23 maio 2006


a máquina
a primeira palavra com que os autores definem a antropologia brasileira é pessoa; a partir do deslocamento da imagem da pessoa proposta por mauss em a noção de pessoa convida-se a pensar uma etnopsicologia;
a imagem do homem do séc. XIX que forma nossa epistéme é a imagem de um sujeito sem outrem, cujo personagem conceitual é robinson crusoé;
essa concepção de pessoa é redefinida por mauss em sua teoria nativa que propõe o outro constituído a partir de sua própria imagem, da imagem constituída em suas instituições;
esse simples deslocamento tem um efeito avassalador, e mauss o sabe; seu alcance é amplo, no sentido que deverá redefinir não apenas a imagem que fazemos do outro ou do seu pensamento: essa operação consiste em redefinir completamente os princípios de nossa epistéme, que se definem por um mundo sem outrem;
esse é o efeito de tão pequena conversão, uma redefinição em todo o nosso saber, em seus métodos; é por essa redefinição de corpo e alma que passará o estruturalismo;
na sua definição de um método próprio, hilemórfico, se volta contra os fundamentos históricos do método em ciências humanas esboçados desde hegel;
já se passara pela experiência nietzsche, por sua genealogia; era necessária uma redefinição da imagem de história à qual estava integrado método das ciências sociais até malinowski e boas;
é com mauss que se vê os indícios de um método específico da etnologia;
é essa etnopsicologia que nos conduzirá a uma etnofilosofia que consiste numa teoria do conhecimento nativa ou teoria nativa do conhecimento;
essa etnofilosofia se constitui sob as práticas do xamanismo com o nome de corporalidade;
a corporalidade integra o universo das práticas rituais dos ameríndios tornado teoria do conhecimento nativa;
o modelo de uso dessas práticas é dado na obra de clastres por sua iluminação da tortura nas sociedades primitivas; o texto aborda com maestria o problema da relação entre sensível e inteligível;
clastres opera com uma escrita sensível, escrita na pele, que rompe com modelo de conhecimento ocidental; os diversos níveis interiores do texto, níveis metateóricos nos desdobram, simulando um solo arenoso, movediço;
vê-se aqui o estupefato do ocidental ante essa escrita da imanência, essa literatura da crueldade; o ocidental não pode admirar esse sistema de crueldade, essa arte trágica do corpo, de uma estética fisiológica;
escrita na pele, escrita na carne: sistema da crueldade; o autor propõe aqui sua máquina de guerra, apropria-se do sistema primitivo para voltá-lo contra seu regime político; não se perde na imagem do outro, descrevendo um objeto, sabe o poder que possui construir esse objeto, sua função política e a volta contra seu próprio criador, como máquina de guerra;
dessa forma, pode ser pensado como uma aplicação prática, antes do tempo, da proposta dos antropólogos associados em a construção da pessoa;
o espelho II
romper com a epistéme do sec. XIX consiste em romper com essa imagem do homem isolado, do homem sem outro; o personagem conceitual que se situa nessa zona é robinson crusoé e suas experiências de um mundo sem outrem, em que sua personalidade conhece um processo de diluição;
em nossa literatura se conhece igualmente um personagem cuja potência está em definir tal dinâmica; esse personagem é o alferes de o espelho de machado de assis; nesse conto o autor, que tem no campo da literatura psicológica seus maiores casos, ou melhor, clássicos, vide o alienista, cria um universo para situar a dissolução do alferes, identificado à sua farda, na fazenda deserta, abandonada, sem nenhum outro que sustente sua imagem de alferes; é aí que sua imagem ou sua alma se dissolve diante do espelho;
os recursos que constituem essa epistéme, esse modelo de conhecimento, caracterizam-se por encaminharem um discurso monológico; talvez sejam as artes e a literatura que elaboraram os recursos principais que irão permitir a reformulação do pensamento;
a polifonia na literatura abre uma perspectiva sobre os recursos enunciativos e sobre seu papel central numa outra imagem da literatura, das artes, do pensamento;
no teatro a contribuição do teatro épico do séc. XIX com autores como ibsen e tchekov, no qual se rompe com a perspectiva unificada sobre os acontecimentos, os personagens constituem perspectivas distintas, recortes diferenciados sobre o mundo;
romper com tal epistéme do séc XIX é redefinir o nosso pensamento e nossa linguagem; redefinir uma série de ilusões constituídas por essa imagem do mundo e do conhecimento elaborada nessa epistéme;
romper com a dinâmica linear e progressiva escamoteada em nossa sensibilidade pela história é uma das tarefas dessa reforma do pensamento; toda instituição de uma sensibilidade, uma moral, uma percepção de matriz metafísica está pautada num gênesis e num apocalipse;
romper com essa linearidade progressiva que, segundo foucault, nos parece evidente é uma de nossas tarefas, reformular assim a imagem da história com que nos identificamos a ponto de acredita-lo a própria essência da realidade;
o espelho
a música consiste no elemento paradigmático do saber indígena; é a música que fornece a melhor imagem do pensamento; seu caráter sensível, sua criação coletiva, seus recursos enunciativos nos conduzem a um processo de criação que possibilita a dissolução do autor que já buscávamos com os recursos literários;
a imagem da antropologia, quando esta se dobra sobre o seu corpo e pode olhar-se a si mesma é a imagem do ad-vocatus, aquele que ocupa a perspectiva alheia, aquele que agencia a voz alheia;
essa atitude de ocupar a perspectiva alheia, no entanto, é o próprio princípio do xamanismo;
o que se encontra como sede do xamanismo é uma extensa quantidade de recursos que consistem em fornecer a perspectiva outra;
essa perspectiva outra pode ser a do animal de poder, a de um espírito que pode se deslocar a grandes distâncias, a do espírito do inimigo; neste sistema, os recursos disponibilizados pelo sonho tem uma importância fundamental;
assim, a imagem do xamã e o conhecimento produzido por ele fornecem a forma que tomará o modelo de conhecimento a ser reformulado pela antropologia;
portanto, não se trata estritamente de reconhecer o conhecimento indígena em sua especificidade; o problema é que reconhecer esse conhecimento equivale a reformular automaticamente todo o modelo e toda a estrutura que funda a nossa epistéme;

19 maio 2006




Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar do local em que se mantém imóvel. Os seus olhos estão escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. Tal é o aspecto que necessariamente deve ter o anjo da história. O seu rosto está voltado para o passado. Ali onde para nós parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que não pára de amontoar ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele quereria ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá-las. Esta tempestade impele-o incessantemente para o futuro ao qual volta as costas, enquanto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas. Esta tempestade é aquilo que nós chamamos progresso.
(Benjamin, in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política)

benjamin faz contribuição fundamental á antropologia do estruturalismo ao refletir sobre as virtualidades; também para ele, assim como em lévi-strauss, a problemática da representação e da arte tem caráter antropológico e filosófico; já contextualiza nessa epistéme as representações em larga escala ou cultura de massa;
pergunta ele: como pensar a história pós-fotografia, e a história pós-cinema; se essas técnicas recriaram a pintura, o que farão ao método histórico, impregnado de evolucionismo, confundido mesmo com ele? em suas teses sobre a história já não teoriza mais, senão põe em prática um método próprio ao acontecimento;
traz a reflexão com o tom trágico que se saboreia em seus últimos escritos; aqui a história é inscrita na pele; texto e acontecimento se interpenetram;
a ruptura proposta ao método histórico e todo o pensamento do século XIX, a caracterizada epistéme do séc.XIX, é obra desses pensadores; temos traçado nessa empreitada uma linha que perpassa as obras de nietzsche, mauss, benjamin, lévi-strauss;
o que define essa linha é essa ruptura com o pensamento transcendental do séc. XIX, conforme foi deflagrado por foucault, outro autor que parece aparecer na linha traçada;
em toda essa operação epistêmica consiste a obra-pensamento de foucault;
em deleuze de crítica e clínica encontra-se uma leitura nietzsche/lawrence; o anticristo e o apocalipse dos autores fornece material para a operação de deleuze; a operação consiste em problematizar as críticas ao pensamento escatológico que marca o pensamento metafísico ocidental e modela a epistéme até o século XIX, incluindo aí o materialismo histórico;

o mais profundo é a pele
depois da leitura de clastres e passado algum tempo no convívio com seu vislumbre da tortura nas sociedades primitivas, chega-se agora perto de compreender o sopro dessa máquina de guerra;
essa economia que não se desterritorializa no acúmulo, conduz-se num pensamento da corporalidade;
o grafismo do bárbaro se desdobra e ganha novos sentidos quando o pensamento ocidental deixa de buscar a ilusão da profundidade no discurso metafísico e percebe os efeitos de superfície próprios à linguagem, principalmente a verbal; esse desdobramento da linguagem sobre si é oferecido como resignificação da superfície;
as operações virtuais ganham novos terrenos na antropologia com as releituras da história e de seu método por autores como nietzsche e benjamin;
nietzsche vai ironizar o positivismo de um cientificismo evolucionista com seu olhar político sobre o método histórico, que chamou genealogia;
;

o corpo nu
o choque do homem vestido ante o corpo nu do selvagem: o pensamento marcado pela objetividade entra em choque com atividades voltadas às subjetividades humanas e não-humanas;
o corpo como suporte: sua qualidade de imanência de não desdobramento marca profundamente a colonização dos cronistas; o pensamento do colonizador está todo expresso em meios desdobrados; o livro é a própria imagem dessa sociedade que tem nas leis escritas uma de suas maiores conquistas e características;
escrever-se, ou inscrever-se no corpo, tem, assim, um alcance epistêmico e, sobretudo, político que o lança da corporalidade ao regime político dos indígenas;




os corpos dóceis
a educação e seu modelo militar, reprodutor das técnicas de disciplinarização como controle de prisioneiros é o tema do primeiro tópico de disciplina, terceira parte de vigiar e punir;
as pesquisas realizadas sobre os suplícios, material que serviu aos nossos estudos anteriores, é o ponto de partida para a entrada no universo das disciplinas;
aqui, todo o arsenal desenvolvido anteriormente, inclusive uma ciência das torturas como gênese dos estudos de fisiologia, prepara o laboratório e as cobaias que serão estudadas nos processos de disciplinarização;
todo indivíduo é tratado como um marginal a ser corrigido; o olhar sobre o aluno é um olhar do reformador; a educação tem seu modelo nos reformatórios para deliqüentes;
a transgressão e o não saber legitimam um discurso que lembra o discurso do religioso sobre o pecador, discurso que lhe intensifica o poder sobre o outro;
desejar e não saber ainda tem resquícios do pecado; essa aprendizagem se assemelha a um processo de purificação, de limpeza, de correção; não saber insere-se num obscuro universo de negatividade, um inferno que vem sendo pintado há muito pelo discurso moralista do padre-psicólogo-professor;
sua autoridade perante a sociedade depende dessa imagem negativa do aluno-delinqüente que povoa nosso universo, que projeta velhos discursos jesuíticos e de reformadores morais sobre os estudantes;

18 maio 2006


guerra do tráfego
muitos pensavam que o falcão, memninos do tráfico, documentário realizado por mv’bill, rapper do circuito nacional, lançado em rede nacional pelo fantástico, fosse a última tecnologia em termos de apropriação dos meios de comunicação para veicular, num viés antropológico, o olhar da periferia sobre a periferia;
depois do dia quinze de maio de 2006, pode-se pensar num novo momento na antropologia brasileira; o episódio paulistano da guerra da informação deflagrada pelo pcc à fragilizada sociedade paulistana demonstrou um uso elaborado dos meios de comunicação num episódio de estratégia de guerra;
não só a sociedade paulistana pode ver-se a si mesma em sua situação de transtorno apavorado, como esse medo foi deflagrado pelo olhar do outro sobre si;
acostumada a controlar o lho do rei, o olho do big brother, deparou-se com o direito do marginal de apropriar-se dos meios para veicular sua mensagem;
nietzsche e benjamin há muito já nos teciam crônicas de uma época em que a história e os acontecimentos seriam produzidos e sua produção seria o próprio acontecimento;
mas as pessoas na sala de jantar ocupam-se de estado de direito e pena de morte, estão ocupadas em nascer e em morrer;

15 maio 2006


abc da antropologia 2
“por oposição ao discurso epistêmico, o discurso estrutural sobre os mitos, o discurso mito-lógico deve ser ele próprio mito-morfo. deve ter a forma daquilo de que fala.” (a escritura e a diferença: 241)

a perspectiva, no entanto, não se restringe ao mero ponto de vista narrativo, como se pensou no quid pro quo da observação participativa e do relativismo, ela consiste numa crítica profunda da linguagem, visto que não só o método ocidental domina o pensamento outro e a forma de expô-lo, como também a linguagem por ele utilizada, seu código;
o pensar deixa de ser o pensar determinado pelo saber ocidental, pela razão ocidental; o pensar pode buscar outras razões que constituam o saber: a questão passa a ser: quais as condições? qual a política?
ao se dar conta disto, o pensamento ocidental se volta sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo, sobre sua própria materialidade;
deslocar o problema do conteúdo para a forma; dar-se conta de que o meio determina a mensagem; como o outro vê e como constitui, como cria seu olhar sobre o universo; em qual campo se joga?
não significa idealizar o modo de ver do outro, pois o foco está sobre: como esse olhar do objeto pode reconfigurar meu olhar solitário;
praticamente consiste em operar e criar com recursos narrativos abertos com a abordagem da crítica ao discurso histórico transcendental, lê-se metafísica, do séc. XIX;
assim, operando com o devir, a forma passa a contar com um coeficiente de abertura que possa receber do percurso elementos para seu método;
traçam-se assim elementos que podemos denominar de oraculares;

abc da antropologia 1
para se entender a antropologia hoje, recorre-se aos usos que tem sido feitos dessa disciplina; a concepção de uma antropologia, uma ciência do homem, tem sua gênese no âmbito de um pensamento evolucionista que busca estudar o homem ocidental civilizado como uma evolução, como estado acabado dos outros povos com os quais teve contato nos processos de colonização modernos;
essa perspectiva inicial que marca a antropologia não se restringe, no entanto, à imagem que o homem faz de si mesmo: ela cala fundo no conhecimento que ele produz;
assim, essa imagem do homem ocidental é reproduzida em seu conhecimento, em seus métodos, em sua epistème; isso explica porque, ainda que seja fácil compreender como o civilizado elabora uma imagem de si e do outro, é bastante complexo compreender o alcance epistêmico dessa constituição;
essa conversão se inicia com a crítica filosófica à antropologia que constitui a obra de mauss; com sua noção de fato social total e suas teorias nativas é que se coloca o problema da perspectiva em antropologia;
é quando se percebe a antropologia como processos de construção de perspectivas; essa conversão tem um alcance até então impensado na epistemologia ocidental; todo o pensamento humanista que havia se constituído sob o modelo objetivista do método racionalista encontra um ponto de fuga por onde deverá se reformulado;
o problema político é o seguinte: 1) o pensamento ocidental sendo criticado em seus princípios políticos ao ser utilizado por grupos – ou pela perspectiva de grupos – que tiveram seus conhecimentos criticados por esse pensamento; 2) ao serem destacadas as característica fundamentais desse pensamento, no que o distingue do racionalismo ocidental, utiliza-lo, utilizando-as, para criticá-lo em seus limites, reformulando-o;
o primeiro problema a ser trabalhado, assim, é o do evolucionismo, imagem primeira da antropologia, uma antropologia racista;da ruptura da antropologia com essa tradição, resulta a constituição do método etnológico que estende a sua crítica da imagem desse conhecimento evolucionista ao método histórico, base da sociologia;

12 maio 2006


a proposta de refletir sobre documentos visuais tem o intuito de conceber uma imagem do pensamento que corresponda à concepção de antropologia que está sendo desbravada por lévi-strauss;
essa antropologia está sendo pensada na perspectiva contemporânea da interpretação de sua obra que dá prioridade menos aos processos racionalizantes de buscar ordenações estruturais nos textos e mais ao seu aspecto construtivista;
outro aspecto que se frisa hoje na interpretação dessa obra é seu caráter metalingüístico ou metateórico;
a necessidade da antropológica encontrar uma linguagem própria nos conduz a todo um levantamento de processos textuais que possibilitam o deslocamento do narrador da narrativa etnológica, no deslocamento do centro narrativo numa descentralização, na pulverização desse ponto cego;

“quer dizer que pode haver um ‘saber’ do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vence-las: esse saber e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo.” (vigiar e punir:28)

assim, denominamos de golpe de misericórdia no discurso positivo, a essa passagem em que seguimos, agora, descrevendo a utilização dos antigos mecanismos penais como verdadeiros laboratórios na pesquisa com cobaias, os marginalizados, os quais prepararam as fórmulas de nosso sistema de disciplinas e controle;
desde os sistemas de crueldade até nossos processos de controle virtuais, é no corpo que está concentrada nossa tecnologia de vigília;
é nessa capacidade de programar os softwares que se especializaram ultimamente nosso aparato de vigília e controle, no processo de formatação;
reformulando o tempo e os espaços, todo o arsenal dos rebeldes e malditos anteriores das mais diversas áreas (literatura, poesia, teatro, cinema, música etc) é tirado do campo de acesso dos novos detentos; o tempo da televisão, o espaço das grandes cidades reformula as sensibilidades;

“...em nossas sociedades, os sistemas punitivos devem ser recolocados em uma certa ‘economia política’ do corpo: ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo quando utilizam métodos ‘suaves’ de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata – do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão.” (vigiar e punir:28)

no direito, nas instâncias jurídicas, nos sistemas punitivos é que estão enraizados todo o complexo disciplinar; o corpo como foi utilizado e estudado com os suplícios – lembrando sempre que a ciência das torturas constituem nossos primeiros estudos fisiológicos: saber exatamente quanto de dor um corpo agüenta...;
é o controle dos corpos que permite a instauração do discurso das disciplinas que irão se constituir nesse universo, do discurso das instituições irão se organizar em torno da vigília e do controle dos corpos: a igreja é substituída pela escola, pela fábrica, pelo hospital, pela creche, pela clínica, por todas essas instituições que estabelecem saberes, discursos racionais sobre o controle de corpos e almas;
a produção de saber está estreitamente ligada à produção de controle; a criação de disciplinas, de ciências, de cadeiras etc relata em seus discursos os processos de configuração dos campos sociais de controle e coerção pelas instituições;

“...as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos ‘negativos’ que permitem reprimir, impedir, excluir, suprimir; elas estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas tem por encargo sustentar.” (vigiar e punir:26)

buscamos dar conta dessa passagem do sistema de crueldade, descrito por nietzsche na genealogia da moral, até nossa sociedade disciplinar e de controle;
compreender a continuidade entre sistema de crueldades, calcado nas penalidades que caracterizam a aurora das ciências jurídicas, e a instauração de nosso arsenal de controle social moderno;
o sistema penal da estrutura jurídica articulado à mística cristã, formula o discurso inaugural da sociedade moderna, que vê na razão o instrumental de reformulação da sociedade; as luzes como verdades absolutas se deixam estruturar em um discurso similar àquele que servira o império místico medieval;
essa passagem que nos justifica o estudo da ética no direito, pois todo sistema normativo da sociedade moderna, marcado pelos mass mídia, que reformulam a história e a cultura hegeliana e marxiana, enfim, todo esse sistema de coerção que caracteriza a sociedade ocidental, está enraizado no sistema de crueldade e tem no corpo o elemento central;
enfim, é o direito o ponto de partida de nossas reflexões sobre as sociedades de controle contemporâneas; todo o processo dos mass mídia e a indústria cultural que o reformula tem suas bases no sistema jurídico primitivo e suas penalidades;

11 maio 2006


inicia-se a partir de nossas últimas conclusões sobre a especificidade da antropologia, um levantamento de recursos técnicos estritamente textuais que embasariam uma sistematização da antropologia articulada a uma série de linguagens: da verbal à corporal, da linguagem visual à audiovisual, dos mass mídia à busca de uma linguagem via web;
aqui a noção de agenciamento é central; o agenciamento foi descrito com precisão no pensamento deleuzeano, em seu viés antropológico; agenciar associa-se à prática antropológica de apropriar-se de perspectivas alheias;
tal recurso tem uma longa história e muitas metamorfoses no curso de nossa literatura ocidental: do coro grego aos monólogos teatrais, do narrador onisciente ao personagem passando pelo testemunha, do romance realista à crise épica do teatro modernista que conduz ao discurso indireto livre, linguagem mais próxima do delírio do puro-devir; no âmbito cinematográfico a narrativa necessita buscar seus próprios recursos, distintos do teatro e da literatura;
a música, estreitamente ligada à mitologia ou narrativa oral, possui recursos próprios e parece ser a linguagem mais rica em termos de agenciamento; já se fez exaustiva análise de como tais recursos são explicitados e utilizados pelos autores que conduzem nossa bibliografia: eduardo viveiros de castro e pierre clastres;
é o momento agora de explorar esse universo da técnica narrativa nos diversos códigos, nas diversas linguagens; é a partir daí que se poderá transpor para a prática textual o resultado de nossas explorações;
uma das experiências iniciais desse trabalho é a composição da enciclopédia de arte acreana; é um trabalho de composição coletiva que buscará constituir um cenário corrente e provisório da arte acreana; cada verbete terá um autor e dará conta de artistas, grupos e escolas de arte de rio branco inicialmente; a busca será a de uma linguagem própria via web;

09 maio 2006


definir a especificidade da antropologia como conjunto de recursos que possibilitam a abertura do texto a outras subjetividades e outras imagens do conhecimento;
já há algum tempo se tem buscado definir a antropologia como gestão de vozes, o antropólogo como esse arquiteto de discursos;
dar início aos nossos estudos de textos audiovisionários com vidas mutiladas mostrou-se uma ótima entrada; eliane nos trouxe seu frescor hermesiano, típico dos comunicadores e que por vezes nos falta;
experimentamos de sua vivência como criadora de personagens e arquiteta da concisão; sobre o caráter antropológico de seu documento, ouvimos seu relato sobre sua busca de tirar de cena o narrador para trazer ao centro os personagens e suas estórias;
o filme é conduzido pelos caracteres, que dão o tema que será tratado pelos interlocutores; inicia-se tratando da doença, seja pelos próprios portadores ou, exemplarmente, pela linguagem médica;
do meio para o final o filme dá uma virada com o caracter preconceito: com ele se inicia uma viagem ao mundo interior das vivências subjetivas de nossos personagens; ao desbravar essa dimensão com a seqüência amor, sexo, afetividade e finalizando com sonhos, a autora nos dá uma lição de sensibilidade e, de quebra, uma aula de antropologia;
os recursos utilizados para deixar a cena para os interlocutores se mostram eficientes quando bem utilizados para abrir caminho para sua aparição sob nossos olhos como seres cheios de vida, com um universo simbólico próprio;
o filme é marcado assim por uma primeira parte que nos serve de exemplo de uma linguagem mais objetiva, mais sociológica, ainda que sem a presença de um forte narrador entremeando os dados, e por uma segunda parte em que os personagens dominam a cena, marcando seu viés antropológico;
a busca que se segue é definir recursos propriamente textuais, recursos de linguagem que abram o texto para a polifonia, para a eqüipolência, buscando conduzir uma definição simples da antropologia;
imagem: bacurau

08 maio 2006

recordando o cachoeira, sob a lua das cinco da manhã - num olhar crepuscular da tadeuma; quando cheguei por lá; salve o cacheira, gratidão pela vibração das florestas que me inspiram; salve seus florestãos com sua sensibilidade, seu conhecimento; salve o nosso encontro, nossa amizade, nossos vôos; grato amigos

04 maio 2006


nossa operação tem buscado definir, tendo por base as experiências de elaboração de projetos monográficos, a especificidade ou o caráter antropológico intrínseco às nossas pesquisas;
todo trabalho possui caráter político: tem-se aqui a intenção de comprovar a antropologicidade de toda pesquisa em ciências sociais;
para tanto temos iniciado por distinguir o conteúdo da forma, definindo a antropologia por sua forma antes que por seu conteúdo; assim, antropologia não se define por estudar povos indígenas ou minorias;
em seguida operamos a distinção paradigmática, enfocada por lévi-strauss em etnologia e história, entre sociologia e antropologia;
a ruptura da antropologia com a sociologia indígena consiste na afirmação de sua especificidade, na opção epistemológica de operar com categorias nativas esboçando uma etnofilosofia;
operar e criar com o pensamento selvagem marca a ruptura com a tradição que enfoca o primitivo e sua sociedade como objetos de estudo;
esses elementos deixam de ser fim para se tornarem meios, meios com os quais o pesquisador reconstruirá um mundo um universo de sentido que buscará legitimar politicamente sua validade;
o que marca a tradição da sociologia indígena é a monologicidade de seu discurso, sua hermeticidade a vozes alheias vem marcada pelo hálito do homem ocidental universal, essa forma abstrata projetada na sociedade estudada: o eu-pesquisador;
outra marca dessa tradição é a busca de algo que já estaria nessa sociedade, uma hipótese ou uma lei que vai buscar sua confirmação na realidade: herança da tradição histórico transcendental do século XIX;
operar a legítima antropologia ou etnofilosofia é constituir um texto composto de uma plurivocidade, de uma polifonia, de uma pletora de vozes que desbancam a imagem do sujeito ocidental universal;
outro elemento constatado nessa construção é o princípio de que o sentido se constrói no texto, enquanto este se constitui; não se busca nada na realidade a não ser a experiência, pois o texto se constitui no processo, é o processo que lhe atribui sentido;
essa operação resulta de uma ruptura da imagem de subjetividade fechada que o sujeito ocidental vestiu em si; essa experiência resulta de uma concepção de subjetividade aberta, que privilegia o devir como princípio epistêmico;

02 maio 2006


o estruturalismo, portanto, dobra o texto sobre o seu próprio corpo ao considerar o que estava nas entrelinhas e servia como intensificador de poder à antropologia: o distanciamento entre selvagem e civilizado;
como é instaurada pelo próprio texto etnológico essa diferença, de que forma a objetividade com que se descreve esse selvagem é o próprio instrumento de sua invenção, de sua criação, de sua constituição;
ao mesmo tempo que se inventa o selvagem, o civilizado se constitui por diferença; constitui-se naturalizado, em oposição ao exotismo do outro;
nessa invenção do outro a barbárie é justificativa para naturalizar os atos bárbaros da civilização, por isso lévi-strauss afirma: bárbaro é aquele que crê na existência da barbárie; ou seja, não há nada mais bárbaro que o discurso da moralidade, que o moralismo;
fonte imagem: metalinguagem oiticica

o problema da naturalização da moral é nosso ponto de partida; de que forma nos inserimos em padrões morais que estão instituídos e nos adaptamos a eles, nos acostumamos a tais valores como se fossem necessários, como se fossem naturais;
colocar este problema, eis uma baliza em nosso pensamento; propor uma genealogia da moral como fundamento do discurso filosófico tem o mérito de dobrar o discurso sobre si mesmo, de fazer com que ele se volte a sua estrutura, ao seu material, ao seu nível de imbricamento com tais valores, enfim, a uma reflexão metodológica, melhor diria, uma experiência metodológica cuja cobaia é o próprio cientista, ou seja o próprio método;
o nome que se dá aqui a essa dobra é dobra sobre a imanência ou volta sobre o próprio corpo;
aqui os corpos e os sujeitos, os corpos enquanto inscrição de sujeitos, enquanto criação de subjetividades, são material semiótico na constituição de linguagens, de códigos que servem para ordenar, para legislar a sociedade;
lege, ler, lei: o que se lê através das leis, nas entrelinhas do discurso positivo de ordenação da sociedade: o suplício nos coloca diante de uma pletora de discursos inscritos no corpo, vê-se o corpo como um espaço de inscrição que é desdobrado em outra superfície: o papel;
a lei é ler, toda leitura traz em si uma lei: mas onde está escrito isso?
o sentido dado e o sentido criado: eis a grande ruptura de tal método; o discurso cinetífico se fundamenta na neutralidade, na averiguação, na descrição, na constatação;
a criação de sentido é vista como enganação, pois os únicos procedimentos válidos para constituição de verdades trabalham com o sentido dado, de forma que o cientista vai buscar o sentido que está dado na natureza por meio de procedimentos neutros, de métodos objetivos: o sentido é, assim, extrínseco ao texto;
o sentido vindo de fora do texto: este modelo tem uma ascendência que remonta à certa filosofia grega, acentua-se no pensamento escolástico e encontra vazão na era moderna via discurso político-científico das Luzes;
esse modelo epistêmico fundamenta e é fundamentado por uma imagem de homem, uma imagem do sujeito; essa imagem do sujeito é constituída no âmbito de uma história e de uma cultura, as quais, por sua vez, implicam-se por essa imagem do homem;
esse pensamento, cujo sentido é extrínseco ao texto, é evidenciado em seu histrionismo, em seus excessos, com o cientificismo e moralismo, marcados pela instrumentalização política da ciência que foi batizada de positivismo;
sua imagem de um homem civilizado e superior, dominador das forças naturais, homem da responsabilidade e da compaixão, é desmontada para análise; o que se constata é uma oficina em que processam subjetividades, em que se forjam almas;
fonte imagem: rublev gabriel

vigiar e punir
foucault, ao traçar um paralelo entre suplício e disciplina, nos conduz a refletir de que forma os dispositivos, enquanto laboratórios de experiência com transgressores, resultaram em nossos dispositivos de controle, em nossas normas sociais;
dos suplícios às disciplinas, observa-se que os dispositivos se tornam mais complexos, distinguem cada vez menos os supliciados dos supliciantes;
o aumento do coeficiente de liberdade ao indivíduo deve-se ao próprio aperfeiçoamento do sistema, aperfeiçoamento de sua capacidade de controlar;
para se tornarem cada vez mais complexos, os dispositivos exigem dos indivíduos uma postura mais ativa, que coloque à prova e permita o aperfeiçoamento desses dispositivos;
com as disciplinas se conhece o controle como forma de constituição de subjetividades;


a questão do método etnológico, problematizada numa revolução copernicana pela obra de Lévi-Strauss, instaura uma dobra da antropologia sobre seu próprio corpo;
esse pensador desloca o arsenal positivista de problemas de sociologia indígena, característico do funcionalismo, para propor um método pautado na forma, método cujo objetivo era romper com tal tradição metodológica, redefinindo tanto a abordagem como o problema da antropologia;
ao deslocar o princípio do método da sociologia indígena para o pensamento selvagem, o autor propõe automaticamente seu procedimento, visto que o problema passa a situar-se sobre o eixo saber/poder, ao reconhecer um sistema de produção de saber/poder do lado de lá, no pensamento selvagem;
assim, o problema da etnologia muda de natureza: instaura-se/define-se um método próprio à etnologia; o problema tem agora natureza epistêmica e política e tal redefinição coloca a disciplina numa crise;
essa crise faz a disciplina voltar-se para si, para seu corpo, para sua composição, para seus métodos, seus recursos de composição;
essa ruptura ecoa em distantes paragens: ao propor o princípio de imanência, na ruptura com a tradição histórico-transcendental, como princípio do método etnológico, o autor instaura uma linha de fuga a um impasse do pensamento moderno;
o autor inverte a proeminência essência/aparência via pensamento selvagem: a imago do xamã como contracientista redefine o a relação entre mundo e conhecimento: as linguagens criam realidades;
dar status de pensamento ao pensamento selvagem é uma operação que exige uma contradefinição de ciência; tal contradefinição não pode ter a mesma natureza que sua definição positiva: o problema se constitui no eixo saber/poder;
não se busca mais, assim, explicar a sociedade indígena, a cosmologia indígena, com os métodos ocidentais - crítica ao totemismo - a operação é antropologizar o próprio pensamento, utilizando-se para isso do pensamento selvagem;
o eixo gravitacional se desloca do suposto e constatado “mundo do nativo” para as linguagens como produtoras de sentido;
as linguagens, os sistemas de produção de verdades (saber) têm poder político de instaurar realidades; o conhecimento científico - tanto instrumento político, quanto produto epistêmico - é problematizado em sua dimensão política;
a ciência resulta de uma divinização da imagem do mesmo, do self do civilizado, aquele que tem poder/saber de definir a verdadeira realidade;
essa mesma onipotência da ciência resulta de um fenômeno de linguagem, da instauração reafirmada de uma série de procedimentos de produção de verdades, de uma apropriação de tais procedimentos e seu emprego num despotismo político;
tais procedimentos fornecem a imagem do homem ocidental: bárbaro é aquele que crê na barbárie: o moralista;
esse homem natural, essa subjetividade dada, esse modelo de um si-mesmo é o produto principal desse maquinário: de tanto lidar com monstros, ele acaba por se tornar o pior deles;
a ciência pode ser pensada como seu subproduto, ela exige uma imagem formada do sujeito;
foto fonte: eduardo viveiros de castro: arco e flecha araweté
foto-fonte: eduardo viveiros de castro: arco e flecha araweté

um bom exemplo de genealogia, para redefinir nosso quadro histórico, nossa santa ceia, é um conto de jorge luis borges: kafka y sus precursores;
simplesmente o autor esboça uma tese, compõe um ensaio literário sobre a obra do escritor tcheco, considerando que a obra de kafka, tão insólita, recupera seus percursores, então soterrados sob as pilhas de livros da biblioteca de babel;
o que o autor leu ou não leu? isso importa tanto quanto: o que o autor quis dizer com esse escrito? aqui o texto tem uma realidade própria, desvincula-se da psicologia do autor;
o texto de borges é um desdobramento de seu tema e da obra analisada; ele cria um campo textual que se consiste justamente do encontro dessas obras; cria uma dobra em que essas linhas se cruzam, linhas bem distintas, heterogêneas, que chegam a recriar a própria obra de kafka;
as influências não se dão por trás, não estão na intencionalidade do autor; elas são tecidas nas obras, como elementos estruturais, procedimentos técnicos, recursos expressivos etc;
o texto nos desvincula bruscamente de uma irrealidade histórica, de projeções transcendentes a um passado, de uma referência a um homem, um sujeito, um autor insuspeito;
somos acordados repentinamente de tal torpor, despertados então para a imanência do texto, sem pressuposições, sem história; o texto se cria em nossa frente, se tece sob os nossos olhos;
o problema da intertextualidade insere-se na pura textualidade da biblioteca de babel, desvinculado do autor, do contexto etc;
o texto é criado sobre o texto: não é um texto sobre um autor ou uma obra, não se refere mais ao texto como realidade transcendente, como referente; o texto é utilizado como material, serve a confecção do novo texto: é esse o tipo de precursor exigido no texto de borges;
essa dobra sobre o texto, sobre a imanência da textualidade, é uma potência na obra de borges; sua obra é um arsenal de instrumentos para escapar aos quadros confinadores da tradição historico-transcendental do século XIX;
essa releitura revolucionária que se propóe a esse vetor da literatura fantástica nos leva ao cerna da própria literatura fantástica: a ruptura com a mímese tradicional, ou seja, a autonomia do texto ante a “realidade” da época;
autonomia da textualidade: o referente é destronado, a literatura não representa a realidade, ela é pura criação, ela descria a realidade, sua matéria é virtual; o espectro do referente ainda modela sua realidade: a literatura do século XX ainda convive com o pensamento (universo mental) do século XIX;
tem-se neste texto um exemplo do procedimento genealógico instaurado por nietzsche na sua genealogia; o texto dá a ver seu corpo, o seu processo de constituição é a construção de seu próprio corpo: essa instauração do corpo inscrito na imanência da textualidade é a exigência fundamental do procedimento genealógico;
não importa aqui a referência a um autor ou uma obra, por mais que nossa paisagem mental ainda nos enquadre na santa ceia, o que vale aqui é o texto como matéria de composição, como bricolage, como incrição de um corpo textual;
é nisso que resulta o texto: pura textualidade imanente, apropriando-se inclusive da própria referência, campo dominado pelo trascendente;
foto fonte: constructing kafka