25 fevereiro 2008

bola
selvagem
eram seis horas e quinze da tarde-noite;
estava sentado em frente à catedral, vendo o pôr do sol e esperando por uma carona;
passou o primeiro garoto, que me ofereceu engraxe;
pensei que meu sapato não era de engraxar e agradeci;
em seguida, passou um sem teto exalando sua condição;
pensei, ele virá ter comigo;
torci para que não como torcendo para que sim;
na seqüência passou outro garoto pequeno com uma pequena caixa de engraxate (as caixas de engraxate de minha infância era maiores e tinham outro formato, as de hoje são menores, obedecendo os nossos padrões estéticos e o tamanho reduzido de nossa nova geração de engraxates);
perguntou se eu queria engraxar;
disse que não;
ele pacientemente se colocou no chão e começou a tirar o material;
como meu idioma sulista é dificilmente entendível aos índio-cearences ouvidos acreanos, repeti que não queria, alegando agora que meu sapato não se prestava ao engraxe;
ele continuou, em meio a resmungos que funcionavam como um tipo de resposta que servia para estender o diálogo mal entendido e ganhar tempo para continuar a retirar os seus instrumentos de dentro da caixinha;
perguntei-lhe, então, mais diretamente se ele tinha entendido o que eu tinha dito, que não queria engraxar, que meu sapato não era de engraxar;
ele entreolhou-me e respondeu que sim;
nisso, como ele continuou agindo enquanto eu conversava ele já estava com a graxa aberta e a escovinha melada, com a outra mão pegou a escova grande e escovou o sapato;
enquanto isso foram chegando outros garotos, que, como num exercício de estranhamento, me perguntavam onde eu morava;
suas expressões eram estranhas no lusco-fusco;
no crepúsculo parecia que tinham expressões sujas e famintas;
respondi qualquer coisa, como que eu morava ali perto;
enquanto isso o garoto não parava e já avançava sobre meu sapato com a escova cheia de graxa;
levantei-me e o segurei, mas ele colocou força no ato e veio pra cima;
eu fiquei desconcertado de estar envolvido numa situação como aquela;
comecei a segura-lo junto ao chão;
um fluxo disparou em minha mente;
um embate estava sendo travado, não queria de forma alguma cessá-lo oferecendo dinheiro a ele, o que não quis fazer desde o início;
percebi num relance um pedaço de chiclete no seu cabelo;
passou pela minha mente: estará ele chapado;
outro garoto entrou para chamar-lhe a atenção;
agarrou-o e dizia pra eu ir embora;
não consegui;
ele não se rendeu ao companheiro;
até que não mais resisti e permiti que ele esfregasse a graxa em meu sapato;
para apaziguar a situação e ceder ao acontecimento, ainda disse que não ficara tão mal;
ele pediu que o outro buscasse a graxa;
olhei para o lado e uma senhora com um garotinho assistia parada ao acontecimento singular;
passou pela minha mente, num disparate, a idéia de brincar com o tal garotinho, o que pode ser que eu, estranhamente, num gesto de nervosismo desesperado, tenha feito;
por alguns instantes não sei o que aconteceu, via o carro chegando e a chance de me desvencilhar de um novo embate com o engraxate;
podia escapar indo para o carro;
agora sim podia dar-lhe uma moeda, estava livre, precisava ir e queria agradecer pela situação inusitada que ele me proporcionara;
tirei uma bela e pesada moeda de vinte e cinco centavos, voltei-me e disse;
engraxate aí vai;
e lancei a moeda no ar;
todos o garotos, uns quatro ou cinco, tentaram agarrar a moeda;voltei as costas e parti ainda atordoado na direção do carro;

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