31 dezembro 2006


por uma antropologia do padre
só existe uma psicologia, é a do padre...
acredito que a estarrecedora frase de nietzsche bem se aplica à antropologia;
essa antropologia possui seu eixo, seu campo gravitacional apoiado na cultura ocidental, visando refratar qualquer campo de força outro que possibilite uma redefinição multíplice do pensamento;
a antropologia do padre equivale à antropologia da catequese, antropologia que opera a partir do mito criador da monoteologia ocidentalista, cujo princípio enunciativo é a condenação da voz alheia ao ostracismo ou ao mutismo, ou melhor, à uma cooptação;

30 dezembro 2006

série: ilusões óticas
volto às distintas concepções da antropologia – e do pensamento – inglesa e da antropologia francesa;
enquanto um se reveste de um projeto que visa redefinir o estatuto da ciência e a natureza do texto, o outro reforça a cadeia em que se mantém encerrado o discurso de tradição metafísica;
os críticos não-construtivistas do construtivismo proposto por foucault, deleuze e outros, desconfiam há muito da possibilidade de se desenredar da tradição metafísica: o velho riso cínico diante do terremoto nietzsche;
nessa crítica, em que se distinguem atitude e conhecimento, a própria mofa em relação à nietzsche se confunde entre o discurso irônico de nietzsche e a fala do feiticeiro;
já me referi a essa passagem, passagem do zaratustra com que jogo em meu texto o que se ouve...(mattos:2004), passagem em que o autor desdobra a voz de zaratustra nos personagens do feiticeiro e do homem de ciência na tribuna da caverna, em que nos identificamos com esses pseudo-zaratustras e caímos do cavalo;
jogo de linguagem que nos possibilita deduzir toda uma teoria do conhecimento, teoria lingüística ou teoria dos enunciados que está desdobrada em diversas dimensões e procedimentos pela obra do autor e aqui se desenrola em recursos literários de regimes enunciativos;
teoria que nos possibilita desdobrar vias e articulações com a leitura de nossas referências, costurar com as linhas de fuga dos autores que estimulam a criação de boas paisagens conceituais;
bem, o que iniciei a dizer, enfim, é que são zelosos os guardadores da concepção inglesa, que retoma a tradição metafísica pelo viés do empirismo e do liberalismo;
o risco das experiências criadoras, de poder deixar de lado a segurança do mundo das essências, é ameaçador para aqueles que trabalham com as concepções reacionárias e os conceitos conservadores;
de fato, a experiência de devir propõe uma ruptura milenar no pensamento, ruptura com o muro que se cristalizou na distinção que tem importante passagem em aristóteles entre cultura e natureza, entre o que se define por natureza do cultural e natureza do natural, em que se pauta o estatuto que define essa diferença;
aliás, dando um passo a frente, que apropriação se fez dessa distinção que dá fundamento à própria percepção, percepção essa que é tomada como elemento do âmbito da natureza e não em sua dimensão cultural, ou seja todos os homens perceberiam de forma homogênea;
remetemos novamente à o que se ouve..., já que foi este nosso ponto de concentração a partir do texto de nietzsche a concepção do trágico, em que trata bem essa construção cultural da percepção e a forma com que ela se apresenta naturalizada para dar base à filosofia e à ciência;
essa construção da percepção, articulada à dimensão textual do discurso, é um ponto privilegiado em nietzsche, é o ponto em que se articula também a construção da concepção de consciência e de psicologia que sustenta igualmente esse discurso filosófico e científico visado, vide genealogia da moral;

26 dezembro 2006



o que interessa da perspectiva de que a antropologia se define por agenciar perspectivas é dimensionar o seu caráter discursivo, a especificidade discursiva da disciplina que se escamoteava na superfície a fachada positivista;
essa dimensão discursiva começou a ser explorada massiçamente na obra do estruturalismo de lévi-strauss que se propõe pensar não com o pensamento selvagem, mas a pensar como pensa o selvagem, ou seja ainda ficando preso ao seu suposto selvagem, ainda que com o pretexto do texto, do mito, do material etnográfico;
a operação discursiva desdobrada, no entanto, nos leva para além do nível dos textos antropológicos, conduz mesmo à permissão de construções discursivas liberadas pela virtualidade;
sabe-se que a virtualidade não é bem vista em nossa doutrina acadêmica que mantém sua fé atrelada à dinâmica da tradição metafísica do pensamento que remonta pelo menos às heranças do pensamento grego despojadas pela tradição judaico cristã;
essa tradição de pensamento atrela-se ao princípio do modelo e a cópia, segundo o qual o pensamento é guiado pela realidade, obedece às leis de representação da verossimilhança e, principalmente: ambos, pensamento e mundo pensado, possuem a mesma natureza;
acredita-se, aqui, necessária a ruptura com tal modelo para a compreensão da antropologia com a especificidade que se lhe atribui aqui;
a partir dessa ruptura que se pode ressignificar redimensionando todo o pensamento antropológico na chave do etnocentrismo, um etnocentrimo que se impregna nos princípios e pressupostos do pensamento ocidental em seu processo genealógico, ou seja, compreendendo-se o conhecimento e a noção de verdade sempre providos de sua dimensão política, vistos como instrumento político, pois esse viés no permite manter o distanciamento da noção de conhecimento como descrição objetiva da realidade;
a esse processo é importante manter paralelo, já que destacamos o funcionamento político da metafísica como dinâmica de pensamento, o processo religioso aliado ao pensamento filosófico, aliás, dimensões de um mesmo processo;

25 dezembro 2006

construção da antropologia2
o percurso feito para chegar aqui pode ser acompanhado nas descobertas dos regimes enunciativos dos guarani e seu emprego no texto antropológico, para citarmos o exemplo de pierre clastres;
a antropologia, em sua redefinição, sua ruptura com essa tradição do pensamento de matriz, que irá culminar no positivismo como momento marcado pela decadência desse pensamento, descobre um veio de exploração: o embate entre universos de conhecimento;
depois de séculos de promoção do etnocídio via máquinas religiosas de conversão e máquina científica, a antropologia se volta para sua própria prática, o caráter etnocêntrico de sua abordagem do conhecimento;
a antropologia hoje não pode mais ser uma antropologia descritiva, que não passe por uma reflexão detida sobre a natureza do conhecimento, principalmente sua natureza política, diria político-epistêmica;
para não se limitar a uma crítica teórica do conhecimento que não teria muito a contribuir à prática da antropologia, os procedimento discursivos para agenciar vozes, pensamentos alheios são valorizados ao longo da construção dessa antropologia;
quando mauss propunha se pensar com o pensamento nativo, talvez não tivesse idéia dos desdobramentos desse princípio;
com lévi-strauss e a descoberta (lingüística) da dimensão formal do texto antropológico, coloca-se em jogo discursivo voz do xamã, dicurso do xamanismo e voz do antropólogo, discurso antropológico;
enquanto lévi-strauss envereda pelas estruturas dos mitos, buscando fundamentos para um pensamento selvagem via construtivismo, clastres descobre no saber ritual, no regime discursivo dos cantos sagrados guarani um instrumento que possibilitará um salto em relação à eficácia do pensamento indígena, a seu rendimento metodológico;
pois é, aqui, nos regimes enunciativos elaborados na ritualidade indígena, em seu sistema de cantos, está a chave para a compreensão da transposição epistêmica que se propõe fazer nessa redefinição da antropologia;
construção da antropologia1
em tão pouco tempo tornou-se quase lugar comum o que dizíamos há um ano neste bloco: a antropologia opera com perspectivas, com agenciamentos de pontos de vista;
essa definição procede de um veio da antropologia que pode ser situado a partir da intenção de uma ruptura com certa concepção de conhecimento de tradição metafísica que pressuporia um mundo que sustenta a linguagem, um universo de representação pautado e valorado a partir da verossimilhança, tendo por referência a fidelidade a um constructo perceptivo pressuposto;
a ruptura com essa dinâmica de conhecimento, cujo positivismo é um marco crepuscular, vai se constituir no procedimento construtivista, que, aqui, remontará ao devir;
no romper com esse modelo metafísico, transcendental ou histórico, como se queira chamar, propõe-se o devir como procedimento de um pensamento trágico em contraponto ao ser que modela o pensamento metafísico;
no devir, concebe-se o mundo como constructo de representação, de linguagem: o mundo não pode ser descrito pela linguagem, pois ele não está pronto em lugar algum, ele está em constante construção;
pressupor um mundo pronto e valorado, no entanto, é a arte política da ciência ocidental, que montou um arsenal bélico e religioso para sustentar durante séculos sua concepção de mundo e conhecimento a povos sem mundo e sem concepção de conhecimento;
portanto, esse mundo sustentado como referência a nossa linguagem é um produto que busca reificar um projeto que resulta de uma modelagem que remonta há séculos e que articula história, filosofia, pensamento religioso, ciência, tudo isso para submeter o saber dos povos não ocidentais;
no entanto, no momento, a veia política que nos interessa é outra, que se relaciona mais com os procedimentos dessa antropologia da perspectiva, das inteligências coletivas, de modelos de produção de conhecimento que explorem regimes enunciativos que reformulem a forma de gestar as vozes do interlocutores num texto antropológico, pois aqui a gestão das vozes é a dimensão política mais importante do texto;
a condução política aqui não está associada à militância do antropólogo, a própria concepção de antropólogo, autor e sujeito foram reformuladas com a reconsideração a figura do objeto, do nativo, do interlocutor;o caráter político do texto se associa à distribuição de seu regime narrativo;

24 dezembro 2006

isto não é um cachimbo: óbvio perigoso
o que se tem no quadro de magritte...
pode-se pensar num primeiro percurso para dar conta da questão;
o caminho trilhado nessa primeira possibilidade nos conduz pela distinção entre imagem e real, proposta pelo enigmático signo, entre o cachimbo desenhado, que tenta nos enganar ao pretender assemelhar-se a um cachimbo, e o cachimbo verdadeiro, cuja imagem o desenho se apropriou;
é óbvio: tem-se o desenho de um cachimbo e uma frase que diz "isso não é um cachimbo" e conclui-se disso que a imagem não é a coisa, que o desenho não é o cachimbo verdadeiro, no caso representado pela palavra cachimbo;
bem, o enigmático cachimbo “verdadeiro”: uma velha história há tanto tempo contada e recontada: como escapar a ela?
sobre o enigmático cachimbo “verdadeiro”: alguém já viu esse misterioso cachimbo do magritte... há quem diga que magritte nem fumava...
quero um dia escapar a esses sujeitos ocultos, os verdadeiros e os justos, para, enfim, me ater às linguagens disponíveis à análise: discurso visual e discurso verbal;
o que está oculto no discurso desdobrado acima: enquanto a palavra nos remete ao suposto cachimbo “verdadeiro”, a imagem é só uma imagem;
assim, a palavra não só evidencia sua potência ainda soberana em nossas construções mentais, também se articula com nosso desprezo pela imagem diante dela, a verdadeira forma da representação;
subsiste nesse dilema o valor que está pressuposto em nossas avaliações: o virtual nos assombra como a forma do fantasma, nós que estamo imersos no mundo do virtual (globalismo), pois a dinâmica de nossa representação ainda obedece a platônica distinção modelo/cópia;
a imagem, forma do virtual, é vilipendiada como cópia do modelo, da idéia, enquanto a palavra suprime as diferenças ante a coisa em si do “verdadeiro”;
acreditar no “verdadeiro” equivale a manter a crença, predefinir um percurso de pensamento que sustenta uma dimensão paralela à linguagem, o mundo por trás da linguagem;
sustentar esse mundo que sustenta as palavras assimila-se a não devir o poder de produção que define a linguagem, poder esse que consiste em ver a linguagem como linguagem para se permitir assumi-la como mundo;
é este o mesmo dilema do mito, que por vezes se precisa reifica-lo para se acreditar nele, não se pode acreditar nele sendo mito, necessita-se definir sua irrealidade;
enquanto não se assume a materialidade da linguagem não se pode distingui-la de seu referente;
para devir, só liberando a forma;


transcriação livre do texto o andarilho de nietzsche
o estranho na estrada, o andarilho sem ninho num mundo impessoal, só isso, sem vítimas, sem mortos, ou, sequer, feridos, pássaros intactos, a salvos, de preda;
nada mais muito do que isso; seu coração vive em trânsito, em trânsito se desprende da demasiada e depressiva pressa que nos prende a todos, inclusive eles, nessa cápsula de sentido, nessa ilha de consciência;
sem pressa caminha o peregrino, e a cidade que o entrevê, sem saber lhe tem ódio, sem saber o que faz assume sua crueldade;
há tanto tempo, toda noite, o mesmo; que noite virá, que sol virá?; que tempo fará?
preso para fora de casa, pra fora da cidade, o caminhante tem toda a noite para si, tem consigo a intimidade da noite, o toque da lua nova é só seu, só ele está despido e, nu, pode receber esse toque;
e vem a noite, como um sol negro, a noite sobre a noite o apavora; o entorpecimento o captura, o atordoa sentir-se noite como a noite: sua prova;
abandona-se para escapar com vida, sobreviver;
atravessando a eternidade dos sóis entrevê um deserto de olhares, olhares secos, olhares áridos, olhares que dragam, estéreis: os olhos da cidade procuram seduzi-lo numa ingenuidade embriagada;
o sacrifício que depara é desprovido de glória, um sacrifício inglório e banal: simples esterilidade;
acolhido pelo perigo, o andante atravessa o deserto do dia;
atravessa tendo por impulso, por vezes, o vento de outro deserto, que torna seu passo mais leve, que o faz caminhar;

22 dezembro 2006

problema fundamental desta abordagem deste tema: a subjetividade, a construção da pessoa no âmbito da etnologia brasileira: sua contribuição política;
em que medida o tema da construção da subjetividade, do processo sujeito e não da coisa ou substância sujeito, de um devir mais que de um ser, pode nos conduzir ao centro do problema político;
interessa, portanto, não apenas a quantidade de recursos conceituais propiciados pela abordagem do tema da pessoa nas sociedades indígenas, primeira dimensão do texto, e sim sua imanência, essa segunda dimensão da prática que se realiza no texto enquanto ação: não apenas do que se fala, e sim, também, o que se faz;
seria a abordagem de uma forma de subjetividade cristalizada, substancializada no próprio pensamento ocidental como uma descoberta científica que precisaria ser levada aos povos sem sujeito;
nietzsche já dizia que a única psicologia é a do padre...partir de uma crítica da concepção de sujeito ocidental e seu procedimento metafísico de constituição, cuja sede é a consciência socrática ou a alma cartesiana, é um adianto para a revisão de nossos pressupostos etnocêntricos;e partimos então do corpo como superfície de inscrição da subjetividade, como elemento estranho do pensamento nativo, espécie de vírus do pensamento nativo que promete danificar por completo nosso sistema se rapidamente não se propuser uma redefinição de nossos pressupostos epistêmicos;outro problema que se levanta a partir das definições de antropologia propostas pelos programadores, é o do lugar que tem as cosmologias indígenas, as formulações nativas em nosso processo de construção de antropologia;de um lado se tem o pensamento indígena, sua configuração cultural e de outro é contraposta a realidade empírica do antropólogo, à qual só tem acesso o mito da ciência universal que descobre inclusive o multiculturalismo;
o corpo como campo em que se produz a subjetividade, zona em que se indistinguem natureza e cultura;
num idioma próprio, num regime enunciativo específico que coloca a perder mesmo nossos fundamentos lógicos (do um sem o múltiplo);
pois corpo não se retringe aqui à fisiologia, já que se adianta às trocas e transformações próprias das instituições rituais nativas;
os fluxo de diversas naturezas atravessam o corpo, redefinindo-o segundo esse devir, desubstancializando-o e instalando nele essa natureza dinâmica;
pessoa1
hoje foi dia de fazer antropologia da antropologia, de lançar um olhar antropológico – olhar indígena ou brasileiro – sobre ingleses e franceses;
tomou-se como tarefa distinguir, via dimensão política, o que de fine a especificidade do estruturalismo inglês e do estruturalismo francês;
cá estamos nós novamente entre franceses e ingleses – lembre-se de a verdade e as formas jurídicas, quando percebemos a natureza dessa oposição;
o que é interessante é que em determinado momento de a construção da pessoa nas sociedades indígenas, texto programático na antropologia brasileira, elaborado por seeger, da mata e viveiros de castro em 79, num exercício de antropologia da antropologia, os dois grupos parecem dividir-se numa sociedade dualista;
bem, para essa tarefa que nos estabelecemos, de definir a especificidade de cada um desses dois referenciais teóricos da antropologia, que são o estruturalismo inglês e o francês, definiu-se que tal distinção epistêmica/epistemológica tem pode se situar no âmbito metodológico: enquanto o procedimento indutivo comanda o empirismo característico do estruturalismo inglês, é a combinação indutivo/dedutivo do construtivismo que caracterizará a antropologia francesa;
situar na baliza metodológica do construtivismo a ruptura com o empirismo positivista dos ingleses, conduz a, inclusive, incluir mauss como um precursor avant la lettre do estruturalismo;
essa ruptura com a abordagem positivista do empirismo inglês se define desde o início da obra de lévi-strauss, em textos como etnologia e história de forma teórica, e o feiticeiro e sua magia, de forma mais metodológica, quando o construtivismo é trazido ao centro da apropriação etnográfica e da composição textual;
outro e mesmo problema apropriado no debate desta noite se refere à natureza política do material abordado: a articulação corpo/pessoa na construção de uma etnologia brasileira;

21 dezembro 2006

corpo3
imagem da consciência forjada no couro e no sangue, nos músculos, distinta dessa imagem da mitologia ocidental que configura nosso modelo de conhecimento positivista, a qual não considera a configuração histórica, política ou cultural da forma sujeito, já que esta é um pressuposto – o pressuposto que possibilita a continuidade do discurso mítico ao discurso científico e vice-versa;
essa é uma proposta de processo de desmontagem do sujeito ocidental, de sua neutralidade ingênua para uma sua circunscrição não apenas histórica mas propriamente epistêmica;
aqui, novamente, ou melhor, constantemente a natureza política dos processos é imanente à construção do conhecimento;
essa dor, estranha ao homem ocidental da lei escrita no papel indolor, do espaço social construído separado da sociedade com suas caóticas dinâmicas políticas avessas à ordem social;
essa dor é apropriada por clastres como signo potente das máquinas de guerra, da possibilidade de criar uma antropologia dos avessos, para além inclusive de uma suposta antropologia simétrica, já que fundada na dissimetria;
eis aí o desafio de articular o sistema de conhecimento xamânico, representado aqui pelos jogos enunciativos, próprios dos cantos indígenas, e a corporalidade, essa socialidade do rito;
como se inventa o sujeito, e – preocupação decorrente dessa – como se inventa o sujeito que inventa, ou sujeito do conhecimento: eis, talvez, o questionamento antropolítico mais importante por agora;
corpoZ

qual seja: a filosofia socrática apóia-se sobre a noção de consciência, é à consciência racional que se reduz essa subjetividade, a qual se define por sua natureza transcendente;
tal supremacia da consciência, que define a imagem do homem ocidental, do homem racional de descartes, conduz e se articula com o idealismo platônico, como apropriação filosófica da metafísica, com sua assimilação enquanto sistema filosófico racional que divide o mundo numa dinâmica da dualidade;
o sujeito dessa subjetividade conforma-se ao ser mais que ao devir, essa subjetividade é marcada pela naturalidade;
a essa concepção de uma subjetividade naturalizada nietzsche propõe passar por sua máquina genealógica: não se trata de submeter essa concepção de subjetividade à história, a qual está inscrita nesse mesmo processo, mas de despistar a história com sua dinâmica tendenciosa;
para isso o autor nos serve da genealogia: convida-nos a uma ficção histórica, a uma história do que poderia ter sido – bem diferente de uma história do que foi: trabalha-se aqui no campo do devir, onde se opera por virtualidades e atualizações, e não por modelos e cópias, ou por verdades e mentiras – e o que poderia ter sido é uma ficção na qual a dor ocupa lugar central, típico do pensamento trágico;
a dor aqui se apresenta como elemento que possibilita a configuração histórica, ou melhor, genealógica da consciência;
é a dor o instrumento de escrita criado pelas sociedades de marcação, instrumento que cria as condições para o desabrochar da consciência;
imagem da consciência bem distinta, essa constituída no universo ritual das iniciações, daquela narrada nas mitologias, nos gênesis, em que a consciência se define em uma origem divina e desse dos céus cercada de anjos;

corpo1
avanços consideráveis de nota foram dados em nossa apropriação e reconstituição arqueológica do visionário texto de pierre clastres, da tortura nas sociedades primitivas;
da noção de sociedades de inscrição remete-se à referência do antiédipo como texto marcante na reparadigmatização da concepção de sujeito – também encabeçada por foucault, outro dos autores que constituem a concepção de antropologia aqui esboçada pelo pensamento francês;
para esses autores esse processo de redefinição do sujeito, proposto no antiédipo como esforço programático, acaba inserindo-se no processo de redefinir a própria concepção textual do texto, o que atrai muito a escrita de nietzscheana de clastres dos projetos de máquinas de guerra: lembre-se de que é o impulso de antiédipo em da tortura que abre caminho para as ScE, para as máquina de guerra;
o texto deixa a relação forma/conteúdo tradicional para assumir uma dinâmica cuja referência remete-se aqui bem particularmente à interpretação que se fez do texto a concepção do trágico, texto germinal e programático de nietzsche;
nesse texto, o autor desdobra seu assunto voltando-o para o próprio corpo do texto;o corpo do texto deixa de ter a alma por referência, ganha sua propriedade de imanência;
o princípio desbravado em a concepção do trágico ganha horizonte em a genealogia da moral: nessa obra, considerada o marco fundamental da antropologia – tendo inclusive superado o ensaio da dádiva, o outro marco – o autor coloca em cheque a concepção de sujeito que sustenta o pensamento ocidental, a qual remete ao pensamento grego e sua natureza metafísica reapropriada pelo cristianismo – conforme mauss de a noção de pessoa;

20 dezembro 2006

vozes
a constituição de um eixo que possibilite articular a palavra mística inspirada do canto guarani – e seu regime enunciativo apropriado no próprio corpo de profetas na selva – com a escrita no corpo das sociedades de marcação do apocalíptico da tortura nas sociedades primitivas é a tarefa que se impõe novamente;
algo que se notou a princípio refere-se a sua intenção de colocar em questão, inicialmente, os valores pressupostos nos conceitos utilizados e na abordagem própria à antropologia;
o valor negativo que carrega consigo a noção de primitivo, e, por conseqüência, o positivo sob a de civilização;
outro ponto que não foge nos debates dessa obra é sua referência intensiva à linguagem, linguagem do nativo, do indígena, a importância da linguagem para o guarani, as belas palavras como discurso inspirado e cumpridor dos procedimentos próprios aos jogos discursivos típicos do xamanismo guarani, bem como de outros xamanismos;
já é clastres que define o xamanismo por sua especificidade não só lingüística, mas discursiva, e não só discursiva, mas enunciativa;
a contribuição desse sistema de pensamento, que trafega nos textos de clastres da especificidade mística às propriedades políticas, vai se desenhando como máquina de guerra, detonando a natureza política da linguagem e da antropologia, ou seja, da implicação política da linguagem na antropologia;
esse é o viés para percorrer o fio político que conduz ou corta da obra de levi-strauss à obra de eduardo viveiros de castro passando por foucault e clastres;
a linguagem como dimensão em que se dão esses jogos enunciativos, esses diálogos, as superfícies em que se dão essas aberturas de sujeitos discursivos;

03 dezembro 2006

ailton krenak durante exposição em rio branco acre (diálogos interculturais) conhecimento perspectivo z
o que faz o interesse aqui de uma perspectiva como a do ailton krenak no figurino guerrilheiro é o movimento de revelar-nos a maneira com que continuamos a nos situar – mesmo os indígenas – no horizonte de uma sociedade unidimensional e homogênea, ou seja, da sociedade dominante, segundo coordenadas definidas por essa dimensão, por essa cultura, por sua dinâmica, seu código de valores;
a isso ele se referia como o grande lençol ou bandeira que se estende sobre nossas mentes, homogeneizando a sociedade civil do caribe ao pampa;
em sua guerrilha cultural, busca circunscrever, ou enrabar, como diria deleuze, a antropologia;
não procura acordos ou chegar a consensos sobre conceitos, mesmo o de cultura;
sua concepção de diálogo é outra e o intercultural redefine a própria concepção de diálogo;
para esse ativista, o poder-conhecimento se produz e define na dinâmica do conflito;
é esse o seu caos criador que se tentava de toda forma doutrinar, por parte de palestrantes e organizadores, em um cosmos trafegável, já que estamos limitados a decodificar negativamente o conflito e positivamente o consenso, mesmo na construção do conhecimento e dos direitos legais, campos em que o conflito é a própria condição;
esse caos criador descende de um sistema de organização política indígena que possui a guerra e suas leis como princípio, no qual a guerra tem valor positivo, em que os guerreiros são figuras de prestígio
[1];
segundo essa dinâmica da guerra, das máquinas de guerra, o pensamento não pode pautar-se pelo consenso em torno de conceitos e suas definições;
é, de fato, um desafio para nossa mente, nosso sistema racional, permitir ou conceber vizinhos, ou melhor, outros impérios serem erigidos num campo concebido antes como exclusividade de um só povo, de uma só tradição, de uma única forma de subjetividade;
é um desafio para nosso pensamento que tem no consenso seu eixo gravitacional, para nossa racionalidade secularmente amestrada segundo um complexo e uma dinâmica de construção de verdades pautados na submissão, no convencimento, no domínio, na doutrinação de catequese;
se nosso monoteísmo exclui por definição a possibilidade de existência de outros sistemas místicos, como lidar com essa abertura da antropologia/etnologia no seio do pensamento científico?
no princípio da dimensão política do perspectivismo, ou melhor, de sua natureza política, já que o perspectivismo define a natureza política do saber, só há produção de conhecimento ou antropologia quando há conflito;
talvez por isso, seu ponto de partida seja o conflito de sistemas de saber, entre naturalismo e animismo, objetividade científica e subjetividade xamânica, entre observação e descrição empiristas e regimes enunciativos imaginários de cantos místicos;

[1] forma de guerrear diferente da nossa, uma sociedade em que os guerreiros são sacrificados e marcados negativamente, marginalizados pelo paradigma de uma ordem autoritária e desigual;
gilvan muler oliveira, ipol;

o conhecimento perspectivo: suas condições não o influenciam, constituem-no;
dissolve-se a possibilidade de ideologias (programa de hugo chavez), pois só há ideologia (rede globo);
redefine-se a concepção do saber, de pensamento como algo que possui interioridade, o pensamento passa a ser pura superfície;
o conhecimento deixa de parecer um grande acordo, deixa de pautar-se no consenso, na verdade científica, para se pensado numa dinâmica do conflito, bastante trabalhada nas aulas de epistemologia;
ao deixar de pautar-se pelo consenso da experiência empírica do laboratório na construção da verdade, saímos do esquadro da concepção humanista e iluminista de um conhecimento universal que seria a base do progresso humano via furor pedagogicus;
o conhecimento é aqui um campo antropológico: a tensão de diferentes saberes que entram em conflito em um campo de batalha, situado num território que deve ser justamente o objeto da disputa;
a partir das condições fornecidas e criadas nesse território, das estratégias utilizadas, das máquinas de guerra compostas por cada um desses sistemas, é que se constituirá um saber;
o saber, ou a cultura, revestem-se e são investidos de um caráter político que não se limita a ficar a parte do pensamento positivista, racionalista e empirista, que caracteriza o modelo de ciência ocidental;
tal natureza política do conhecimento é mesmo responsável pelo desmoronamento das estruturas que sustentam tal pensamento científico;
se me perguntas: qual o passo dado depois disso, após essa concepção nietzchiana do saber, pela antropologia simétrica;
respondo de pronto: que é daqui o ponto de partida dessa antropologia, e que ela não faz mais que sistematizar, aplicar, colocar em prática e medir as conseqüências desse velho e visionário projeto;
em relação ao discurso e ao sujeito que constituem as demais dimensões desse panorama, vejo que elas se articulam nos escritos de nietzsche;