiro e ter "direito" a sê-lo, ou seja, (no caso) ter benefícios de tanto, torna-se algo abstrato;
consiste aqui no direito à identidade étnica, biológica ou racial, mais que às formas de subjetivação diferenciadas que definem esses grupos e sua perpetuação ou não-assimilação/não-integração;
como o estado opera no horizonte das identidades, a subjetivação funciona como contra-discurso que serve à resistência desses grupos ao estado;
a medida que se tornem política de diversidade étnica do estado ou dos pequenos estados que são as entidades políticas representativas legais (organizações) munidas de seu suporte burocrático para a construção de políticas públicas;

a confusão do pensamento de estado que só pensa por identidades, ou melhor, sua forma de apropriação e desmontagem desse discurso opera simultaneamente à sua ação de cooptação às práticas subjetivas ocidentais: organização, documentação, ofícios etc;
cada povo ou comunidade precisa funcionar como empresa, ainda que como empresa social;
o estado consegue sobrepor-se e apropriar para sua lógica de poder os direitos, fazer novamente dos instrumentos e de todo o complexo jurídico seu intensificador de poder: esses grupo e sua forma de organização (desconsideradas então) precisam adaptar-se à cultura burocrática de estado;

cultura política
por isso, junto aos meus interlocutores em direito indígena, optei em diferenciar e mesmo contrapor o nosso trabalho em cultura política, ou seja, fortalecimento das tradições com suas regras específicas e reconhecimento das autoridades internas no cumprimento de tais princípios, fazendo frente aos universalizantes mecanismos do etnocêntrico direito positivo e marcando seus limites no exterior dessas comunidades, muitas vezes como um direito garantido (ou melhor, voltado contra si) pelo próprio direito positivo;
desvencilhar-se da noção de direito, cristalizada no direito positivo consiste num processo tão visceral quanto desvencilhar-se do senso comum em relação à noção de política;reconhecer não só a política que se faz com os brancos ou contra os brancos, mas uma política interna, que pode e deve ser fortalecida se não se tem como horizonte a integração à homogeneidade civilizante/homogeneizante civilidade;

obra de jorge rivasplata extraindo subjetivações (1)

analisando o discurso do ecologismo caboclo dos seringueiros acreanos percebe-se a fusão (ou mesmo confusão) entre um velho discurso de resistência de tendência marxista forjado nas assembléias de trabalhadores, nos sindicatos com seus processos de subjetivação definidos pelo capital, ou seja, um discurso em que a subjetivação se dá a partir do trabalho
esses personagens são responsáveis pela autoria de um dispositivo fundamental na legislação socioambientalista brasileira, as reservas extrativistas, que constituem em termos de território mas também de narrativa em termos de lutas e movimentos sociais (aliança dos povos da floresta) o ato de assumir não apenas a identidade indígena como processo de subjetivação (comunicacional, agenciamentos de enunciação, tais como músicas e filmes, política, nas leis etc) como a constituição de uma entre-identidade (e seus respectivos processos de subjetivação) de difícil definição num vocabulário e numa sintaxe de um discurso especializado em definir identidades homogêneas e contrastantes (como classes sociais), o que permite se imaginar mesmo contra-identidades;

presos no universo unidimensional da identidade trabalhista constituem para si mesmo uma imagem perpetuamente associada não apenas à ocidentalidade auto-referente, como aos limites e programas que o capitalismo industrial impôs através de seus personagens, assumidos por nós;
desvencilhar-se da imagem do homem-máquina, do homem-técnica, do homem-instrumento a servir a onipotência inquestionável do deus mercado de trabalho, que determina sua subjetivação, será a tarefa hercúlea a se cumprir agora que o mercado também se alimenta da diferença por meio de suas redes comunicacionais nas quais impõe complexas formas de controle sobre o consumo de subjetividades;


bola
selvagem
eram seis horas e quinze da tarde-noite;
estava sentado em frente à catedral, vendo o pôr do sol e esperando por uma carona;
passou o primeiro garoto, que me ofereceu engraxe;
pensei que meu sapato não era de engraxar e agradeci;
em seguida, passou um sem teto exalando sua condição;
pensei, ele virá ter comigo;
torci para que não como torcendo para que sim;
na seqüência passou outro garoto pequeno com uma pequena caixa de engraxate (as caixas de engraxate de minha infância era maiores e tinham outro formato, as de hoje são menores, obedecendo os nossos padrões estéticos e o tamanho reduzido de nossa nova geração de engraxates);
perguntou se eu queria engraxar;
disse que não;
ele pacientemente se colocou no chão e começou a tirar o material;
como meu idioma sulista é dificilmente entendível aos índio-cearences ouvidos acreanos, repeti que não queria, alegando agora que meu sapato não se prestava ao engraxe;
ele continuou, em meio a resmungos que funcionavam como um tipo de resposta que servia para estender o diálogo mal entendido e ganhar tempo para continuar a retirar os seus instrumentos de dentro da caixinha;
perguntei-lhe, então, mais diretamente se ele tinha entendido o que eu tinha dito, que não queria engraxar, que meu sapato não era de engraxar;
ele entreolhou-me e respondeu que sim;
nisso, como ele continuou agindo enquanto eu conversava ele já estava com a graxa aberta e a escovinha melada, com a outra mão pegou a escova grande e escovou o sapato;
enquanto isso foram chegando outros garotos, que, como num exercício de estranhamento, me perguntavam onde eu morava;
suas expressões eram estranhas no lusco-fusco;
no crepúsculo parecia que tinham expressões sujas e famintas;
respondi qualquer coisa, como que eu morava ali perto;
enquanto isso o garoto não parava e já avançava sobre meu sapato com a escova cheia de graxa;
levantei-me e o segurei, mas ele colocou força no ato e veio pra cima;
eu fiquei desconcertado de estar envolvido numa situação como aquela;
comecei a segura-lo junto ao chão;
um fluxo disparou em minha mente;
um embate estava sendo travado, não queria de forma alguma cessá-lo oferecendo dinheiro a ele, o que não quis fazer desde o início;
percebi num relance um pedaço de chiclete no seu cabelo;
passou pela minha mente: estará ele chapado;
outro garoto entrou para chamar-lhe a atenção;
agarrou-o e dizia pra eu ir embora;
não consegui;
ele não se rendeu ao companheiro;
até que não mais resisti e permiti que ele esfregasse a graxa em meu sapato;
para apaziguar a situação e ceder ao acontecimento, ainda disse que não ficara tão mal;
ele pediu que o outro buscasse a graxa;
olhei para o lado e uma senhora com um garotinho assistia parada ao acontecimento singular;
passou pela minha mente, num disparate, a idéia de brincar com o tal garotinho, o que pode ser que eu, estranhamente, num gesto de nervosismo desesperado, tenha feito;
por alguns instantes não sei o que aconteceu, via o carro chegando e a chance de me desvencilhar de um novo embate com o engraxate;
podia escapar indo para o carro;
agora sim podia dar-lhe uma moeda, estava livre, precisava ir e queria agradecer pela situação inusitada que ele me proporcionara;
tirei uma bela e pesada moeda de vinte e cinco centavos, voltei-me e disse;
engraxate aí vai;
e lancei a moeda no ar;
todos o garotos, uns quatro ou cinco, tentaram agarrar a moeda;voltei as costas e parti ainda atordoado na direção do carro;

24 fevereiro 2008

a grade 1 redundarão controle e resistência num mesmo processo...?

é um combate essa idéia, uma proposição batalhadora esta entre os limites de nossa liberdade e a medida em que caímos nas malhas do controle e nosso trabalho é reabsorvido como controle;
para aguns isso não passa da vida cotidiana que na pós-modernidade consiste em amansar resistências e não cumprir com as evidenciações modernas de cumprir com os modelos: as crianças quererem ser adultos, as mulheres homens, os loucos sãos, os presidiários libertos etc;
sempre chegar ao padrão, eis a máxima da modernidade no que ela ainda devia à subjetivação disciplinar que visava estruturar o estado e seus cidadãos, a lei e as demais instituições para o capitalismo global;

pensava então que a diferença definida como processo de resistência por excelência na obra de guattari não passaria de um instrumento que vinha sendo imediatamente absorvido por esses padrões de subjetividade capitalística;
acontece que não tinha, como não tenho..., uma proposta que supere a afirmação da diferença, aliás sigo trabalhando justamente com a afirmação dessa diferença;
achava então simplesmente que a obra de guattari servia mais ao aperfeiçoamento dos dispositivos de controle, função das ciências humanas (e pelo visto também das contra-ciências) que à sua resistência;

no entanto, por um lado não temos outra possibilidade de resistência à subjetivação capitalística de reprodução do mesmo que não a diferença e, por outro, o processo de apropriação da diferença pelo capitalismo visa reduzi-la à identidade, ao mesmo, à homogeneidade;

é aqui que o infinitesimal ganha um sentido próprio pois trata-se de uma diferença ao infinito, de uma afirmação das hecceidades, literatura, uma vida...

a dúvida que resta consiste em: a longo prazo, nossa função consistirá em permanecer aprimorando os dispositivos de controle..., seremos nós também, que acreditamos resistir, parte dessa mesma máquina de redução...

essa apropriação capitalística e padronizadora da diferença é algo mais fácil de se ver nos discursos alheios que nos nossos próprios;
somos sempre os heróis de nossos mitos;
então, ousemos a fórmula lapidar;
hoje o capital penetra a vida numa escala nunca vista e a vampiriza;
mas o avesso também é verdadeiro: a própria vida virou com isso um capital;
pois se as maneiras de ver, de sentir, de pensar, de perceber, de morar, de vestir tornam-se objeto de interesse e investimento do capital, elas passam a ser fonte de valor e podem, elas mesmas, tornar-se um vetor de valorização;

peter pal pelbart
nós temos dito que preferíamos trabalhar um tema como a questão da sustentabilidade humana;
temos inclusive dito que a sustentabilidade humana é muito mais importante do que trabalharmos sustentabilidade de um programa que tem, como princípio, a destruição do meio ambiente e do ser humano;
e este consentimento fundamentado prévio, ou não é uma simples afirmação, uma simples legalização do que já vem sendo feito;
portanto, é mais importante que nós, como povos indígenas, tomemos a decisão de aceitar ou não uma outra diversidade, uma outra cultura, um outro conceito em nossos próprios procedimentos;
e como se chamaria isso ?
nós poderíamos chamar de um sistema jurídico próprio dos povos indígenas; mas como vou fazer para que um sistema próprio dos povos indígenas seja respeitado ? primeiro que, para a sociedade, para a modernização, eu preciso estar com isto registrado e, segundo, que tenho que promover isto;
no entanto, para nós, que vivemos todos esses milhares de anos, não foi preciso isto e nós e nós não tínhamos esta crise de identidade que mencionei no início, porque nós sabíamos nossa origem, nossos caminhos e para onde íamos, apesar de gostarmos muito de guerrear entre nós;
mas era um processo menos violento do que o do estados unidos, pois não utilizávamos a bomba e, sim, o veneno e alguém se defendia e com muita sabedoria;
isso era um processo da afirmação de cultura, de valores e da personalidade;
também não deixa de ser assim hoje, mas de uma maneira muito mais cruel;
então acontece que essa criação de conceito nos tem complicado muito a vida, agora nós somos crianças, mulheres, pajés, velhos, somos católicos, protestantes, médicos, advogados mas esquecemos que somos ine, popengari, hunikuin;
agora somos índios;

sebastião manchineri, 2003


a lei, por colocar-se acima do tempo e da cultura, degenera em aberrações que são, no mínimo, boas para se pensar;
ao afirmar o multiculturalismo e conceder direito de cultura (preservação e manutenção) aos povos indígenas, relativiza (quando não aliena) desse direito a dimensão política da cultura ou cultural da política;

o pluralismo jurídico como nova especialização das ciências jurídicas pode nos servir, não nos bastar;
seu campo de atuação restringe-se aos meios acadêmicos, aos debates doutrinários, às revistas especializadas;

quando se chega (ou mesmo pelo programa do qual se parte (por sua natureza de programa)) espera-se uma abordagem positiva do direito, explicando o que é e quais são os direitos estabelecidos;
falar sobre o direito, sobre a educação, sobre os conhecimentos coletivos, sobre tradição como coisas acabadas, entes ou substâncias;
o avesso do que consistiria uma abordagem construtivista;
não pensá-las como processos apropriáveis em vivências de agenciamento coletivo;
tomá-las, assim, como produtos estabelecidos dos quais o estado (e seus sentinelas) é o guardião;
cabe então ao educador de estado transmitir esses valores estabelecidos e consensuados aos demais, para que estes estejam aptos, ou seja, instruídos para o mercado de trabalho;

a abordagem, no entanto, consiste num processo de crítica e apropriação ao poder estabelecido, um processo de resistência e de subjetivação a partir das referências que se traz das frágeis porém resistentes sociedades não-ocidentalizadas;
meu assombro iniciou-se na primeira questão;
o que é direito;
os meus direitos de consumir, meu direito ao exercício do poder e da violência de estado;
eis as respostas;
como trabalhar a partir desse ponto de partida, com um grupo de interlocutores armado;
como desarmar essa bomba;

intoxicados de novela, de televisão acreditam que o direito é o acesso ao mundo do qual foram marginalizados;
sua integração, sua inclusão se dará a partir de quando puderem fazer e fizerem o que o outro tem o direito de fazer;
apontar outras soluções, outros caminhos, só através de um discurso pouco convincente que imagina o índio como bom selvagem e folcloriza os costumes dos antigos para valorizar o conhecimento técnico almejado por todos como possibilidade de trabalho e de se tornar funcionário;

a neurótica subjetivação capitalística pelo trabalho é uma bomba contra a qual se deverá contrapor processos nômades e anarquistas de subjetivação;
interessa-me entrar, afirmar esses processos sem uma retórica moralista (desde salvar o planeta até fazer a justiça social aos deserdados do ocidentalismo (até por que acredito que essa exclusão é a nossa própria saída));
o fato é que não vou no sentido de confirmar suas expectativas;
não creio como a grande homogeneidade ocidentalizante na via única da subjetivação pelo mercado de trabalho;
pelo contrário, quero construir vias para a contraposição a essa forma hegemônica de subjetivação;
para isso me serve a noção de sociedades contra-estado, pois traço perfis contrapostos entre essas sociedades e trabalho a partir deles, buscando soluções para os impasses do capitalismo e do ocidentalismo a partir do perfil dessas sociedades;
por exemplo, como argumentar contra o sistema de patentes, demonstrando que o ordenamento jurídico dos contratos garantido na lei (esta de história e tradição liberal) beneficia mais às empresas que aos povos indígenas ou tradicionais;
definindo as características da economia do conhecimento indígena;
livre fluxo de informação versus mercantilização do conhecimento e da mão de obra especializada;
cooperação versus competição;
é assim que a lei dá com uma mão e tira com a outra;
diz estar garantindo o direito e saldando uma dívida histórica (sua canalhice não encontra medida) quando está negociando e mercantilizando a própria alma dessa gente;

vejo que o problema está um passo atrás, em seus referenciais de subjetivação, suas vontades;
como trabalhar essas vontades tocando o mínimo possível no moralismo, sem acionar o tempo todo seus compromissos com tradição ou outras causas nobres;
pois o que faço é acenar com outras referências de subjetivação a partir de um compromisso que esses indígenas têm com sua cultura, sua tradição, seu modo de organização, seu conhecimento etc;


tradicionais
a noção de conhecimentos tradicionais como um conjunto de saberes acabados e remetendo a um passado imemorial é uma concepção, como tantas outras e cada vez mais, implantada por nós nas bordas dessas culturas;
pois a imagem desses saberes remete menos ao passado que a nossa;
é muito mais o nosso sistema de conhecimento que se move a partir do passado, tendo o passado como referência;
em sua imaginação evolucionária nosso pensamento concebe-se como um desenvolvimento natural e orgânico do passado;
como se diz, imagem do conhecimento, imagem do homem;
pois é assim que se configura a subjetivação ocidental, e seu conhecimento está nela implicado;

***
como já disse,tenho dificuldade para imaginar saídas empresariais para as populações não civilizadas ou resistentes à civilização ou ainda não civilizadas com que tenho estado em embate nos últimos anos aqui no acre e no último ano aqui no juruá;
soluções empresariais operam com a lógica empresarial;
o dinheiro pode parecer bom ou necessário em qualquer situação, pode consistir mesmo num direito como se costuma alegar aos tradicionalistas anarquistas da minha linhagem;
no entanto, o movimento que sustenta esses sistemas não-ocidentais tem por referências outras lógicas que não a do mercantilismo selvagem que caracteriza nossa pseudo-democracia liberalista;
já cheguei a formular que o fracasso das tentativas de organização da reserva extrativista do alto juruá (meu estudo de caso), tendo ainda acompanhado outras reservas e o processo de criação das atuais, está na relação com o mercado, com a civilização, com as exigências do mercado, com a falta de referências no modo de vida tradicional, com a influência, ou melhor, a determinação política do estado, os modos de subjetivação da grande sociedade ou sociedade envolvente, como se dizia;

23 fevereiro 2008

subjetivação pelo trabalho 1
o devir trabalhador e suas (in-)potências

por muito tempo servi-me fartamente dos saborosos pratos da história, até um dia seus temperos e depois tudo o resto passar a cheirar mal;
hoje sou econômico e reservado no que diz respeito à história;
ainda lembro o gosto que tinha, ou que eu dava, para os direitos do trabalhador como uma conquista inconteste;
percebi como essa forma de servidão voluntária funcionava quando passei a desconfiar dos, até então, também incontestes, sindicatos;
sua aura foi perdendo o brilho e comecei a entende-los como parte da máquina de exploração, natureza que foi se estendendo para todo o direito, que passou a ter para mim menos aquele absoluto valor em si do que um restrito valor estratégico;
foi desconfiando do paternalismo do ditador vargas e não nos livros de história ou nos manifestos anarquistas ou punks, que as gloriosas conquistas dos trabalhadores perderam os clarins que as embelezavam e passaram a constituir parte da máquina opressora que hoje se evidencia na forma de subjetivação conservadora da velha política de resistência dos sindicatos;
os sindicatos, ao lado da velha figura do trabalhador, sua identidade, envelheceram e já não tem mais lugar num mundo de virtualidades, de serviços e de marketing;
como por mágica, o velho mundo das fábricas desapareeu de nosso campo de visão para dar lugar a tantas outras formas/imagens da opressão;
a forma da resistência entrincheirada nos sindicatos mostrou então sua fragilidade e, pior (diria, melhor), seu pressupostos opressores com sua concentração no estado, nos direitos, na identidade, todo um imaginário opressor e nada libertário;

isto se tornou claro no processo de politização e democratização dos trabalhadores do acre, onde a escravidão não foi abolida na data oficial de há cem anos, mas restou até pouco mais ou menos de vinte anos;
chamou-me a atenção a forma com que a história (em um momento de plena exaustão e superação desse discurso legalista de direitos dos trabalhadores) trata unanimemente (por um compromisso auto-denominado histórico (talvez com os mortos ou com o passado)) o valor imaculável dos direitos do trabalhador na épica construção de um fracasso: o ecologismo extrativista efetivado e tornado lei com as reservas extrativistas;

o projeto pode ser resumido como uma forma de comercialização da floresta amazônica legitimada pelos explorados do seringalismo liderados pelo líder sindical, tornado ídolo pop, chico mendes;
nesse projeto, os mercadores subutilizam todos os tipos de produto recriados pelo globalismo ou capitalismo mundializado: identidades que vão desde povos tradicionais até o indígenas, discursos que vão desde o socialismo de estado até o liberalismo das ongs, legislação, entre outros;

pois no acre, esse épico episódio possibilitou a reformulação de uma instituição decadente, um intensificador de poder que ainda se rebate em seu túmulo, o qual polissemicamente chamamos de história, instituição da qual muito temos falado e, para os que não mais dela se lembram, tratava-se de uma antiga espécie de arte jornalística;
pois foi essa velha conhecida, que em seu tom e referências tão antiquadas, deixou-me entrever o histrionismo que marcava essas épicas conquistas legais dos trabalhadores no sentido de sua servidão voluntária;
talvez eu nunca tivesse percebido isso, não tivesse sido o fato, diria fator econômico, desses trabalhadores terem forjado um mundo que ruiu sob seu olhos e seus pés pois da noite para o dia, de maneira similar à meteórica queda ou quebra do vlor da borracha, o valor do trabalhador (mesmo com, ou melhor, devido a toda a sua identidade arraigada na subjetividade do patrão) conheceu uma decadência tão avassaladora quanto a decadência do discurso que encontrou para se justificar, discurso do desemprego e da dependência da velha servidão à qual estava e está identificado;

a constituição da imagem do seringueiro estava associada e continua ao mercado industrial;
essa sua forja, somada à eficiente política de assistência do estado, centrada na produção da dependência e na supressão da autonomia, tem tornado sua condição cada vez mais difícil, na qual não compreende como seu sonho se tornou pesadelo com tanta facilidade e como a liberdade anunciada o conduziu para um mesmo e pior, por descentralizado e desesperançoso, ciclo de servidão;

desse novo ciclo de servidão demorará um pouco mais para se libertar pois, para ele, as velhas cartilhas do marxismo não bastam;
a vacina da conscientização das massas serviu para a política de saúde do próprio capitalismo;

nesse processo, a escola tem exercido seu papel;
imediatamente ela obedece um imaginário que comunga a velha imagem da instrução com a das novas tecnologias, comprometidas com o, também renovado (também em suas formas de exploração), mercado;
é assim que o veho escravo manda o filho para a escola, para se constituir à imagem do mercado de trabalho e reproduzir sua velha função agora com mais 'competência técnica';

a escola como forma da subjetivação, como saída para a suposta decadência, forjada há muito pelos próprios revolucionários da floresta que agora batem em retirada, deixando ao estado sua propriedade depois de terem alimentado e nutrido o dragão do mercado da natureza;

a escola e o mercado de trabalho constituem a nova realidade daqueles que não fizeram frente ao projeto, ou melhor, ao discurso modernizador;

aqueles que fizeram frente à 'modernidade', mantendo seu compromisso inicial de uma aliança como povos da floresta, estão virando índio pois o que se percebeu foi que se acirrou (em lugar de se sutilizar) com a tal política sociombientalista a divisão entre índios e brancos, ou entre o que é ser índio e o que é ser branco;
de fato, mais uma vez a lei não mudou as pessoas, em lugar disso foi novamente apropriada em favor daqueles que a manipulam para tirar proveito e conservar o poder concentrado nas mãos dos mesmos;
o messianismo educacional do iluminismo ou 'furor pedagogicus' segue doutrinando, constituindo velhas identidades em seus processos de subjetivação;
a vida de mordomia e o futuro da vida

interessante;
roxo, com sua sabedoria cabocla de pesquisador das matas instalado provisoriamente na urbana turba cruzeirense como vendedor de merenda, [convenha-se: o ponto estratégico é o segredo da pesquisa] mandou essa refinada distinção;
para roxo os pesquisadores se definem a partir de duas posturas bem definidas;
para uns, a mordomia é a prova dos nove;
a pesquisa serve para justifica-la;
parece-me que aqui há algo o pesquisador ter definido sua profissão, seu campo de trabalho, sua posição social;
enfim, não há como não associar o pesquisador da vida de mordomia do intelectual de estado;

de outro lado, roxo define uma outra postura, desinteressada da mordomia [pois interessada em outras coisas];
aqui, o interesse é pelo futuro da vida;
há aqui um outro comprometimento com a pesquisa;
não se trata de uma relação estritamente profissional [subjetivação de estado];
por conseqüência, imagino, a pesquisa [e também o pesquisador] aqui é outra;
o hiato entre o que se faz e o que se fala é suprimido;

chama a atenção ainda sua expressão: o futuro da vida;


mais máquinas de guerra contra-estado
um projeto de autoria coletiva concretizaria a proposta de uma prática de direito diferenciado;
não cabe teorizar sobre o direito diferenciado ou o pluralismo jurídico;
a dinâmica é a das máquinas de guerra;
assim, em lugar do monismo generalizante próprio ao globalismo, pensar em articular as ordens comunitárias para que umas fortaleçam a autoridades das outras, em lugar de buscar legitimidade no estado;
suprimir, portanto, a teorização para investir na prática;
essas horas em que estamos juntos são horas de prática pois o que é trocado refere-se menos a conteúdos abstratos que devam ser assimilados e mais um conjunto de operadores, de dispositivos para serem experimentados;
essa forma do direito conhece, no máximo, uma mínima teorização que se reduz a uma descrição dos operadores do estado, de suas políticas indigenistas e também certos procedimentos para a ação;
consiste mais em descrever contra o que se está investindo, o que não é pouco;

mais produção de conhecimento que propostas políticas ou agendas institucionais;
a produção de conhecimento é viva, remete ao momento presente;
planejar é importante, mas há algo de desgastado no planejamento;
produzir conhecimento;
produzir conhecimento ativo, que valha como ação direta contra o estado, afronta ao direito;
há pouco tempo não era compreensível o caráter político do conhecimento;
aí, com tanto foucault e paulo freire na cabeça da moçada, de tanto buscar no vazio o tal construtivismo, a educação indígena de aldeia e de estado começam a abrir caminhos para práticas de resistência, pelo menos a reconhecer o caráter diferenciado que pode se estender para áreas fundamentais como a do direito e da gestão, pois quem agüenta engolir tanta burocracia como se isso fosse coisa de índio e ainda agradecer por ela, por ter direito à burocracia;
reconhecendo-o como conhecimento (construção social) a compreensão indígena do direito deve, assim como em campos como a antropologia ou a sustentabilidade, superar em pouco tempo a nossa concepção fechada, positivista e conservadora;

práticas de contra-estado
desde o início a proposta era contrapor direito positivo e seu monismo à possibilidade da prática do pluralismo jurídico;
o pluralismo jurídico, de natureza distinta em relação ao monismo, não se presta a explicações abstratas e positivas;
sua dinâmica é a da prática e da imanência, da aplicação;

no início, quando declarei que nosso propósito seria a elaboração de leis que pudessem valer tanto quanto as oficiais, o grupo não se animou;
a medida que fui demonstrando em que bases estavam fundamentados os princípios, os interesse etc... do estado e o destino que a democratização abriu com as políticas públicas, aí é que o grupo passou a ver que o que tínhamos ali era um movimento social fazendo política pública e, portanto, apropriando-se do aparato de decisão jurídica do estado;
depois de montado esse imaginário legalista, tratava-se de desmonta-lo, contrapondo-o ao direito diferenciado que visa legitimar o contra-estado das instituições originais dos povos nativos;
interessante quando desconstruía a imagem positiva do cidadão de direito, a qual se constituiu durante tantos séculos em oposição aos nativos da terra para justificar sua invasão e a exploração, afinal eles não podem ser cidadãos e nós vamos ensina-los a ser, moderniza-los...
muitos deles ficaram decepcionados, pois queriam mesmo ser cidadãos, pois não achavam assim tão bom serem contra-cidadãos;
minha sorte é que o discurso tradicionalista é forte e vinha me valer nos momentos de dificuldade de aceitação, quando meus interlocutores inflavam-se querendo afirmar-se os primeiros brasileiros;
como nós, também querem ser amparados pelo estado, ter seus direitos garantidos;
mas, aí eu pergunto... quanto custa se abrasileirar até esse ponto...
quanto vocês pagariam amigos, por isso, por esse serviço de colocar um estado para definir, conquistar e garantir os seus direitos;
é, o preço pode ser caro...


a pergunta do fernando
por que eles não reconheceram a nossa autonomia política...
refletir nessa questão;
ele se referia à constituição de 88;
à cínica ambigüidade de um estado branco reconhecer-se governando um país pluriétnico como o brasil;
minha resposta imediata (mais provocadora que estúpida) foi: porque ela deve ser conquistada;

não disse que essa não era uma atribuição do direito, visto que só o próprio povo pode declarar sua autonomia;
portanto, essa questão está para além do campo de ação do direito;
portanto, o direito tem um campo de ação;
assim como essa questão parece estar incluída nas atribuições do direito (tal como a questão do reconhecimento às normas internas das comunidades indígenas) muitas outras as quais o direito positivo se atribui podem ser questionadas com legitimidade, visando conquistar espaço nesse campo político;


22 fevereiro 2008

tradições 5
destacam-se assim os valores e as características da organização comunitária e política indígena;
daí, mesmo a comparação com as políticas públicas, o orçamento participativo etc podem e devem ser postos como contraponto e não em identidade com as normas e a organização/administração interna das comunidades indígenas;

um outro passo consiste no questionamento ao reconhecimento desse direito pelo estado;
este parece ser o objetivo de estudarmos o ordenamento normativo comparado;
no entanto, ele mantém o estado como referência para o pensamento e ação política;
a menos que ele seja uma estratégia para outras conquistas, ele parece estar longe de ser pensado como uma finalidade, pelo contrário;
pelo contrário, queremos questioná-lo e ultrapassá-lo;

até agora, esse direcionamento tem servido de estratégia retórica, serve para segurar a atenção dos meus interlocutores, pois afirmar a ordem interna justificando simplesmente a autonomia dos povos indígenas ainda parece abstrato, sem contar que o direito positivo e o poder de violência do estado exercem grande fascínio sobre os indígenas de um modo geral;


tradições 4
trabalhar o direito desvinculado de uma economia-política do conhecimento consiste em suprimir o seu contexto histórico, ou seja, toda a realidade, o jogo de forças que o envolve;
é algo que o direito positivo vem fazendo com bastante competência ao longo da história do direito brasileiro e seu estado;
quando se coloca o direito na chave do direito crítico, com um instrumental do século dezenove, a imagem do direito positivista começa a ruir;
sendo assim, não é possível pensar nas sociedades indígenas como sociedades sem direito (ou seja, sem sistemas de ordenamento internos com seus próprios mecanismos e seus próprios mecanismos de regulação e penalidades), o que nos dispõe então ao acionamento de recursos que justifiquem as sociedades indígenas como sociedades contra o direito, contra o direito positivo, ou ainda sociedades de contra-direitos (marcando-se o plural da expressão);
ao se inserir o direito como uma ciência social, ou seja, como um saber, vinculando-o a uma economia de conhecimento contraposta a outra economia de conhecimento, começa-se a destacar a relatividade do direito positivista de tendência ao absoluto por ser elaborado à imagem de nossa socialidade etnocêntrica;

serie txais tradições 3

todos os interlocutores com quem tenho trabalhado ultimamente tem uma mesma resposta para a pergunta o que é direito;
para eles direito é algo que cada um tem, as garantias primeiro individuais e depois coletivas;
eles parecem reproduzir um discurso autoritário que caracteriza a socialidade brasileira, em que todos querem ter direito à violência de estado, às garantias do estado, mas poucos querem assumir o pagamento dessas garantias, mesmo quando se as reconhece;
nesse momento todo cuidado é pouco, pois eles, a partir de uma mentalidade imediatista, assistencialista e mercantilista, deverão voltar-se contra aquele que supostamente (ou seja, segundo essa mentalidade) quer suprimir os pseudo-benefícios;
usei a estratégia de caracterizar a relação com o conhecimento tradicional, para o que a entrevista com o michael veio em contento;
opondo então livre fluxo de informações com mercantilização do conhecimento é possível colocar em dúvida o ímpeto das lideranças indígenas pela apropriação dos saberes técnicos sem colocar em questão o circuito no qual eles estão sendo acionados;
com isso, cada vez mais os indígenas enfraquecem seus circuitos de troca de conhecimentos e os princípios destes;
formar indígenas em cursos superiores e inserção na sociedade de conhecimento ocidental pode consistir numa etapa para uma autonomização do saber indígena e seu circuito;no entanto, pensar nisso como a solução do problema da política ou da economia de conhecimento indígena pode ser catastrófico;


tradições 2
novamente meus interlocutores parecem confundir-se com o essencialismo do nosso pensamento que parece consistir numa armadilha boa para esse pensamento depois de tantos séculos de enfrentamento do cristianismo e de assédio do idioma brasileiro;
assim como eles confundem a terra com o brasil, entendendo que o fato de não considera-los brasileiros (afirmar a diferença) trata-se de um preconceito (diferença como negativo) e essencializando o brasil (deixando de lado sua dinâmica diferencial da qual os povos indígenas tem muito a ganhar em termos de autonomia política para se pensar fora do corpo do estado brasileiro), também essencializam a cultura e a tradição;
a tradição mais facilmente por estar ainda mais associada ao passado que a cultura;
o direito preconceituoso dos positivistas tira proveito disso;
tradições
associar a tradição a um passado inflexível e imperativo;
nossa concepção substancialista de cultura, que faz do ser a imagem da cultura, restringe a tradição a um passadismo;
somando isso ao ortodoxismo desse pensamento, direciona-o a uma busca por um passado perdido, uma cultura do resgate, da essência perdida;
essa moeda cunhada agora em nosso pensamento funciona em nosso sistema, perdendo o caráter de devir que caracteriza o sistema no qual ela tinha circulação;
a imagem da tradição como um sistema que faz frente ao nosso e se reconstitui constantemente segundo suas leis, o que chamamos de cultura exatamente por ser um cultivo nesse solo, não bate com a imagem de um produto pronto a ser comercializado, a circular no mercado de subjetividades, um bem que se possui ou não possui, que se valoriza segundo a sua pureza ou impureza étnica ou biológica;

é dessa forma que a tradição é pensada como uma substância, essencializada;
assim que se transforma em tradição a violência contra a mulher e outras práticas, por associa-las ao passado, presas à tendência evolucinista de nossa imaginação, que organiza também linearmente a disposição histórica do tempo no atual pensamento indígena;

a tradição, apesar de ser pensada sempre na dinâmica do antagonismo em relação à ocidentalidade, não ganha valor a partir dessa relacionalidade;
ao contrário, da mesma forma que fazemos com a nossa cultura auto-referencial e etnocêntrica, eles fazem ao acionarem seu conceito de cultura (que é o nosso conceito de cultura aplicado à sua cultura respeitando o circuito da nossa própria cultura: categorias);
portanto, a relacionalidade (em lugar de assumir sua dinâmica de simetrização e distintibilidade) é apropriada para fixar um eixo que transpõe valores da nossa cultura para o outro imaginário;
esse outro imaginário é o índio genérico, cria de nossa própria imaginação conceitual;
a relacionalidade (e a revolução copernicana que ela impulsiona) leva a imaginação a um perspectivismo, a partir do qual o que se distingue são os sistemas de sentido e não seus funtivos;


as histórias são vivas
conheci dona davina;
ela foi esposa do seu francisco, mestre francisco;
quando visitei sua casa, seu palácio, ela me levou para conhecer sua mata;
conheci muitas árvores das quais só tinha ouvido falar o nome;
com sua simplicidade, ela ia mostrando cada árvore e contando histórias de seus usos e de seu esposo;
uma senhora bem atenta;
quando mostrou-me uma árvore que tinha o tronco todo descascado, disse que era uma boa mistura para o mariri;
eu e angélica perguntamos sua serventia;
para nossa surpresa: ela é boa para a pele, deixa a pele nova, boa;
como por associação de idéias comentei a história dos kaxinawá que, no tempo que viviam com os animais, tinham o segredo da imortalidade, que era a troca da pele, mas entenderam errado o segredo que foi passado;
o olhar e o sorriso de cumplicidade que ela me lançou foram emocionantes, um encontro silenciosa;em suas palavras, ela confirmou discretamente o ensinamento, referindo que a sabedoria das plantas é imensa;


o inconsciente (enquanto plano de imanência) serve para justificar a figura do intérprete;
o perigo da supressão dessa instância e do contato direto com outro modelo psíquico/psicanalítico e subjetivo é o que está em questão;
a esquizoanálise consiste na construção de um modelo que suprima essa dimensão interpretativa do inconsciente, resulta do confronto a essa matriz epistêmica que infiltra o estado e seus agentes como mediadores de processos fundamentais tais como a terapêutica, a aprendizagem, o parto entre outros;
o estado se utiliza dessas instituições e seus agentes na produção de subjetividades de estado;

trata-se mais de uma referência (crítica) à epistême histórico-transcendental que dá origem a essa imagem interpretacionista do processo terapêutico;esse enfrentamento com a psicanálise resulta da definição de um modelo clássico da representação que marginaliza a diferença em favor da identidade;


15 fevereiro 2008

14 fevereiro 2008

salve o profeta gentilezaVVVERDE É VIDA / GENTILEZA MEUS / FILHOS BEM VINDO AO / RIO AMORRR NÃO USEM PRO / BLEMAS NÃO USEM POBREZA / USEM AMORRR DO GENTILEZA / E A NATUREZA DEUS NOSSO / PAI CRIADORR TEM BELEZA / PERFEIÇÃO BONDADE E RI /
PRAGA ASSASSINO EO / CAPETALISMO SURDOS CE / GA MATA CONDUZ PARA / O ABISMO TENQUE SSERR / QUEIMADO POR JESSUSS GENTILEZA

fonte e agradecimento: http://educom-socioambiental.blogspot.com/

11 fevereiro 2008

caçadores

'[...] na verdade, essas teorias [as ciências sociais e psicológicas, ou o campo do trabalho social] servem para justificar e legitimar a existência dessas profissões especializadas, desses equipamentos segregativos e, portanto, da própria marginalização de alguns setores da população; as pessoas que, nos sistemas terapêuticos ou na universidade, se consideram simples depositárias ou canais de transmissão de um saber científico, só por isso já fizeram uma opção reacionária; seja qual for sua inocência ou boa vontade, elas ocupam efetivamente uma posição de reforço dos sistemas de produção de subjetividade dominante'

(guattari e rolnik, micropolítica; cartografias do desejo)


trata-se de definir a dimensão inconsciente (interpretativa) da educação e da política de estado;

considera-se como pressuposto a noção de consciente a partir de deleuze e guattari de mil platôs;

essa noção é tomada como contra-princípio para a definição de uma esquizoanálise;

a noção clássica de inconsciente ou suas interpretações servem de contraponto não só para uma nova imagem da psicanálise, como a uma esquizoanálise do conhecimento e da socialidade que o implica;

nosso pressuposto psicanalítico, a imagem da psicanálise remete menos a uma crítica direta à psicanálise (o que seria aqui despropositada), e mais ao modelo social de conhecimento que a contextualiza, a socialidade epistêmica que ela encerra;

o inconsciente justifica o psicanalista em sua interpretação, a busca de um sentido pré-estabelecido, próprio ao passado do psicanalisado;

na educação não é difícil transcriar/traduzir o processo interpretativo que justifique a figura/posição do professor;

o psicanalisado é o estudante, a instância pressuposta é a coisa em si que sustenta a epistemologia de estado da ciência régia, a qual ocupa o lugar do inconsciente;

a patologia do estudante é o não-saber, somos todos doentes de ante-mão;

a ruptura com esse esquema doentio é a proposta de uma esquizoanálise;

uma educação centrada nos processos de subjetivação, em que os estudantes assumam a produção de sua subjetividade, em lugar de ensaiar para se colocar à disposição da produção de subjetividades do mercado e do estado;

essa será uma esquizoeducação, nome que não pega bem (por causa do -educação e não do esquizo-), podendo ser revisto como esquizoaprendizagem, contra-educação ou mesmo esquizoanálise;

essa proposta opera centrada nos agenciamentos de enunciação, quando os estudantes deixam o espaço interpretativo da sala de aula, para compor um espaço laboratorial de pesquisa: pesquisas de histórias de vida, conhecimentos locais e outras formas de heterogeneidade;

a dinâmica interpretativa fornecerá importante contraponto para a proposição de referências outras;

enfim, as mais diversas experiências que visem opor-se às generalizadas identidades mais facilmente reconhecíveis, as quais são responsáveis pela ênfase valorativa em certos perfis identitários, delineando o padrão/modelo de etnia, de família, de beleza, de consumo etc socialmente valorados;

essa forma de reconhecimento e conseqüente contraponto aos padrões, (visto que esses serão logo identificados como fonte de posturas sociais tais como auto-negação (baixa auto-estima), preconceitos, consumo desenfreado etc) constitui a própria metodologia do processo;

agenciamentos de enunciação nos permitem uma exploração dos meios expressivos sem ater-se excessivamente às propriedades de um único meio;

não se trata de prender-se à autoria ou à pesquisa, visando definir pedagogias;

o caráter experimental das linguagens (na construção de conhecimento) pode traduzir o que se chama de agenciamentos de enunciação;

trata-se de permitir aos atores a liberdade na pesquisa com linguagens, disponibilizando ao seu alcance um gama de linguagens;

essas linguagens geralmente não estão associadas ao conhecimento, geralmente identificado com a linguagem verbal escrita;

não se pensa que a fotografia pode ser ponte para o estudo dos valores, o teatro para o emprego de conceitos do associativismo, composição de músicas, produção de entrevistas em linguagem radiofônica como forma de pesquisa, o vídeo para a abordagem de experiências pesquisadas ou realizadas;

os agenciamentos de enunciação propõem assim um deslocamento na figura do mediador, ainda bastante associada ao professor;

este tem suprimida a função de intérprete do inconsciente (plano de transcendência) para assumir um papel de orientador, de proponente de atividades de esquizoanálise a serem pesquisadas (plano de imanência) pelos próprios atores;

proposta articulada a essas, também na esteira dos agenciamentos de enunciação, é a do agente multiplicador, do protagonismo dos atores no processo de aprendizagem, segundo a qual se visa à apropriação no processo dos atores formados;

inicialmente estes ocuparão a função de assistência aos mediadores, visando futuramente a posição de formadores (ainda que informais por impedimentos legais);

portanto, a própria posição dos mediadores se torna função do processo;

note-se que esse construcionismo não se trata de um construcionismo clássico, de variações culturais sobre os mesmos objetos, consiste sim num construcionismo da constituição de sujeitos ou dos processos de subjetivação;

comer

o caráter substantivista da ciência régia, de nossa tradição de pensamento que se constitui a partir da identidade e em detrimento da diferença, dificulta o pensamento por processos, por transformações, por devires;

as identidades identificam substâncias, relações de causalidade, determinações;

a diferença pensa processos, devires e possibilidades que não conduzem necessariamente para a identidade da substância;

parte-se aqui de uma tradição antropológica que gira(va) na órbita dos pólos, melhor será dizer da polarização, índios versus brancos, cultura versus aculturação, brabos versus amansados, categorias essas com uma evidente funcionalidade de estado visando a identidade como critério último;

daí, passa-se a pensar a diferencialidade de cada processo cultural de contato, suprimindo a importância de um processo geral (transfiguração étnica) que ateste qualquer inflexibilidade histórica;

o índio ou o selvagem vai dando lugar a diferencialidade de cada etnia, de cada processo histórico, de cada forma de relação com a sociedade local, de cada forma de gestão política interna, de gestão de recursos e território, de cada forma de inserção econômica no circuito capitalista, de contato com a religião cristã etc;

passa-se das categorias polares de identificação para os processos imanentes de subjetivação que garantem diferencialidade sobre os processos em curso;

essa diferencialidade possibilita reconhecer os processos de subjetivação em ação, as formas de produção de diferença processando-se;

visto que aquela polarização mantinha como pólo majoritário a cultura ocidental, visto que a polarização servia a um movimento fatídico de progressão no sentido da ocidentalização, restava sustentar essa polarização unicamente para inverter sua função, fazendo com que ela assim sirva à diferenciação;

é assim que um recurso, um conceito, um aparelho de estado pode ser transformado em máquina de guerra;

a polarização não mais conduzirá inerentemente (obecendo uma progressão histórica) à absorção do índio ao amplo espectro étnico alinhado em torno do estado denominado brancos (ou não-índios);

e o recurso de distinção conhecido como 'índio', essa categoria genérica (criada então pelo estado colonial para integração desse contingente étnico) poderá servir agora também para o estabelecimento da diferença;

o indígenas podem se utilizar dela como diferenciação contra o processo de integração do estado;

no entanto, essa diferença será imediatamente incorporada (amaciando seu caráter conflituoso) como política pública;

pode-se pensar inclusive: mas não resultará essa inversão do dispositivo 'índio' (de integração em diferença) justamente em produto das políticas públicas...?

acredito que não, que as políticas públicas, tal como a constituição de 88, consistam em reação à subjetivação acionada pela apropriação desse dispositivo;

a partir de quando essa diferença passa a marcar a diferença, a instrumentalizar um pensamento da diferença ela conduz a uma afirmação da diferença, em que esta não é mais tomada como negativa a partir de um horizonte da identidade, que pressupõe a identidade;

daí, abre-se a possibilidade de se pensar os processos de subjetivação e não mais a generalizante e substancializada identidade;

os processos de subjetivação estão pulverizados na imanência das práticas cotidianas, da micropolítica;

procuraremos destacar sua função na prática de um grupo específico como os kuntanáwa em seu processo de etnicização;

inicialmente, marcando o caráter metodológico (política do conhecimento) da subjetivação, contrapondo identificação de estado à processos de subjetivação, a forma como aquela propõe reduzir estes à identidade para que o grupo esteja adequado às políticas públicas 'diferenciadas';

outro processo que fornecerá subsídios para a apropriação dos processo de subjetivação será a experiência do projeto yorenka ãtame, concebido pelos ashaninka do rio amônia;



cada aldeia

afronta a civilização

que disputa espaço

dentro de cada um



uma guerra de fronteiras

delimitando espaços

em cidades invisíveis


cada lado comemora

à sua maneira

os marcos conquistados

nos limites da civilização...





saudações poéticas txai

o garoto é pura graça

parabéns

estou a caça do zagaia por aqui

como (não sei se) deves saber

fui dissidência

destoei o coro dos contentes

dos acadêmicos almofadinhas

foi muita verdade nos meus olhos

e, é certo, muito tabaco nas narinas

pra desafiar o imaginário

com as próprias armas de meu caro mestre

o maldito josé carlos de paula carvalho

vc o conhece..

já ouviu falar dele..

já o leu...

foi ele que começou toda essa história

ele escreveu o que vale a pena ser lido nessa escola

ele que abriu essa brecha pra gente

mas sem essa distância

sem esses anteparos mediocrizantes

com uma simplicidade insuportável

para o almofadinhas da academia

pois foi, em direção à educação fática

desci aos infernos nietzscheanos

por onde sigo com minhas heresias

maldito

tenho apreciado por longos anos

o trágico dionisismo

junto aos guarani

criei meu guaranismo

meu devir guarani que me arrastou e me arrasta floresta adentro

que me guia pelos varadouros do mundo

do contra-mundo

foi assim o trágico dionisismo marcou-me

poderias assim mandar-me tua peça

para eu poder estudar tua dramaturgia

depois de conhecer o suficiente

renunciei ao imaginário

com exceção de bachelard

que me forneceu a ponte

com seu estudo dos ares nietzscheanos

segui com meus mestres

clastres, deleuze-guattari

foucault, viveiros de castro

essa linha de anárquicos

para poder voltar os guarani

para poder muni-los de armas e munição

de máquinas de guerra

contra o arsenal do conhecimento acadêmico

tem sido uma boa batalha

quero propor-te uma aliança

conversa de escritores-criadores

mande-me teus escritos para minha apreciação

minha sinceridade não pode fazer tão mal

e coloco-lhe à disposição minha dissertação

que deve ser encontrada na biblioteca

desde que não tenha sido misteriosamente extraviada

aguardo...