29 junho 2006


apreender que o que constitui a antropologia é a abordagem e não o tema; qualquer tema pode ser abordado do viés antropológico;
como vimos, o que caracteriza a antropologia é estar no mesmo nível epistemológico do objeto, sem desnível; essa é a primeira simetria que define já a antropologia desde as teorias nativas;
acompanhamos o processo de formação das instituições modernas de vigilância e punição que instauram processos de constituição de subjetividades que levam à homogeneização (direito, educação, saúde) ao elaborar a forma sujeito que conduz a individualização característica do capitalismo;
nossos métodos de pesquisa (exame) foram elaborados no interior desse universo mental institucional, estadista, cujo intuito é o de controlar os contingentes urbanos, liberando-os, cada vez mais, para agirem com maior complexidade, o que vai permitindo a adaptação das instituições a essa maior complexidade de variantes;
sim, o discurso positivo afirma mais liberdades individuais e mesmo se podem ver tais liberdades, o que não se pode enxergar é o que está velado exatamente na superfície dessas liberdades; sim, os direitos se constituem e democratizam, o que serve uma complexidade cada vez maior das instituições jurídicas; a educação se torna um direito, o que a faz obrigatória e faz de todos dependentes das instituições que oferecem o serviço; o serviço de saúde serve às massas urbanas, que se tornam dependentes desse modelo de saúde, descartando qualquer outra possibilidade de tratamento para restarem nas filas a espera de atendimento;
são discursos eficazes que exigiram ouvidos que lhes fossem moldados;
todo esse processo de constituição desses saberes, de instauração desses discursos se dá no universo da representação, que comunga com a tradição metafísica pré-moderna/pré-capitalista;
a constituição de nossa forma sujeito, nosso processo de individuação ocidental se configura a partir da matriz antropológica da representação;
no entanto, tais processos em si, já se constituem como processos de produção, no caso, de subjetividades;
o que é dado possui uma eficácia simbólica tal que todos nos acreditamos de fato sujeitos individualizados, seres desnaturalizados pela cultura;
os processos de construção de pessoas, de formação de sujeitos vão se caracterizando como dispositivos de controle, como máquinas de vigilância e modelagem;
processos e produtos: parece que tais instâncias não se separam, parece haver uma continuidade entre os processos e os produtos;
parece ser aí que entra a antropologia; num primeiro momento para reafirmar essa distinção entre sujeitos criados e criação de sujeitos, entre dado e produção;
configura-se então num discurso, num saber cuja valoração se torna evidente; a antropologia observa aqui a forma sujeito de nossa teoria política, generalizando-o/a;
esse outro disforme é apresentado como caricatura, não tem voz, não tem vez; são anômalos não identificáveis em nossas categorias, são não-sujeitos, afirmados, ainda, apenas, em sua negatividade;pode ser que a antropologia só se formule, em sua especificidade, quando os tais processos - sujeitos produzidos e produção de sujeitos - são colocados em contato, quando os fios descascados se tocam e se faz o curto-circuito;

o discurso da representação afirma o dado, não se volta para seu processo de produção: enquanto se afirma se produz; todo nosso discurso político ergue-se sobre a matriz da representação;
a partir do séc XIX, começa-se a dar conta e operar cada vez mais correntemente com os simulacros; a comunicação projeta-se como a grande instância de controle liberal, ela mantém uma relação distinta com a s demais instituições em relação ao estado;
o discurso político que sustenta as demais tribunas do estado e das elites, tribunas da sociedade, também serve aqui: segundo a matriz da representação a imprensa deve apresentar os fatos;
o sujeito criado pelas instituições públicas encontra na imprensa seu processo de democratização; a imprensa, ao longo do séc. XX, ergue o império da representação no interior do qual fabricará sujeitos em massa; finda a era do artesanal;
com o poder afirmado pela imprensa na construção de realidades entra-se, enfim, na era do puro simulacro; a discurso político tem agora como referência a imprensa e seu funcionamento; os fatos são criados cada vez mais rapidamente, sucedem-se uns aos outros, se tornam descartáveis, como os sujeitos produzidos em massa, em excedente;
e, ainda assim, sob a lógica cínica do país dos ladrões, sustenta-se ainda a distinção entre fatos e produtos; não nos assumimos como produtos, pois isso seria operar com a matriz antropológica que nos forma, nossa herança metafisica;
adaptamos toda nossa realidade - simulacros, híbridos, redes - à parlenda providencial que herdamos do medievalismo jesuíta;
operando a dinâmica da produção temos a favor o arsenal antropológico; como os produzidos olham sua matriz, sua máquina-mãe, sua progenitora cibernética?
onde encontramos os olhares que se voltam a essa máquina: não consciências políticas que se libertaram do processo de alienação, e sim recortes perceptivos comuns a todos que fermentam neste útero;
nessas trocas de olhares nessas entre-vistas, que buscamos nosso material; construindo e amarrando, costurando, articulando as experiências desses sujeitos;
como os processos de homogeneização são vivenciados por esses singulares?

acompanhamos a formação da voz média, a voz da maioria, a voz do consenso que todos encarnamos quando se fala a voz da razão;
essa voz se caracteriza como a voz da maioria, daqueles que estão no poder por sua própria natureza consensual; como sabemos é uma voz bastante valorizada na cultura e na história brasileira, a voz do consenso que encarna o imaginário da ordem;
as outras vozes se constituem em tensão com o poder instituído e quando aparecem são sempre olhadas com aquele olhar de canto de olho, estigmatizada como voz da diferença em meio ao consenso estabelecido;
no âmbito da forma sujeito, sem saber bem ao certo o seu sentido, surgindo mesmo como incógnita em meio aos programas de vigilância ou, mesmo, já resultado seu, tem-se os territórios sendo por vezes invadido;
enfim, essa é minha introdução para o primeiro fenômeno a ser abordado: a produção de carolina maria de jesus;
como a escrita é material tradicional da antropologia, a obra da escritora vem à calhar; além do mais, seu caráter descritivo, que nos constrói uma etnografia, é outro elemento que nos aproxima dessa obra;
esse olhar, sensível por que retrata espiritualmente sua realidade, se caracteriza por sua liberdade, por voltar-se para a matriz formadora desses sujeitos, por configurar os próprios processos em que esses sujeitos são produzidos: há aqui um curto-circuito entre processo e produto;
tais processos, ao serem trazidos para o circuito da cultura, da voz média, só deixam entrever ecos de seu universo subterrâneo;
a secura com que narra a narradora reflete sobre o sapato apertado da forma-sujeito; isso que consideramos como um fato simples, não é tão certo quando se tem que comer lixo, e assim o olhar muda, o tom de voz se transforma;
o trabalho desbravado por essa criação tem sido hoje explorado em trabalhos como cidade de deus e falcão, meninos do tráfico;

a impossibilidade de dissociar vida e escritura chega a lembrar o teatro da crueldade vivido por pixote, o ator de babenco, o filme de hirshman sobre nelson cavaquinho, ou a música de cartola;
a partir daí, busca-se conduzir a antropologia para os processos de criação coletiva, de domínio público, que escapam à forma do autor, explorando a diversidade de materiais e de regimes enunciativos disponibilizados pela cultura popular;

28 junho 2006

divergéncepodem ser pensados dois momentos, caracterizando dois aspectos, dois caracteres da antropologia educacional;
o primeiro se constitui do discurso hegemônico ocidental, que acredita na educação como redenção dos povos sem cultura, sem consciência, sem história, sem civilização;
para esse discurso, a educação possui um poder redentor de levar a humanização;
caracteriza-se pela concepção da alfabetização como possibilidade de evolução à cultura letrada, passando à margem dos limites impostos à civilização letrada pelo logocentrismo escrito;
não pode ouvir ou sentir nada além de seu mundo de signos escritos, não pode conceber universos de sentidos outros, de outras sensibilidades;
esse discurso etnocêntrico, epistemocêntrico, está calcado na base dual do discurso da modernidade que conhece concepção no nascimento simétrico e mutuamente excludente dos discursos do saber e do poder, do conhecimento e da política, do discurso científico e do discurso político;
a relação entre esse saber letrado e seu alcance político teve uma primorosa e inalcansável abordagem por pierre clastres no seu primeiro vislumbre das sociedades contra estado, suas máquinas de guerra;
com elas que entramos no universo dos fogos cruzados, dos campos minados, dos territórios mistos, dos corpos híbridos;
hoje nossos processos em antropologia educacional consistem em dar forma aos agenciamentos ilimitados que pululam: livros, filmes, vídeos, discos, projetos etc são algumas das possibilidades de criar espaços de expressão coletiva, artística, política sobretudo;
conhece-se com tais processos uma redefinição do campo antropológico; uma revolução se produz: os agenciamentos encontram um espaço nunca visto;
estamos operando nessa esfera da reversão do discurso que formou nossa concepção da realidade através das representações científicas dos fatos que instauraram nossa fé num mesmo deus = a realidade, a natureza etc;
aprendeu-se que o que muda está na esfera cultural, social, e a natureza seria esse espaço a ser decifrado, a ter suas leis a espera dos decifradores de códigos;
com essa reversão é necessário trafegar deixando tais pressupostos, pensando a partir de outras referências;tudo passa a constituir campo de transformações e de construções, inclusive essa esfera constituída pelo discurso científico e considerada imutável;
asegundanatureza o ponto: os valores tendem a naturalizar-se; tal tendência à naturalização é a estratégia que encontraram para garantir a sobrevivência da espécie;
a naturalização dos valores serve para garantir a manutenção dos valores morais; assumidos naturalmente, tais valores constituem-se numa “segunda natureza”;
essa propriedade dos valores faz deles, sobretudo, um instrumento político de alto calibre; através deles instituem-se realidades, instauram-se verdadeiras dimensões ônticas;
segundo a autora, o comprometimento da moral com o caráter positivo do costume, sua propriedade de perpetuar-se, sua tenacidade, oculta-se nas próprias expressões que cristalizamos como objeto de estudo da área: moris e éthos, equivalentes de costume;
ao abordar a constituição do brasil enquanto semióforo, a autora propõe um estudo de caso de um processo histórico de naturalização de processos histórico-culturais;
ao estudar a sagração dos três elementos que constituem o semióforo brasil, ou seja, ao estudar os processos de naturalização da constituição espacial, temporal e do poder, a autora define nossa constituição ética, a constituição de nossos valores morais através da leitura de sua construção pelas elites e governantes e da forma como as camadas populares se constituem como campo de definição, onde esses valores rebatem e tem seus efeitos;
ela analisa sob os nossos olhos a constituição de um campo moral, a constituição de um universo ético, num recorte de quinhentos anos;
elabora assim uma leitura filosófica do processo de formação de nosso universo moral;

havíamos visto com foucault a metamorfose moderna do direito, ou do direito moderno, com a modificação da função atribuída às instituições jurídicas;
tais atribuições convertem-se de seu sentido negativo de punição, de coerção, para um processo afirmativo de constituição de subjetividades para a instauração de uma configuração mental comum aos civis urbanizados em massivos conglomerados humanos;
esse processo foi inicialmente afirmado como o fundamental da relação ética/direito;
para nós, num primeiro momento, a ética se alinha às disciplinas que formam o direito, devido a essa função atribuída ao direito na constituição da sociedade moderna, função que o colocou num lugar estratégico na sociedade configurada em nossos dias;
oespinhodaéticafreqüentemente, não notamos a origem cultural dos valores morais, do senso moral e da consciência moral porque somos educados (cultivados) para eles e neles, como se fossem naturais ou fáticos, existentes em si e por si mesmos; por que isso acontece? porque, para garantir a manutenção dos padrões morais através do tempo e sua continuidade de geração a geração, as sociedades tendem a naturalizá-los, isto é, a fazer com que sejam seguidos e respeitados como se fossem uma segunda natureza; a naturalização da existência moral esconde, portanto, a essência da moral, ou seja, que ela é essencialmente uma criação histórico-cultural, algo que depende de decisões e ações humanas;chauí, convite a filosofia:307

positivo: o valor do positivo baseia-se no costume;
positivo seria aquilo que está conforme o costume;
o contrato social, como vimos há muito, é um instrumento que serve à intensificação de nosso regime político da representação, no qual todos temos o privilégio de sermos representados;
o contrato social é o fundamento do direito positivo, pois este está fundado nos costumes; que costumes? cabe perguntar;
o contrato social é esse instrumento político constiuído com a cisão natureza/cultura que funda a modernidade;a noção de estado de natureza é tão artificial quanto à de natureza;
tem-se plena consciência agora, numa esfera tão desdobrada no interior das dimensões discursivas como a da antropologia, impensável hoje sem os jogos de espelho propostos pelas metateorias desde o estruturalismo, que noções tais como estado de natureza e contrato social são personagens no papel, mais do que pessoas em carne e osso;
certo que tais personagens estão sendo diariamente re-encarnados, mas nem por isso deixam de ser personagens com valor meramente metodológico;
se apenas existe direito positivo (que possui sua fonte no costume), não merece o nome de direito.
todorov, nós e os outros:33

o problema moral, problema ético, o eixo gravitacional dos valores, tem como ponto nevrálgico a genealogia;
deve-se desconfiar dos valores, estes têm espíritos épicos e ao contar sua história, costumam fantasiar-se;
tudo certo, quando só há fantasia, mas ainda não fomos tão longe; lembremos que o campo dos problemas morais é o campo do positivismo muito antes de ser o do relativismo;
portanto, deve-se desconfiar de uma história dos valores para se buscar uma genealogia dos valores;
com isso desloca-se a perspectiva, reconhece-se a perspectiva comprometida com os valores vigentes;
há sempre um vento que bate e nos leva pra longe de onde partimos;

26 junho 2006


machado de assis
posso considerar machado meu primeiro mentor espiritual; a leitura de brás cubas aos quinze anos, meados de 1992, é um marco que definiria toda minha posterior trajetória; depois veio a poesia e o cinema no ano seguinte;
seu tráfego entre a brutalidade do mundo e o universo interior de seu narrador, trouxe-me pela primeira vez a experiência do uma vida;
a narrativa sagaz do autor, sua agilidade, conquistou minha percepção; lembro que por vezes, no escuro da primeira manhã, matava aula para saborear a leitura daquelas curtas passagens intimistas;
sua narrativa caleidoscópica e cinematográfica nos rende os sentidos, fazendo-nos sentir o gosto de uma narrativa;
essa característica fragmentar de sua obra, narrada em breves esboços parece uma conquista da narrativa;
em ruptura com a narrativa do séc. XIX, descritiva, jornalística, compacta, essa narrativa ágil e impressionista tem por técnica os efeitos de sentido que a vontade de verdade de outrora;

23 junho 2006


blog _ poética do fragmentário
há aproximadamente dez anos, compunha um trabalho para a disciplina de teoria literária; estava começando a ler nietzsche e descobria então os recursos do estilo fragmentado dos aforismas;
estávamos estudando, então, a forma do diário, mais especificamente em marques rebelo;
o texto que passei a estudar foi o observador do escritório, diário de carlos drummond de andrade;
a partir de alguns trechos, em que o autor se refere ao seu estilo fragmentado de composição, fiz uma releitura da teoria do romance de bakhtin, em que o monológico estilo compactado e discursivo do romance e seu narrador resulta na polifonia fragmentada dos monossilábicos resmungos dos personagens;
apoiava-me ainda no leitor contemporâneo de calvino, da prosa leve resultante de nossas narrativas cada vez mais rápidas e obtusas, das narrativas policiais, do cinema com sua narrativa elíptica conduzindo a narrativa literária, enfim, toda a transformação por que passara nossa percepção e de que forma a escrita do diário desde os ensaios de montaigne até os contos de edgar alan poe tinham-na assimilado;
o resultado não foi bem apreciado. minha nota foi sete;
não mais esqueci as teses desse trabalho e quando me ocorreu escrever sobre o formato blog, a criação literária e a pesquisa, lembrei-me novamente da poesia diária de drummond em sua articulação entre vida e escrita;
de certa forma, esta lógica do fragmento esteve presente igualmente em minha pesquisa, os recortes vão constituindo um percurso, o qual vai sendo reconhecido a medida que é traçado;
além disso, esta forma cultiva o prazer da escrita e o da inspiração; a cada momento que se estuda determinado autor e texto, define-se o que dele mais importa, extrai-se o sumo;
dessa forma, vão-se articulando percurso em campo e percurso teórico; o texto vai ganhando a forma dinâmica do devir, do aprender, constituindo-se em rizoma;
com isso, redefine-se a constituição linear e progressiva, cuja dinâmica é a da forma acabada do texto; diferentemente, o que se tem aqui é um texto composto na dinâmica da intertextualidade, pois o texto, de partida, já assume sua natureza textual;
dissolve-se concomitantemente, assim, o apelo referencial do empirismo, pois o texto não se propõe comprovar algum referente, por estar voltado para sua natureza textual, campo do qual deve dar conta;
examen

foucault, definindo a disciplina, traça o plano em que se ativa o discurso das ciências humanas, discurso do indivíduo, do sujeito;
as disciplinas nascem como um sistema de vigília e punição, equipado com um sistema de registro; essa sociometria insípida ensaia o primeiro discurso da individuologia ou sujeitologia;
como afirma foucault, o discurso das ciências humanas se gesta na sombra, em meios aos arquivos empoeirados dos orfanatos, hospitais e tribunais do século XIX;
esse sistema de registro e controle de informações é denominado exame, é o fator saber do complexo saber poder que está sendo estudado;
o exame cria um universo de sistemas de informação, é a instância onde o mundo está representado nas informações;
produzir informações é a tarefa do exame, desses instrumentos que servem aos acúmulos de informações, aos sistemas de informações;
os resíduos ainda se fazem presentes em nossos currículos com nossas aulas de estatística, nosso olhar sociológico sobre as sociedades;
dessa forma, o discurso das ciências humanas se constitui com tarefa política clara e definida;
o exame, esse instrumento político marca a natureza das ciências humanas por estar encravado em seu meio, em sua forma de expressão;
nossas pesquisas estão caracterizadas em sua gênese por esse circuito pré-estabelecido de circulação de informações; que dirá então dos procedimentos de pesquisa que herdamos;
buscar definir os enviesamentos que marcam nossas práticas de pesquisa para possíveis críticas é uma tarefa da antropologia do conhecimento;

20 junho 2006

quando a própria técnica é colocada em questão; quando se propõe que o interlocutor pode ele, por sua distância da técnica, recriar uma técnica outra, coloca-se em questão a eficácia simbólica do técnico, o técnico, aquele que sabe fazer e se opõe ao que não sabe, deve encarar uma outra concepção de verdade;
a verdade está nos olhos de quem vê e sente o mundo; essa experiência pode redefinir a técnica;
o valor sobre uma técnica universal, válida para a colocação de todos os problemas, de todas as perspectivas tem sido arduamente posta abaixo pela arte, pela literatura, pelo teatro, pelo cinema...
tal concepção de uma técnica padronizada, do bom português e seus ares parnasianos, tem sua gênese na concepção de verdade que sustenta, e é sustentada, pelo pensamento moderno, pautado no progresso e evolução, de que resultamos, nós ocidentais racionais;
seu recorte do mundo visa o homem médio, a voz média, as experiências medíocres; a reprodução do mundo pelos olhos do homem médio, para que todos (se identifiquem) com esta voz se identifiquem e a reproduzam;
proliferar vozes, enfoques, pontos de vista, não é meramente questão de conteúdo; é estritamente um problema formal;
descentralizar a técnica e a voz média em seu caráter moral: o bom português, a boa técnica, a boa montagem, o bom som: os recursos naturalistas ou de verossimilhança, tornam-se recursos expressivos significativos: estilo;
o bom filme pode não ser o holiwoodiano que não apresenta um estilo, mas possui uma técnica impecável, e sim aquele que, ainda que não seja impecável técnicamente, propõe uma linguagem, um hilemorfismo, um contato entre sua realidade e a obra que se projeta, um diálogo entre sua linguagem e outras obras, outros estilos, alguma metalinguagem, alguma proposta, e reflita alguma consciência de si;
quando a ciência se percebe discurso, produção de sentidos, quando se abre para o caráter poético da linguagem, seu caráter construtivista, quando suspende por um breve momento, revolucionário instante, a linha que separa/divide, o muro que separa, ciência e arte, liberta-se da maldição do espelho, na qual o outro é sempre reflexo de si, na qual só se tem olhos para si e, por isso, não se pode ter consciência de si;
o homem ilhado do século XIX, seguramente poupado dos devires por sua concepção de verdade, por sua crença na Verdade, tem na antropologia se ápice e seu crepúsculo;
no momento, no impulso em que cria a ciência do outro, toca o objeto sem fundo, encontra o caminho de volta a si;

16 junho 2006


antropologias simétricas

qual o nosso objetivo prático ao estudar antropologia simétrica: ter consciência discursiva do teor político do viés antropológico imanente ao texto, à pesquisa;
todo discurso está centrado na voz média; é ela seu modelo, seu padrão, a voz que agenciamos em nosso cotidiano por conta de nossos papéis sociais;
quando se pratica o discurso acadêmico, estamos num campo em que predomina essencialmente a voz média;
a ciência se constitui em uma prática política por sua relação com a voz média, com o discurso positivo do poder, do dominante, da maioria;
assim, torna-se tema delicado envolver outras vozes no discurso acadêmico, convidar esses outros eus para trafegar nesse campo minado do etnocentrismo;
ao se propor a escrever – ou a devir – sobre a experiência de menores prostitutas, os anjos da noite, a pesquisadora assume o risco da dissimetria entre o discurso acadêmico do pesquisador, eivado da voz média da ciência do homem branco ocidental;
o caráter antropológico, especificamente da antropologia simétrica, consiste em converter o discurso acadêmico, deslocá-lo de sua unilateralidade, de fazê-lo devir na experiência daquele a quem o canal está sendo aberto;
nisso consiste a tarefa do agenciamento, fundamental para compreender a antropologia, principalmente a antropologia simétrica;
quando definimos a antropologia por este ad-vocar, por esse falar a voz alheia, enfim, por esse conjunto de recursos discursivos, enunciativos e narrativos que permitem a articulação das perspectivas envolvidas na pesquisa e, principalmente, no texto;
toda dimensão discursiva explorada pela antropologia tem como objetivo, fundamentalmente, dar conta da voz média;
dar conta desse narrador etnocêntrico que, ao distinguir ciência e política, método e problema, objetividade e subjetividade, ao neutralizar a abordagem antropológica, criar automaticamente o híbrido: o texto etnocêntrico, o intensificador de poder;
quanto mais força fazermos para sermos objetivos e separarmos ciência e política, mais as misturamos, criando o texto “puro”, “livre de interpretações”;

oroboros

centro livre
como pensar a antropologia de centro livre: descentralizar a antropologia; tirar sua base metafísica, seus princípios transcendentais que sustentam seu princípio; se a primeira antropologia está fundada na concepção de um centro, de uma perspectiva, de um normal, de um evoluído, como proceder para chegar numa antropologia de centro livre; oroboros, devorar o próprio rabo;
poiésis: criação coletiva, carnaval;
a implosão do centralismo começa com a proliferação dos centros de emissão, das perspectivas, dos pontos de observação, dos observatórios; como montar observatórios nos mais diversos pontos, nas mais diversas perspectivas;
percebe-se que, desse impulso cauteloso, cheio de precaução, extrai-se a forma da antropologia simétrica;

14 junho 2006

“a historicidade ‘evolutiva’, assim como se constitui então – e tão profundamente que ainda hoje é para muitos uma evidência – está ligada a um modo de funcionamento do poder, da mesma forma que a ‘historia-rememoração’ das crônicas, das genealogias, das proezas, dos reinos e dos atos esteve muito tempo ligada a uma outra modalidade do poder...”

lembrava ontem de benjamin: o processo é o produto, e bachelard, por falar em história, ou epistemologia: os fatos são feitos, aqui, já no universo de nossas teorias e, principalmente, de nossos métodos;
a lembrança me remeteu aos seus escritos sobre a fotografia como saída para se reformular a dinâmica evolucionista de se pensar a história;
a fotografia, para benjamin, redefine a história contada pelo discurso verbal, cuja natureza é seqüencial; em nove teses sobre a história, a dinâmica de sua inscrição de uma história propõe uma história que parece escrita por iluminações;
depois de lembrar esse seu viés, corri às páginas finais da segunda dissertação da genealogia da moral, para conferir a concepção de genealogia aí esboçada;
realmente batem tais concepções, enviando, no que nos interessa, ao método etnológico de lévi-strauss em sua intenção de romper com o método histórico da sociologia e sua dinâmica evolucionista, marcante na gênese da antropologia;

09 junho 2006



sociedade autoritária
elemento fundamental de compreensão do estudo de marilena chauí sobre o semióforo, foi compreender seu processo de construção do mito fundador por meio da sagração da natureza, da história e governante em relação ao discurso político da modernidade como vimos estudando em latour;
como vimos em latour, o discurso político fundado por hobbes constitui-se pela noção de representação política;
a concepção política de hobbes visa uma ruptura com os fundamentos políticos do discurso medieval que funda o poder do soberano na vontade divina, ou seja, na vontade da igreja, deslocando esse foco de poder, essa fonte de poder para a vontade dos cidadãos de atribuir poder ao soberano;
a partir desse discurso e do momento histórico que o legitima, a política passa a ser pensada como instância de decisões humanas e não mais como produto da vontade divina, isto é, deixa de ser naturalizada por uma esfera transcendente aos homens;
em marilena chauí, o que se vê é a proposta de se constituir o ethos do povo brasileiro, como ele é constituído em instrumento de controle social político pelas classes políticas dominantes, pelos oligopólios e as elites;
essa constituição se dá a partir dos processos de sagração das esferas referidas, sagração que está de acordo com o processo de naturalização da moral que ela define como a forma de apropriação dos valores em instrumento político que consiste em ocultar a essência da moral, qual seja, sua natureza histórico-cultural;

08 junho 2006

sentido e invenção
o tema corpo exige uma abordagem corporal; a filosofia trágica, que se consome em seu próprio fogo, pode ser pensada uma filosofia muscular;
a palavra chave deste pensamento: imanência;
em termos antropológicos, o estruturalismo propõe um debruçar-se sobre o texto, sobre a criação de sentido no texto etnológico;
totemismo hoje: inicia-se por comparar a ilusão totêmica à produção social do louco: o selvagem seria produto de nosso pensamento, das civilizadas abordagens objetivas, de procedimentos de estudo e de análise próprios à ciência da época;
o estruturalismo, assim, não se define facilmente por seus temas, por seus objetos: ele problematiza a forma do texto etnológico, conduzindo a uma metateoria, e essa forma em sua função de produzir sentido;
o sentido não mais emana das coisas, ele circula em códigos, em circuitos fechados, sendo mais um problema de significantes em relação;
a ruptura com essa maneira de relacionar palavras e coisas, discursos e referentes, conduz a um método próprio, que inscreva em seu próprio corpo, que participe de sua composição, de sua construção;
a construção do sentido rompe com o primado do ser, com o primado do significado, trazendo à frente o significante, o corpo, o devir;
são dois métodos, pois dois modos distintos de proceder com o conhecimento; o primeiro, marcado pela revolução hegeliana da história, apega-se à tradição da metafísica transcendental que atravessa o pensamento moderno, coroando-se no marxismo; o segundo se volta à imanência, aos processos de produção de verdades e de criação de sentido, cujos discursos fornecem material de primeira;
o sentido não está dado, ele é construído, constitui-se socialmente através de procedimentos diversos; essa naturalização dos sentidos resulta dos próprios processos de produção de verdades e sentidos;
as máquinas que produzem verdades, sentidos, realidades, estão ocultas por entre a selva de discursos que nos enreda;
quando Carlitos é devorado pela máquina e depois cuspido fora - cena precursora de todo o Matrix - a máquina que engole o homem resulta num complexo processo de disciplinarização;
o homem engolido: tem seus sentidos engolidos, sua percepção é engolida, não pode ver o que o envolve e naturaliza sua condição, não a reconhece como processo;

05 junho 2006


o que nós fazemos nunca é compreendido, mas somente louvado ou condenado (a gaia ciência);

sei isso muitas vezes,
mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
dobrada à moda do porto fria?
não é prato que se possa comer frio,
mas trouxeram-mo frio;
não me queixei, mas estava frio,
nunca se pode comer frio, mas veio frio;
(ficções do interlúdio)

come chocolates, pequena:
come chocolates!
olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates;
olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria;
come, pequena suja, come!
pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estânho,
deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida;
(ficções do interlúdio)

02 junho 2006

a concepção marxista da autora define e sustenta sua noção de ideologia, por isso essas duas instâncias não interagem no texto, são vistas como fixas, em duas instâncias distintas;
e se pensarmos que essa imagem não é apenas uma construção ideológica e que não haveria uma história real que ocorreria por trás dessa imagem?
se pensarmos que a própria história materialista, dos interesses econômicos, é parte dessa construção, sendo igualmente uma apropriação política?
Isso só nos interessa não por querermos tirar o chão materialista da história, por acreditar que não houveram eventos como os genocídios, etnocídios e escravismos, e sim por uma problema de método;
ao sustentar uma realidade de fato, escamoteada por detrás do discurso ideológico do estado, não estamos ainda na mesma dinâmica de interação entre ciência e política, conhecimento e poder;
por isso que, em latour, não é possível pensarmos as três críticas no mesmo nível; a dimensão dos discursos tem uma eficácia simbólica, ou melhor, tem um poder de desdobrar-se sobre si mesma que as demais instâncias não possuem;
isso define a agilidade de teorias que colocam como ponto de partida, inclusive o próprio latour e sua antropologia simétrica, o discurso, a metateoria;
o que é urgente aqui, no caso chauí, é apreender as duas dinâmicas de produção de saberes que se apresentam;
a primeira sustenta uma realidade empírica, acessível à dimensão discursiva, que traria para a história a tensão dos interesses sociais de classe: a história se constitui das construções simbólicas dos agentes sociais;
essa concepção ainda sustentaria característica da tríade cristianismo, iluminsimo, marxismo, atravessadas pela dinâmica transcendental do pensamento de tradição metafísica;
essa característica é aquela apresentada por latour da cisão entre física e metafísica, natureza e sociedade, natureza e cultura, ciência naturais e ciências humanas, saber e poder;
como vimos em latour, quanto maior foi o nosso ímpeto por separa as instâncias de natureza e cultura, e assim, fazer um discurso neutro, objetivo, universal sobre o homem, o que se deu foi o momento de maior apropriação político-ideológica do saber, das ciências humanas;
a segunda, de certa forma, institui-se no campo criado pela teoria dos discursos, campo em que se situa o próprio latour, em que se desdobram, enquanto dimensão crítica, enquanto instância discursiva estes campos: natureza, cultura, discursos;
há que se operar sobre esta zona intersticial em que tais instâncias entram em contato; o processo de desdobramento dos discursos sobre si, marcante no estruturalismo de lévi-strauss e em toda dimensão metateórica que caracteriza hoje a antropologia;

se entrega corisco...
mais forte são os poderes do povo...

chauí define o seu objetivo em brasil, mito fundador: não é elaborar uma história do brasil, e sim, o processo de constituição do semióforo brasil;
assim, ela discrimina duas instâncias distintas; uma da história, que se desenha como pano de fundo à construção de outra, o mito fundador que caracteriza a imagem do brasil e do brasileiro;
a distinção dessas duas instâncias é um processo fundamental para o antropólogo, para a compreensão do processo político que se constitui no processo da construção do pensamento social: historia, sociologia, antropologia;
aqui, compreende-se que o processo de constituição antropológica brasileiro possui uma zona intersticial, que é confundida no pensamento positivista que constitui o nosso pensamento;
a apropriação política do conhecimento em ciências humanas num primeiro momento, e das ciências naturais então, é caracterizado como instância distinta à história materializada;
em nosso processo, neste processo, quanto mais nos dedicamos à afirmação positiva da imagem do brasileiro, uma imagem científica, inspirada nas ciências naturais, maior foi o teor político ideológico de nosso discurso antropológico;
é esse processo de apropriação da imagem do brasil e do brasileiro e sua utilização pelas elites brasileiras que a autora analisa como discurso autoritário, visto que ele produz uma imagem sob medida para aquilo que convém a essas elites de acordo com o momento;
dessa forma, a autora nos revela como se dá o processo de constituição da antropologia brasileira, da construção da imagem do brasileiro e de como essa imagem, elaborada por nossas ciências sociais, sustenta as ações políticas do estado;