31 janeiro 2008

menino dorme

29 janeiro 2008

animismo de estado 2

subjetivações: da política da cidade à política da floresta

uma política das subjetivações não é uma política das subjetividades;

essa condiz com o multiculturalismo (enquanto política pública), com uma política de estado que pressupõe formas subjetivas que sustentam seus valores e suas cidadanias (ou florestanias, dado que o problema está no -anias, ou seja, na política de estado);

aquela (política de subjetivações) se constitui contra-estado, dinamitando suas regularidades, a racionalidade de seus programas;

ela escapa a esse racionalismo, ao programático e ao burocrático;

ela se dá como movimentos que escapam ao controle do estado e não como políticas de estado;

o que ela tem contra o estado? pode perguntar o intelectual de estado em mim ou em você;

é a essa própria perspectiva de estado que ela escapa;

por mais que pareça que o estado se abre para a diferença e a arte, está sempre domando o selvagem, instaurando sedentarismo;

o ecologismo do estado consiste numa contradição de termos;

se o seu sentido é o de proliferar perspectivas, criar pontos de vista fora e contra-estado etc, portanto, é descabido pensar obsessivamente em sua integração no projeto, sua unificação nesse horizonte homogêneo, em sua redução a esse grande olho do estado cuja função é neutralizar quaisquer outras perspectivas;

o estado reproduz estado, e o seu projeto de inclusão consiste num grande programa de aglutinação de pontos de vista diferenciais que passam a compor esse mesmo, tendo neutralizadas suas diferenças que consistem justamente na heterogeneidade de seus pontos de vista;

a aliança das minorias com o estado se restringe à ilusão substantivista, pois o estado reduz tudo ao mesmo, à voz média, ou seja, à maioria (lembrando sempre que minoria e maioria não se opõem simplesmente de maneira quantitativa, que maioria implica uma constante...);

tomar subjetivações por subjetividades pode ser confundir, (ou pior, apropriar-se do) perspectivismo (para confundi-lo intencionalmente) com animismo narcisista (produção exclusiva de nosso olhar etnocêntrico a partir de nosso grande divisor e suas respectivas substancializações);

o que se chama de política da floresta, operador de contraste a uma política urbana, a partir das diversas e simples oposições que se pode estabelecer, tais como: sedentarismo x nomadismo, sistemas de aprendizagem oficial x não-oficial (lembrando que cada categoria traz seus valores e as projeções desses), aglomeração x dispersão etc;

esse exercício de imaginação política não consiste num programa de estado (governo), talvez esteja mais para um anti-programa, um manifesto (imaginário e não assinado), algo que não pode passar de especulação, da inquietação de mentes inconformadas com a recente imprescindibilidade do estado nesse contexto e o conformismo que a acompanha;

no mínimo, serve para pensar, pensar numa chave diversa da chave dos intelectuais de estado que rodeiam as questões aqui em pauta;

no contexto em questão, ou seja, vida nas florestas do alto juruá, região lendária em que ocorrem os pegas que darão origem à primeira reserva extrativista do estado brasileiro para iniciar um tal exercício,

uma política de resistência ao estado se justifica como o mínimo que se pode imaginar, em termos de 'projeto comunitário', a partir do processo de subjetivação que definirá, ou melhor, com que se definirão * esses grupos, então declarados condenados à extinção pela mesma política de estado que agora o absorve;

nesse meio tempo (entre condenação à extinção e atual absorção pelo estado): empates, diferenciação e afirmação cultural, questionamento do desenvolvimentismo consensual, guerrilha comunicacional contra a imprensa oficial etc definiram tal processo de subjetivação;

(*) nota: destaca-se aqui os processos de subjetivação como construções geridas pelos próprios coletivos, mecanismos de resistência a integrações identitárias em grupos envolventes de maiorias difusas;

dado que os processos de subjetivação se caracterizarão aqui por autopoiesis, por construção coletiva, em contraste com as políticas subjetivas para produção dos estados-nação, processo de produção de subjetividades longamente descrito pela sociologia*;

os milton são um grupo significativo para fundamentar essa caracterização do processos de subjetivação: protagonistas na criação da primeira reserva extrativista, hoje promovem a reconstrução de sua etnicidade, sua etnicização kuntanawa;

(*)afinal, a unidade do estado é efetivada enquanto subjetividade na cultura, processo menos natural que cultural, ou seja, resultado de uma produção que visou fundamentar a 'idéia nacional', via valores sociais colocados no mercado pelo estado;
nietzsche se refere ao espírito gregário ou espírito de rebanho;


essa política de resistência pode projetar uma linha de fuga para estender o projeto da ecologia para além das garras da política ambientalista de estado, que tomou para si o projeto de autonomia das comunidades da floresta (reservas extrativistas) fazendo delas a fachada para a exploração madeireira coordenada oficialmente pelos planos de manejo do estado (ibama), visto que hoje quase todas as reservas extrativistas que se constituem no acre visam o negócio do manejo madeireiro;

essa política urbana para as comunidades florestais consiste na política de estado, com os valores e o programa que a caracterizam;

do pensamento selvagem às sociedades contra-estado

a universalidade da distinção cultural entre natureza e cultura atestava a universalidade da cultura como natureza do humano;
(viveiros de castro, 2002:169)

o totem serviria, portanto, à distinção natureza/cultura;

essa foi mais uma forma de integrar os selvagens a nossa humanidade;

o horizonte portanto é mais o da identidade que o da diferença;

buscar a racionalidade (o que o pensamento guarda de estado) do pensamento selvagem;

lévi-strauss procurava estreitar, como assume em textos como raça e história, as relações entre nós e os selvagens;

não parece tirar proveito da diferença, colocá-la como seu horizonte último;

sua política por vezes é uma política integracionista de estado;

de outro lado, a concepção de socialidades contra-estado deve tomar o pensamento selvagem como pretexto para a constituição de uma ciência nômade;

nesse contexto, o pensamento selvagem não serve enquanto ciência régia às políticas públicas de estado;

serve para afrontar essa ciência régia, fornecendo elementos que a contradigam, que construam outras referências;

essas socialidades contra-estado resultam em dispositivos sociais que sustentam sua diferença em relação ao estado;

tais socialidades se constituem assim de processos de subjetivação que não se permitem tornarem em identidades a serem absorvidas por política públicas;

enquanto o pensamento selvagem trabalha no horizonte da identidade, as socialidades contra-estado operam na dinâmica operacional da diferença irredutível, na exterioridade em relação ao estado;

a diferença que nutre as máquinas de guerra (seja como socialidade contra-estado, seja como pensamento da socialidade contra-estado) apropria-se do pensamento selvagem a sua maneira e não para atestar humanidades;

introdução

a adoção da ironia como tom narrativo serve para marcar o distanciamento em relação à característica neutralidade com que se configuram os textos que geralmente tratam os temas em questão, principalmente em viés oficial, mas também para caracterizar, diferenciando a proposta metodológica em que se investe aqui, a qual associa tal estética oficial à política de estado, caracterizando o corpo daquilo que deleuze-guattari chamarão de ciência régia;

contudo e portanto, não se entende que tais instâncias se dêem separadamente, visto que procuramos justamente demonstrar tal indiscernibilidade no corpo de nosso texto para além desta justificativa;

animismo de estado

hoje, o animismo é de novo imputado aos selvagens, mas desta vez ele é largamente proclamado como reconhecimento verdadeiro, ou ao menos 'válido', da mestiçagem universal entre sujeitos e objetos, humanos e não-humanos, a que nó moderno sempre estivemos cegos, por conta de nosso hábito tolo, para não dizer pecaminoso, de pensar por dicotomias; da húbris moderna, salvem-nos assim os híbridos primitivos e pós-modernos;

(viveiros de castro, perpectivismo ameríndio, 2002: 370-1)

trata-se de uma inversão de valor do animismo, que continua sendo o mesmo animismo narcisista d'antes;

ainda se trata do outro, não há aqui a dobra em que eu me aproprio desse pensamento, por isso não passa de demagogia de curto alcance, ou de política de estado que investe na dinâmica da dependência pacífica, enquanto o pensamento selvagem fornece o projeto das máquinas de guerra, que nos possibilita um ataque frontal e maciço ao conservador pensamento de estado;

portanto, reformular o animismo, temperado com diferença e contra-objetivismo (leia-se subjetivação, processos de subjetivação) em lugar das identidades obsessivas da ordem social estatal e do mercado de subjetividades, consiste em afrontar nosso modo de pensar, nossos pressupostos, os valores que pressupõem nosso conhecimento, sobretudo nossa política de subjetividades, que deverá encarar o comércio de subjetividades de nossas políticas públicas, a liquidação das minorias;

o que pode haver de selvagem na diferença deverá ser domado pelas políticas públicas e o poder de estado vai ensiná-los direitinho a se burocratizar, como os ensinou a crer em deus e depois na alfabetização, na escrita e na educação e assim enquadramos todos em nossa guerra sem mortos, guerra etnocida em que todos podem sobreviver para louvar o valor supremo da vida;

entre totemismo e animismo

duas antinomias, portanto, que são de fato uma só: ou os ameríndios são etnocentricamente avaros na extensão do conceito de humanidade, e opõem totemicamente natureza e cultura, ou eles são cosmocêntricos e anímicos, e não professam tal distinção, sendo mesmo modelo de tolerância relativista, ao admitir a multiplicidade de pontos de vista sobre o mundo; em suma: fechamento sobre si, ou 'abertura ao outro'?


o totemismo de lévi-strauss e, daí, do pensamento selvagem, visto que este não faz senão aprofundar, segundo o autor, a tese do texto seminal, consiste na hipótese segundo a qual o selvagens fazem do totemismo uma instituição cultural que os separa da natureza;

sua intenção com tal afirmação é atestar a universalidade da distinção entre natureza e cultura com o fim de demonstrar uma universalidade da cultura própria ao humano;

o totemismo como instituição cultural e social afirma a distinção cognitiva entre o homem e a natureza;

enfim, os selvagens são humanos pois se separam, como nós, da natureza;

do totemismo ao animismo

trata-se de distinguir-se do etnocentrismo substancialista que sustenta o totemismo, pois a circunscrição autoreferencial dos selvagens (como seus etnônimos) é meramente diferencial, não se refere a uma distinção natural como em nosso divisor;

trata-se de uma diferença perspectiva ou de um marcador enunciativo e não de uma concepção substantivista;

dessa forma, seu etnocentrismo, o etnocentrismo selvagem se 'inverte', visto que aponta para a tal cosmosocialidade do perspectivismo, para a virtualidade de um jogo (xamânico) de posições;

o perspectivismo é assim uma arte das enunciações, inspirada, talvez, na enunciabilidade xamanística do cantos araweté, bem como soprada da antropologia xamanística de clastres;

a gente, os queixadas...

portanto, não se trata do construcionismo clássico, assentado sobre o grande divisor cartesiano e/ou sobre o sujeito transcendental kantiano;

consiste num jogo com outras (e/ou novas) regras;

palavra de político
ancorado na repressão aos crimes ambientais, o governo anuncia, depois de mais uma reunião de emergência, que a lei vai ser cumprida com rigor, doa a quem doer; ora! em um país que não consegue fazer cumprir as leis nas cidades, onde o crime organizado divide o poder com o estado, como acreditar que agora o governo vai ter braços para chegar aos criminosos que agem na floresta com a conivência de políticos que compõem a base de sustentação do governo lula;
joão capiberibe

26 janeiro 2008

a performance e a dobra

ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? é necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer; só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nessa ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro; é só deste modo que somos determinados a escrever; suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível; talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio; falamos, pois, de ciência, mas de uma maneira, que, infelizmente, sentimos não ser científica;

(deleuze, diferença e repetição)

invisto nesse debate sobre a arte da docência instigado, por alguns dos comentários, a refletir sobre minha (falta de) experiência docente (e discente);

no conflito entre o esperado e o incerto, entre o saber e o não-de-todo-sabido ou por-acabar;

o problema apresentado na forma da 'proposição batalhadora' (kierkegaard/sócrates) sobre o 'lugar' do aprender, a passagem do não-saber ao saber;

conflito entre a transmissão de algo pré-definido, dado e a construção efêmera de uma vivência de conhecimento, que ganha corpo a partir de uma performance que pode não só colocar o apredente em contato com o não-sabido (conteúdo transformador), como chamar a sua atenção (pelo próprio contato imediato com o conhecimento vivo, proporcionado pela performance) para o próprio processo de aprendizagem, quando atenta para a própria reconfiguração da percepção-consciência sofrida em ato (percepção como plano de imanência);

daí a arte da docência, ou melhor, a arte do conhecimento que nos conduz diretamente contra a forma positivada que define a desinteressante imagem do conhecimento inofensivo e compassivo (em contraponto a um saber da violência e da crueldade (vontade de saber: nietzsche via foucault));

o problema é pontuado na mente vigilante dos estudantes (subsombra desumana dos linchadores) cumprindo o papel da zelosa vigília social, de guardiões conservadores (da moral) do normal, que não trocam o certo pelo duvidoso, engessando-se em suas certezas;

o patrulha é instigada quando se suscita as diversas abordagens de um mesmo problema e a condição de se optar por uma determinada abordagem;

e onde fica o certo e a certeza, aquilo em que devemos acreditar?

e os nossos artigos de fé?

olha que estamos pagando e podemos colocá-lo no olho da rua...

é, nem sempre as relações são as da convenção social, ou melhor, às vezes a convenção social se torna autoritária (ou assume seu autoritarismo);

e aí, haja convicção para não se tornar um cínico acossado ou, pior, simplesmente um acossado;

haja zen ou espírito de aventura para persistir e aperfeiçoar as performances;

numa disciplina como metodologia científica (generalizada) ainda dá para considerar a possibilidade de manobras mais arriscadas, mas quando se precisa passar toda a metodologia da disciplina na primeira aula, é de se arrepiar, pura crueldade, ainda mais num curso positivado e positivante como direito, em que os estudantes são fanáticos e fazem até peregrinação para o rio de janeiro para acender vela na igreja da religião positivista de comte;

a mente positivista dos estudantes, modelada no ambiente escolar, não admite o caráter performático da atividade docente ou discente, daí a dificuldade de se veicular qualquer aspecto construcionista nas atividades de docência e, daí, de aprendizagem;

pois um conhecimento construcionista resulta da maturação de práticas pedagógicas construcionistas;

durante minhas experiências como docente, sinto como que desafi(n)ando uma ordem pedagógica e, daí, do conhecimento;

criar em sala de aula, construir experiências em que o conhecimento e seus procedimentos de construção se dêem a ver, colocar os estudantes a par de seu processo de aprendizagem, eis o que sempre me pareceu um estimulante desafio;

ao que fui chamado à atenção na primeira reunião com o diretor acadêmico, que dizia que, por definição, não se coloca a questão do poder no diálogo professor-aluno, que ela se mantém latente (entendi mais tarde que sua colocação não se restringia à relação professor-aluno);

ou seja, a ordem estabelecida, para se manter o estudante na rédea curta, consiste em, assumidamente, deixá-lo ao largo dos procedimentos metodológicos: evitar referências à incerteza, à variações e discordâncias entre teorias ou hermenêuticas, em suma, à diferença, não tratar a perigosa relação entre saber e poder, a produção social das verdades etc;

por isso, no contraponto libertário, tender a experiência docente para seu caráter performativo,

pesquisar performances que correspondam ao saber que se dá na chave n-1, da diferenciação, na chave da desconstrução, na chave da genealogia dos valores e das verdades e não do saber positivo, explicativo, que oculta o plano em que se constitui;

não se trata de fazer aparecer no quadro negro dos valores estabelecidos (estado) as brancas verdades positiva(da)s, e sim de estudar a constituição desse quadro (valores) que faz fundo e dá sentido às verdades positivas;

pois esses valores é que darão sentido ao que for escrito;

o caráter performativo da experiência docente decorre ou incorre na intensificação do caráter performativo do conhecimento, da experiência de um conhecimento que se constitui em ato;

essa experiência decorre, no entanto, da própria concepção de antropologia que venho perseguindo e constituindo em minhas pesquisas;

daí o interesse de tomar como ponto de partida para uma abordagem em fundamentos da educação e antropologia educacional, o texto de o nascimento da tragédia (a concepção do trágico) de nietzsche que se debruça sobre a questão do performático e da representação no teatro e na arte e no pensamento;

o trágico, que é concebido por nietzsche, consiste em retomar da tragédia um espírito, uma dinâmica que deverá caracterizar seus escritos;

esse trágico rompe com a disposição espiritual da ciência objetivista (também típica da economia espiritual judaico-cristã, baseada no arrependimento e do historicismo como disposição de um 'foi assim' fatalista), em que a arbitrariedade (aleatoriedade) dos acontecimentos é organizda pelo determinismo racional, donde recupera da tragédia antiga seu hiper-determinismo, ou melhor, lembrando aquilo que lévi-strauss chamará (a partir da consideração da magia como pensamento selvagem) determinismo global e integral (princípio de uma ciência dos possíveis que encontrará seus critérios/marcadores numa sociocosmologia, no animismo, na participação, e, depois, no perspectivismo e outros pensamentos que se pretendem pós ou para-levi-straussianos (perspectivismo ameríndio: 162-3), ou melhor, lembrando as considerações de gabriel tarde sobre os possíveis, numa ciência das possibilidades (outro nome para aquilo que hubert-mauss chamariam 'essa gigantesca variação sobre o tema do princípio da causalidade' (pensamento selvagem: 26));

(esse movimento, somado à dobra advinda da hermenêutica, conduz ao que mais recentemente juntou um amplo espectro de fenômenos sob a denominação de autopoiésis, cunhada a partir de uma certa biologia do conhecimento, proposta por varela e maturana;)

certo que esse trágico carrega consigo uma dose de fatalismo, melhor, de fatalidade;

no entanto, esse fatalismo se ocupa mais do aberto futuro que do inquebrantável passado;

é menos do fatal ou do fatídico, e mais do fático que trata esse trágico;

daí que se chega ao caráter poietico da filosofia (para o autor, sempre);

caráter esse que nos faz ultrapassar filosofia e poesia, em que filosofia e literatura passam a se interpenetrar em lugar de se oporem, em que se impõem novas categorias ou gêneros que dêem conta da literaturidade da filosofia ou vice-versa;

por aí que passa a discursividade nietzscheana, essa zona de indiscernibilidade que passa a circunscrever tanto os limites da ciência como da arte literária, que aglutina tais práticas discursivas numa mesma poiesis, mas consideradas segundo campos intensivos infinitesimais: teores de literaturidade, recursos da discursividade científica utilizados na literatura, ciências afins à literatura...

um exemplo clássico aqui é o da partilha de recursos entre a antropologia (classicamente classificada como ciência social, o que a mantém na órbita da ciência régia de estado) e a literatura (não-ciência por definição) no perspectivismo seminal de viveiros de castro, já bastante inspirado em clastres, elaborado em seu trabalho/sua pesquisa junto aos araweté;

estudando o xamanismo araweté, mais especificamente os cantos xamanísticos, de forma similar aos exercícios de clastres, eduardo viveiros de castro registra e analisa o regime enunciativo próprio desses cantos em toda a sua complexidade, fazendo (ou pelo menos extraindo) dessa análise o princípio metodológico de sua etnologia, segundo a qual o problema em antropologia resulta de uma ou de todas as possíveis (ou necessárias) convergências;

clastres havia apropriado esse mesmo recurso em seus artigos dos anos sessenta, e são, conforme proponho, a fonte de inspiração ou o princípio de composição (plano de imanência) da antropologia como máquina de guerra, ou seja, voltada contra o estado e não mais como aparelho colonial de dominação;

o que quer dizer a possibilidade de uma antropologia que mantenha em consideração e análise os seus instrumentos de trabalho tais como a enunciação, ou as formas de dispor as vozes no texto, o discurso, ou o caráter contra-positivo da linguagem, o que conduz a consideração das referências políticas que contextualizam o texto (vide o texto da mariana sobre o recente papel do estado no fenômeno de alagação no alto juruá, ainda que eu preferira quando se coloca a antropologia e os antropólogos no meio (do estado) e não olhando 'de fora' (ou seja, desvinculando conhecimento/ciência e política) entre outros);

essa abordagem dos seus recursos e de seus métodos mantém-na na dinâmica de uma genealogia, o que dificulta sua apropriação por um discurso positivista que busca alienar-se numa objetividade neutra;

deleuze-guattari falam de um plano de imanência que se revela enquanto dá a perceber, contraposto a um plano de transcendência, o qual dá a perceber sem poder ser percebido;

o caráter meta-teórico não consiste numa postura erudita da arte pela arte, estaria mais para uma arte enquanto política ou para uma ecologia subjetiva;

supressões

aqui, a característica marcante da máquina de guerra consiste na supressão do objetivismo e da interpretação, rumo a um pensamento que se coloca no limite do pensamento-ação, da política, da estética, da produção de outras formas de expressão despregadas da imagem positiva do pensamento;

suprimir a interpretação (equivalente de manejar discursos, essa evidenciação da política ou da moral como contexto dos enunciados) consiste em operar em outra imagem do pensamento;

trata-se de ter o estado presente como campo de atuação (determinação) e influência, como plano de imanência;

não se imagina um pensamento pairando num plano ideal, abstrato, livre de influências funestas;

imaginá-lo em sua auto-imagem do grande interior, da fortaleza que busca incluir, adaptar e reduzir toda diferença a seu corpo, visando sua perpetuação segundo essa imagem da ordem e da conservação, da uniformização e da opressão;

a exterioridade da máquina de guerra

se a máquina de guerra se define pela exterioridade em relação ao estado, o problema da etnologia dificilmente poderá esquivar-se de tais máquinas;

a não ser que essa etnologia se assuma a partir do centro ou, melhor dizendo, se generalize (e se oculte) como aparelho de estado, generalização que é típica de uma ciência régia ou ciência 'maior';

nota: a generalização, e conseqüente ocultação, no sentido tanto de um homogeneização que conduz à indiferenciação, à neutralização do diferente/distinto, como de uma ocultação posta no plano de transcendência, aquele que dá a perceber sem se deixar perceber (função a ser neutralizada pela genealogia, que opera definindo recortes em tais campos homogeneizantes, circunscrevendo tais estratégias de uniformização típicas do estado e de sua ciência positiva);

dessa perspectiva de estado, assume para si os problemas de interiorizção desses marginais ou dessa exterioridade que sempre assombra o estado, ao mesmo tempo que lhe dá sentido;

enquanto ciência 'menor', pensamento nômade, a etnologia é a ciência da exterioriade e, portanto, das máquinas de guerra, por excelência;

criar perspectivas de fora para se voltar contra essa unidade interna que caracteriza o estado;

projeto que deve assumir e recriar os mecanismos de resistência típicos dessa exterioridade;

o estado se caracteriza pela unidade e a homogeneidade que conduzem a ciência régia (inclusive na etnologia) à redução do outro ao mesmo (seja pelo pensamento, fazendo do outro objeto, seja pelas leis, em que o outro se reduz a cidadão, o qual o antropólogo advogará);

nisso o antropólogo de estado pode ser imaginado como o antropólogo advogado, especialista nas leis, em fazer com que se dê seu cumprimento;

o antropólogo contabilista, que pragmático passa a contabilizar os ganhos de seus clientes;

é dessa forma que se perde a noção desse fora que essas sociedades marcam, para constituí-las como sociedades incluídas;

em uma situação como esta, o discurso assistencialista não se furta a socorrer, alegando que melhor será assim do que deixando essas sociedades por sua conta contra os (seus inúmeros inimigos) os inúmeros riscos de uma sociedade capitalista;

uma das maiores fontes de inspiração, melhor dizendo, fonte de perspectivas para a ciência nômade tem sido a exterioridade que caracteriza essas socialidades marginais estudadas pela antropologia (inicialmente para reduzi-las ao mesmo, cumprindo a função de ciência régia e aparelho de estado);

o caráter de ciência das diferenças próprio à antropologia conduziu-a a uma crise de identidade e ao estranhamento em relação ao seu próprio corpo (sua metodologia, sua linguagem, sua lógica, sua função) e, daí à procura de seus próprios meios de expressão;

não se restringir a pensar a diferença (com um aparato e uma lógica, princípios e fins marcados pela identidade característica do estado) mas redefinir esse pensar como a construção de instrumentos próprios ao pensamento da diferença, de meios, de recursos que redefinissem o próprio pensar, o que se entende por pensar, visto que o próprio pensar estaria determinado como função de estado;

raquel no palco


distintibilidade no perspectivismo 4

essa é a ruptura com um imaginário da tradutibilidade, no qual se mantém irredutível a imagem de um sentido transcendente que se constitui como referência, não permitindo aos meios de expressão se constituírem como referência primeira;

manter-se nesse imaginário da tradutibilidade sem dúvida é uma medida de cautela, quando a tendência dos meios de expressão, desde que referência primeira, é arrastar-nos para outros campos expressivos, ruindo os espaços seguros da objetividade positiva de nossa tradição;

construir máquinas de guerra consiste na investigação da distintibilidade no que ela possui de discursividade, ou seja de teor irredutivelmente político, dado que o problema da forma se dá a partir da problematização do discurso, essa dimensão política inerente ao conhecimento ou do essa dimensão de afirmação/expressão de realidades inerente à política;

desde que se tome por discursividade seu caráter inerentemente estético que torna indiscerníveis os velhos campos tão bem definidos que distinguem ciência e poesia, literatura e conhecimento;

por isso a pesquisa da distintibilidade se na chave da produção, da criação a partir do conhecimento outro, dado que o atrativo pelo discurso explicativo ou descritivista da etnologia pode ser desde então passível de desconfiança, como antes o era a forma literária ou poética;

a etnologia passa a considerar benvinda a presença dos virtuais própria da literatura, sem perder o rigor etnográfico que fundamenta a pesquisa e a produção;

a descrição visando o modelo, a uniformização perde-se enquanto referência central;

trata-se de explorar recursos expressivos liberados/acionados com a imaginação desse pensamento;

não se trata de responder às questões do estado, horizonte que então dá forma aos problemas da etnologia científica;

as questões vem agora de outras ordens, obedecem a outros critérios;

uma teoria da tradutibilidade, por mais que procure levar ao limite a diferença irredutível de dois códigos, seu horizonte de trabalho é a conversibilidade, sua tendência é para a identidade comum;

certo de que não podemos deixar nossa posição relacional de tradutor desde que esta esteja associada a nossa condição de ocidentais, podemos, no entanto, imaginá-la segundo outras imagens do conhecimento que não estejam determinadas pelo horizonte comum da consensualidade;

a consensualidade que caracteriza a tarefa do tradutor opera na chave da identidade, marca lógica de nosso pensamento objetivista, de nossa ontologia representacionista;

trabalhar na chave da produção de sentido, na criação de conceitos que devam ir além de sua categorialidade modelar, idealista;

pois, no caso, ao traduzir essa linguagem outra, nosso idioma deixa de ser o mesmo e essa diferencialidade é o que nos interessa, mas troquemos essa imagem do tradutor pela do artista plástico que produz peças que ainda deverão encontrar significação, que deverão criar sua significação que seja na forma de eventos, de situações políticas, de vivências;

uma arte feita para um mundo, para experiências que ainda estão por vir e não em experiências passadas ou memórias como a arte representativa (a qual a imagem da tradução se mantém presa, determinada);

outro ponto a ser trabalhado na distintibilidade consiste em sua propriedade de operar com diferenças irredutíveis, que se configuram na imagem dos infinitesimais, de linhas que tendem ao infinito sem se convergirem efetivamente;

para isso, converge-se sobre a concepção de discurso tal como definida por foucault em sua teoria dos enunciados da arqueologia do saber;

a propriedade mimética de imitar perde todo sentido quando se suspende o caráter representativo da linguagem;

pois é a representação, a qual sustenta nossa configuração ontológica dividida em mundo das palavras, da mente, da subjetividade e mundo das coisas, da matéria, da objetividade, que dá sentido à imagem da literatura como arte da mímese, da imitação;


o que significa operar no horizonte de diferenças irredutíveis?
www.putsgrilla.blogspot.com/

distintibilidade no perspectivismo 3

meios de expressão

esses meios de expressão se expressam inicialmente e indiretamente quando se busca uma contrapor o discurso colonial e etnocêntrico do evolucionismo que marca o pensamento historicista e positivista;

o passo seguinte será buscar meio de expressão que manifestem, ou melhor, que constituam em ato, e não mais como representação, esse conhecimento;

não se trata mais de reconhecer o mitos ou os rituais como forma legítima de conhecimento, mas apropriar-se desses recursos para a construção de máquinas de guerra, de recursos de pensamento (e outros que transcendam o próprio pensamento) que se voltem contra o pensamento tradicional e sua imagem conservadora associada ao positivismo e à representação;

talvez ainda os meios de expressão não sejam problema em pensamento selvagem, apesar das entradas no bricolage e da esteticidade que marca essa imagem do pensamento primitivo;

o problema da forma já não é mais um problema da interpretação, ocupada com a leitura, com a tradução, com o sentido;

trata-se já de um problema com a reconstituição estética desse pensamento em seus próprios termos;

trata-se de uma questão de estética, de problematizar inicialmente os meios de expressão então viciados, determinados por uma imagem positiva do pensamento, que objetualiza esse pensamento, que não o busca como matéria própria, destinada a meios de expressão igualmente específicos;

problematiza-se o estilo, a escritura diante da natureza e do homem objetualizados;

o saber positivista goza com o poder centralizado do estado;

esse problema dos meios de expressão do pensamento selvagem, com a definição da noção de discurso, de um saber-poder, de um poder que se manifesta como saber, de um poder inerente ao saber, caracteriza-se como problema político, problema da antropologia política;

o problema da antropologia política de clastres é esse que vai conduzir à formulação das sociedades contra-estado, desenhando nesse percurso o projeto das máquinas de guerra, espécie de contra-antropologia ou de xamanismo anti-científico;

os meios de expressão são o problema fundamental da distintibilidade;

para além do problema da tradução, que também problematiza os meios de expressão, a distintibilidade opera em outro campo conceitual, em ruptura com a dinâmica interpretacionista e representacionista típica da tradução que se apóia numa lógica do multiculturalismo (uma natureza, muitas culturas);

a expressão, a estética, o construcionismo: não mais a compreensão e a explicação, mas a constituição política de realidades através do conhecimento: uma outra versão da verdade;

desloca-se a idéia, ainda persistente, de um conhecimento absoluto sobre a realidade, pois este deixa de estar relacionado com um sentido transcendente (a verdade absoluta) e se define numa imagem associada à imanência da expressão;

distintibilidade no perspectivismo 2

nossa intenção aqui é justamente problematizar os tais meios de expressão, essa expressabilidade diferencial que manifesta o perspectivismo, a visão que tem do mundo os agentes não-humanos, a qual se configura em seus corpos;

a intenção de mergulhar nesse exercício de imaginação consiste em tomar contato e explorar uma dobra que se constitui aí entre expressabilidade não-humana imaginada a partir dos recursos do perspectivismo e a expressabilidade do próprio perspectivismo, que confere meios de expressão inéditos à antropologia;

pretende-se ainda, a partir dessa consideração dos meios de expressão no perspectivismo, problematizar a dinâmica da identidade e da diferença nesse comércio de perspectivas, tomando (de um lado) a figura do tradutor, acionada em certos momentos para traduzir a figura do xamã, como imagem, digamos assim, de um xamã de estado, ocupado em socializar as perspectivas não-humanas;

a intenção é menos polemizar ou discutir visando qualquer fidelidade etnográfica ao xamã e sua atividade;

é mais de a de localizar contrapontos para marcar a diferença, dao que esta não pode ser positiva e, portanto, só pode ser deduzida de imagens estabelecidas

é mais a de criar perspectivas em direção ao que há de diferencial no perspectivismo;

pois certo é que (já) não se trata, há muito, de se buscar descrever o xamanismo ou explicar como pensa o selvagem, afinal, essa postura de explicar o pensamento selvagem tem sido substituída há um bom tempo por outras posições, tais como: voltar o pensamento selvagem contra o nosso, constituir (com isso) outras e novas frentes de resistência política (enquanto o estado segue avançando com seus processos de escolarização e patenteamento dos conhecimentos indígenas), redefinir a imagem positiva do pensamento marcando-o (a partir da noção de discurso) com aspectos literários, estilísticos;

distintibilidade no perspectivismo 1

(...) segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos;

(evc, perspectivismo, 2002)

a distintibilidade é uma característica fundamental do perspectivismo, que o diferencia do animismo;

segundo a distintibilidade, cada animal ou coisa possui sua própria humanidade;

esta humanidade não pode ser reduzida à humanidade humana, já que isto equivaleria a um culturalismo estendido aos outros, visto que não problematiza seus meios de expressão;

no entanto, esses meios de expressão, problema central (fundamental) da antropologia (propriamente dita como prefere evc-seeger), ou da antropologia estruturalista ou da antropologia que descende dos trabalhos de lévi-strauss (talvez ainda sem nome);

o problema para pensadores que levarão essa antropologia aos limites das máquinas de guerra, tal como clastres, enfoca-se nos meios de expressão outros, os quais deverão ter efeitos, ou melhor, se constituir enquanto efeitos em novas antropologia, em ciências e ocidentalidades outras;

21 janeiro 2008

a exterioridade da máquina de guerra
clastres não só duvida que o estado seja o produto de um desenvolvimento econômico determinável, mas indaga se as sociedades primitivas não teriam a preocupação potencial de conjurar e prevenir esse monstro que supostamente não compreendem;
conjurar a formação de um aparelho de estado, tornar impossível uma tal formação, tal seria o objeto de um certo número de mecanismos sociais primitivos, ainda que deles não se tenha uma consciência clara; sem dúvida, as sociedades primitivas possuem chefes;
mas o estado não se define pela existência de chefes, e sim pela perpetuação ou conservação de órgãos de poder; a preocupação do estado é conservar;
portanto, são necessárias instituições especiais para que um chefe possa tornar-se homem de estado, porém requer-se não menos mecanismos coletivos difusos para impedir que isso ocorra;
os mecanismos conjuratórios ou preventivos fazem parte da chefia, e a impedem que se cristalize num aparelho distinto do próprio corpo social;
clastres descreve essa situação do chefe cuja única arma instituída é seu prestígio, cujo único meio é a persuasão, cuja única regra é o pressentimento dos desejos do grupo: o chefe assemelha-se mais a um líder ou a uma vedete do que a um homem de poder, e corre sempre o risco de ser renegado, abandonado pelos seus;
e mais: clastres considera que, nas sociedades primitivas, a guerra é o mecanismo mais seguro contra a formação do estado: é que a guerra mantém a dispersão e a segmentaridade dos grupos, e o guerreiro é ele mesmo tomado num processo de acumulação de suas façanhas que o conduz a uma solidão e a uma morte prestigiosas, porém sem poder10;
clastres pode então invocar o direito natural revertendo sua proposição principal: assim como hobbes viu nitidamente que o estado existia contra a guerra, a guerra existe contra o estado, e o torna impossível;
disto não se conclui que a guerra seja um estado de natureza, mas, ao contrário, que ela é o modo de um estado social que conjura e impede a formação do estado;
a guerra primitiva não produz o estado, tampouco dele deriva;
e assim como ela não se explica pelo estado, tampouco se explica pela troca: longe de derivar da troca, mesmo para sancionar seu fracasso, a guerra é aquilo que limita as trocas, que as mantém no marco das "alianças", que as impede de tornar-se um fator de estado ou fazer com que os grupos se fusionem;

10 pierre clastres, la sociétc contre l'etat, ed. de minuit; "archéologie dela violence" e "malhenr du guerrier sauvage", in lible I e II, payot; neste último texto, clastres faz o retrato do destino do guerreiro na sociedade primitiva, e analisa o mecanismo que impede a concentração de poder (do mesmo modo, mauss havia mostrado que o potlatch é um mecanismo que impede a concentração de riqueza);

(deleuze-guattari, 1000 platôs, tratado de nomadologia: a máquina de guerra)


abordemos pois a questão do político nas sociedades primitivas; (...) a extrema diversidade dos tipos de organização social, a abundância, no tempo e no espaço, de sociedades dessemelhantes, não impedem entretanto a possibilidade de uma ordem na descontinuidade, a possibilidade de uma redução dessa multiplicidade infinita de diferenças; redução maciça, uma vez que a história só nos oferece, de fato, dois tipos de sociedade absolutamente irredutíveis um ao outro, duas macroclasses, cada uma das quais reúne em si sociedades que, além de suas diferenças, têm em comum alguma coisa de fundamental; existem por um lado as sociedades primitivas, ou sociedades sem estado; e, por outro lado, as sociedades com estado;
(clastres, a sociedade contra o estado)

já cheguei à distinção (um tanto dogmática?!!!) de clastres entre sociedades com estado e sociedades contra estado, o que (se deve converter) se converte aqui em antropologia de estado e antropologia contra-estado;
passo então a estabelecer regularidades e, a partir delas, contraposições entre tais antropologias;
entre essas regularidades, destaco a propriedade de relativização ante à homogeneização cultural que caracteriza o contexto de ocidentalização que dá origem à antropologia;
de um lado, o que se tem é um processo de uniformização cultural representado pelo estado e seu aparato legal, sua origem religiosa, suas instituições de normalização social, suas academias e seus intelectuais de estado;
de outro, um pensamento que afirma a diferença, que por muito tempo reproduziu o movimento programado pelo estado até entrar em contato com as margens da sociedade, do sentido, e daí passar a emanar um outro conhecimento, catalisado por outros poderes;

é daí que, sem dúvida, se afirma a genealogia da moral como livro original da antropologia;
uma voz vindo de outra direção, uma voz dissonante entre os valores ocidentais, uma análise impetuosa da configuração psicológica do homem ocidental ao colocar o problema dos valores em meio a um universo positivista de produção de conhecimento, saber comprometido com o poder vigente e estabelecido, saber conservador;
esse saber que se configura na forja artificiosa do poder que o determina e redefine uma imagem naturalizada do conhecimento, tem em seu horizonte uma outra imagem do homem e do conhecimento;

genealogia da moral: não como livro, categoria que deixa de fazer sentido na obra do autor, e sim como procedimento de criação em antropologia;
procedimento pautado na diferença, na dissonância, em meio a um conhecimento voltado à conformação, à identidade;
esse procedimento criativo se caracteriza pelo posicionamento (mais perspectivo que relativista) da genealogia, que consiste em um devir que tende a escapar sempre, a desconstruir numa espécie de anti-positivismo dinamicista, qualquer centralidade discursiva, toda homogeneização subjetiva, cada consenso valorativo;
um perspectivismo de estado fundamenta-se nesse recorte unicizante e homogeneista de um coro das coisas, um positivo coro dos contentes, parlamento sem oposições ou de oposições neutralizadas;

conduzido pelo modelo de gestão da reserva (fadado ao fracasso desde o início), a representação legal dos moradores tem conhecido fracassos reafirmados a cada eleição (os quais as mentalidades óbvias dos intelectuais de estado atribuem a seus desafetos pessoais, esterilizando assim a questão que poderia ser problematizada a partir daí) no decorrer dos seus anos de existência e atuação;
o outro lado dessa descrença em relação à representação legal dos moradores na forma de associação consiste nessas duas iniciativas, nesses dois processos que quero alinhar: trata-se dos kuntanáua, por um lado, e o centro yorenka ãtame de outro;
o alinhamento aleatório desses dois fenômenos pode se dar a partir do cruzamento desses grupos, sua participação no contexto em que se origina a reserva, da aliança entre índios e seringueiros que marca esse contexto;
no entanto, o que nos interessa em tais processos é seu caráter diferencial;
cada qual investe a sua maneira sobre a diferença;
o centro yorenka ãtame na forma de produção de conhecimento, no reconhecimento de tecnologias e saberes constituídos, produzidos na floresta que geram riqueza e são autônomos, independentes da forma acadêmica de pesquisar;
o kuntanáua afirmando ao lado de um histórico combativo de extrativistas seringueiros, dos quais chegaram constituir modelo cientificamente estudado e comprovado, escapando ao fado e levando ao pé da letra o vaticínio segundo o qual, no brasil, somos todos índios, exceto quem não é;
pois é, de família típica, os milton passam a exceção (ou nem tanto, a partir da fórmula citada), ou melhor, afirmam sua diferença, sua porção de diferença;
por outro lado, o que se faz na reserva nos últimos anos, como uma atitude típica e generalizável daquele antigo seringueiro, é afirmar a porção branca;
afirmar a porção indígena de um lado, afirmar a porção branca de outro: o que quer dizer isso, qual o alcance dessa colocação...;


obra de jorge rivasplatasubjetivações 3
aliança dos povos da floresta
um exemplo consiste na aliança dos povos da floresta, motivada pela política hostil do governo em relação aos extrativistas e aos indígenas, assim como pela violenta política local, marcada pelo seringalismo;
segundo os estudos que tenho feito sobre a região do alto juruá, os seus movimentos sociais, as experiências de gestão territorial indígenas, tudo isso segundo nossa abordagem, nosso referencial teórico, a aliança dos povos da floresta consiste numa experiência paradigmática de subjetivação, aquilo que buscamos contrapor a concepção de identidades;
nesse movimento de aliança entre índios e seringueiros propõe-se uma política enfocada no elemento étnico, na relação entre índios e brancos, na problematização da categoria seringueiro ou extrativista, categoria ao mesmo tempo étnica, econômica, política;
projetos de gestão territorial são traçados coletivamente e algo interessante ocorre: os índios têm algo a oferecer aos brancos, um modelo de organização espacial que pode dar origem a políticas públicas ambientais;
momento ímpar na história dos movimentos sociais, os indígenas propõem, no contexto do surgimento do ecologismo, um modelo de gestão territorial, o qual daria origem aos planos de uso e aos planos de manejo;
no entanto, depois da conquista do reconhecimento legal o projeto de gestão da reserva toma outro rumo, quando se decide por retomar a organização em torno do caucho, da aliança com a indústria da borracha, agora sob coordenação as cooperativas de seringueiros;
um segundo momento que será propício ao pensamento da subjetivação, trata-se de vinte anos depois, quando um dos grupos mais importantes na criação da primeira reserva extrativista do brasil, os milton, passa por um processo de indigenização, retomando seus traços étnicos e assumindo legalmente sua herança ancestral;
esse não se trata de um ressurgimento étnico como tantos outros, geralmente motivados por questões territoriais em que se faz necessária a garantia de território através do amparo legal do estado;
esse movimento de etnicização se dá num contexto de avaliação dos quase vinte anos da política de gestão territorial da reserva extrativista do alto juruá e a constatação de sua fragilidade, ou melhor, de sua apropriação por outros partidos no contexto das disputas políticas locais;
mais que nunca, a reserva passa a fazer parte do município de marechal taumaturgo, o que se ouve freqüentemente;
enfim, toda a problemática política, ainda não analisada pelo viés da subjetivação, nos permite situar a questão dos processos de subjetivação na região que de um lado se dão maciçamente no sentido de uma urbanização do imaginário, em que moradores da floresta, famílias inteiras da reserva extrativista assumem, tanto abertamente, como das mais implícitas formas, os valores da cidade;
já, de outro lado, o que se tem são dois processos concomitantes: de um lado a etnicização dos kuntanawa, que, por se tratar, volto a afirmar, da família de seu milton gomes, figura central, junto a seus filhos, no processo de constituição da reserva, tem projeção específica no quadro dos processos de subjetivação locais aqui traçados, e de outro a experiência ashaninka do centro yorenka ãtame, centro de pesquisas ashaninka situado na região que visa aprofundar e projetar para comunidades da reserva suas experiência de manejo, resultado de seu processo de gestão territorial nas últimas duas décadas;
a referência criada pelo centro ashaninka consiste numa das mais importantes experiências de processos de subjetivação da amazônia por uma série de fatores tais como: resultado de duas décadas de gestão territorial voltada à sustentabilidade, a chave da pesquisa que possibilita a produção de ciência e tecnologia florestal e uma questão fundamental: uma iniciativa própria de uma organização indígena oferecer um serviço à sociedade não-indígena;
para um estudo da subjetivação, dos processos de subjetivação, essa iniciativa é paradigmática, até por que ela coloca em xeque os recursos de um pensamento da identidade;
além do mais, essa experiência permite desdobrar as experiências de gestão territorial trazidas pelos índios de suas aldeias para o pequeno centro urbano nos termos de uma ecologia social e de uma ecologia da mente ou ecologia subjetiva;
essa ecologia subjetiva consiste a criação de referências subjetivas diferenciais, que vem se contrapor às referências homogeneizantes da formação técnica que constitui o horizonte da sociedade ocidental, mesmo em uma comunidade na floresta (além da escola que consiste no motor de transformação das comunidades, outros fenômenos importantes são o governo, a televisão ou as comunicação e seus veículos de massa, o mercado de produtos industrializados, o favorecimento do comércio em detrimento do agroextrativismo);
a ecologia natural, que se refere aos processos vivenciados nos laboratórios de manejo promovidos pelo centro de pesquisas se desdobra em um fenômeno social e num fenômeno subjetivo que poderia ser pensado como uma recuperação da identidade do extrativista, em crise pela persistência de um outro regime econômico e um outro sistema de valores associados a um outro modelo identitário;
não vejo sentido em marcar assim a subjetividade, em substancializa-la, enquanto uma economia da produção subjetiva parece fazer mais sentido;
algo se recupera com esses processos (etnicização ou capacitação de agentes agroflorestais), uma identidade em crise ou em transformação? talvez;
novas subjetividades, resultantes de processos de subjetivação definidos a partir das experiências de gestão comunitária;