30 junho 2011

Isso significa que a “invenção” de Wagner não consiste nem na imposição de uma forma ativa externa a uma matéria inerte, nem da descoberta de uma pura novidade, nem na fabricação de um produto final a partir de uma matéria-prima qualquer. Isso a afasta dos modelos mais recorrentes utilizados no Ocidente para pensar o ato de criação: o modelo hilemórfico grego, o judaico-cristão da criação ex nihilo, o modelo capitalista de produção e da propriedade. A invenção wagneriana é, antes, da ordem da metamorfose contínua, como acontece na imensa maioria das cosmogonias estudadas pelos antropólogos, em que as forças, o mundo e os seres são sempre criados e recriados a partir de algo preexistente. Ponto que acarreta uma série de conseqüências.
A primeira é o fato de que esse conceito de invenção-criação tem mais a ver com arte do que com ciência e técnicas.Não é por acaso que a pintura de Bruegel, Rembrandt, Rubens e Vermeer, a poesia de Morgenstern e Rilke, a música de Beethoven, Haydn, Mozart e o jazz aparecem ao longo do livro como meios de explicação da atividade do antropólogo. Pois esta atividade é definida justamente em termos de sua criatividade, termo que gera o título do segundo capítulo (“A cultura como criatividade”) e que aparece, direta ou correlatamente, de cem vezes ao longo do texto. A particularidade da antropologia é que a criatividade do antropólogo depende de outra (e de ): aquela das pessoas com quem escolheu conviver durante um período de sua vida. Aqui tocamos num ponto fundamental, pois o reconhecimento da criatividade daqueles que “estudam” é, para Wagner, condição de possibilidade da prática antropológica.
Mais do que isso, o antropólogo deve estar preparado e disposto a assumir duas premissas: reconhecer naqueles que estuda o mesmo nível de criatividade que crê possuir; não assimilar a forma, ou o “estilo”, de criatividade que encontra no campo com aquele com o qual está acostumado e que ele próprio pratica.
Wagner é, assim, o primeiro a propor um verdadeiro construtivismo para a antropologia.
(goldman)

21 junho 2011


uma velha questão
se a  droga remete a essa causalidade perceptiva molecular, imanente, resta a questão de saber se ela consegue efetivamente traçar o plano que condiciona seu exercício (p.79);

que palavras mais simples do que percepções errôneas (artaud), maus sentimentos (michaux), para dizer no entanto a coisa mais técnica: como a causalidade imanente do desejo, molecular e perceptiva, fracassa no agenciamento-droga; os drogados não param de cair naquilo de que eles queriam fugir: uma segmentaridade mais dura à força de ser marginal, uma territorialização mais artificial ainda porque ela se faz sobre substâncias químicas, formas alucinatórias e subjetivações fantasmáticas; (p.80)

chegar ao ponto onde a questão não é mais drogar-se ou não, mas que a droga tenha mudado suficientemente as condições gerais da percepção do espaço e do tempo, de modo que os não-drogados consigam passar pelos buracos do mundo e sobre as linhas de fuga, exatamente no lugar onde é preciso outros meios que não a droga; não é a droga que assegura a imanência, é a imanência da droga que permite ficar sem ela; (p.81) 


mil platôs, devires


os contextos de cultura são perpetuados e estendidos por atos de objetificação, pela sua invenção uns a partir dos outros e uns por meio dos outros; isso significa que não podemos apelar para a força de algo chamado tradição, educação ou orientação espiritual para dar conta da continuidade cultural ou, na verdade, da mudança cultural; as associações simbólicas que as pessoas compartilham, sua moralidade, cultura, gramática ou costumes, suas tradições, são tão dependentes de contínua reinvenção quanto as idiossincrasias, detalhes e cacoetes que elas percebem em si mesmas ou no mundo que as cerca; a invenção perpetua não apenas as coisas que aprendemos, como a língua ou boas maneiras, mas também as regularidades de nossa percepção, como cor e som, e mesmo o tempo e o espaço; (...)
se a invenção é assim de importância crucial para nossa apreensão da ação e do mundo da ação, a convenção não o é menos, pois a convenção cultural define a perspectiva do ator; (...)
o cerne de todo e qualquer conjunto de convenções culturais é uma simples distinção quanto a que tipo de contextos os não convencionalizados ou os da própria convenção serão deliberadamente articulados no curso da ação humana e que tipo de contextos serão contrainventados como motivação sob a máscara convencional do dado ou do inato; é claro que para qualquer conjunto de convenções dado, seja ele o de uma tribo, uma comunidade, uma cultura ou uma classe social, há apenas duas possibilidades: um povo que diferencia deliberadamente, sendo essa a forma de sua ação, irá invariavelmente uma coletividade motivadora como inata, e um povo que coletiviza deliberadamente irá contrainventar uma diferenciação motivadora dessa mesma maneira; como modos de pensamento, percepção e ação contrastantes, há toda a diferença do mundo entre essas duas alternativas; (p.94-95)       

invenção da cultura

16 junho 2011

com essas palavra bateson inicia naven:


Se fosse possível apresentar de forma adequada a totalidade de uma cultura, enfatizando cada aspecto exatamente do modo como ele é enfatizado pela própria, nenhum detalhe isolado pareceria bizarro, estranho ou arbitrário ao leitor; ao contrário, os detalhes pareceriam todos naturais e razoáveis, como parecem aos nativos que viveram toda a sua vida no seio daquela cultura.
Uma exposição desse tipo pode ser empreendida mediante dois métodos – com técnicas científicas ou com técnicas artísticas. Do lado artístico, temos as obras de um punhado de homens que foram não apenas grandes viajantes e observadores, mas também escritores sensíveis, como Charles Doughty; e temos também representações esplêndidas da nossa cultura em romances como os de Jane Austen ou John Galsworthy. Do lado científico, temos monografias monumentais e minuciosas sobre alguns povos e, mais recentemente, as obras de Radcliffe-Brown, de Malinowski e da Escola Funcional.
Esses estudiosos dedicaram-se à mesma grande tarefa, qual seja, descrever a cultura como um todo, de maneira que cada detalhe pareça uma conseqüência natural do restante da cultura.
Mas seus métodos diferem do método dos grandes artistas em um ponto fundamental.
O artista contenta-se em descrever a cultura de tal modo que muitas de suas premissas e as inter-relações das partes que a compõem ficam implícitas na composição.
Ele pode sugerir muitos dos aspectos mais fundamentais da cultura, não propriamente pelas palavras que emprega, mas pela ênfase que dá a elas.
Pode escolher palavras cuja sonoridade seja mais relevante que o significado de dicionário e pode agrupá-las e realçá-las de tal forma que o leitor, quase inconscientemente, receba informações que não estão explícitas nas frases e que o artista acharia difícil, quase impossível, expressar em termos analíticos.
Essa técnica impressionista é absolutamente estranha aos métodos da ciência, e a Escola Funcional dedicou-se a descrever em termos analíticos, cognitivos, o conjunto entrelaçado – quase vivo – de nexos que constitui uma cultura.
Os membros dessa escola, natural e acertadamente, dedicaram sua atenção sobretudo aos aspectos da cultura que mais bem se prestam à descrição em termos analíticos. Descreveram a estrutura de várias sociedades e revelaram os traçados principais do funcionamento pragmático dessa estrutura.
Mas mal tentaram delinear aqueles aspectos da cultura que o artista é capaz de expressar com seus métodos impressionistas. Ao lermos Arabia Deserta, ficamos admirados com o modo extraordinário pelo qual cada acontecimento é caracterizado com o tom emocional da vida árabe. Mais que isso, muitos acontecimentos seriam impossíveis com um fundo emocional diferente.
É evidente, portanto, que o fundo emocional atua de modo causal no seio de uma cultura, e nenhum estudo funcional pode ser razoavelmente completo a menos que vincule a estrutura e a operação pragmática da cultura ao seu tom emocional ou ethos.

(bateson, primeiras palavras de naven)


pode...?