21 outubro 2005

A construção da normalidade pelas práticas discursivas

(Palestra ministrada em 19-10-2005 no colégio Armando Nogueira no II seminário de formação de professores da Uninorte)

“Um lugar só conhece o outro é por calúnias e falsos levantados.”
(Riobaldo, Grande Sertão Veredas)

“Minoria e maioria não se opõem apenas de uma maneira quantitativa. Maioria implica uma constante, um metro padrão . Suponhamos que a constante ou metro seja homem-branco-masculino-adulto-habitante das cidades-falante de uma língua padrão-europeu-heterossexual. É evidente que o homem tem a maioria, mesmo se é menos numeroso que as mulheres, os negros, as crianças, os camponeses, os homossexuais etc.” (1000 platôs: 52)

A experiência em antropologia ensinou-me uma lição fundamental, que levo ao pé da letra. Essa lição tem a ver com nossa apresentação. Quando me apresento, apresento ao mesmo tempo o lugar de onde é emitida minha voz, de onde falo, minha perspectiva. Afinal de contas, tudo o que é dito é dito por alguém.
Tenho sido professor. Aliás, tenho sido professor duplamente, pois também teorizo a educação em sala de aula. Abordo a educação sob o viés da antropologia. Tenho estudado com os estudantes de ciências sociais sobre as condições de produção de nosso saber. Como crio meu próprio saber e por ele sou criado. E também como, nesse processo, sou submetido a determinações. E, por fim, como dessa luta entre a liberdade e as determinações, uma luta política, resulta minha formação.

Tenho estudado a linguagem com os estudantes de ciências sociais buscando desmistifica-la, revelando sua apropriação para os atos de obedecer e fazer obedecer. O objetivo é conceber a linguagem como instrumento político e não em sua ingênua transparência. Disso, se compreende que a nossa formação escolar é uma formação e não “a formação”, ou seja, que nosso padrão de formação escolar não é a única possibilidade de formação.

Estamos num seminário de formação de professores. Eu próprio estou neste momento em meu processo de formação.
O tema do seminário em que nos encontramos seria a diferença, ou, como se diz, a inclusão da diferença. Portanto, minha fala hoje será norteada pela relação entre dois eixos: diferença e práticas discursivas. Quero problematizar aqui alguns pressupostos, alguns princípios que, geralmente, não são ditos, não são apresentados e, a partir daí, trazer uma contribuição à nossa mesa redonda.
Como dizia, abordo a educação sob o viés da antropologia. É por aqui que abordo a questão da diferença. Pode-se dizer que a antropologia estuda a diferença, alteridade, o outro, ou até mesmo as minorias (em nosso idioma politicamente correto).
Penso que posso definir hoje a antropologia como a arte de falar pelo outro. Veja-se que há uma sutil distinção entre falar do outro e falar pelo outro, no lugar do outro, pela voz do outro. Penso que no caso da antropologia as expressões se equivalem e ao falar do outro, estou falando pelo outro. Posso dizer que em todo que está implícito um quem, ou seja, ao definir alguma coisa estou definindo a mim mesmo, o definidor. É por aqui que abordo a questão das práticas discursivas.
No entanto, penso não ser esta prática exclusiva da antropologia. Como a antropologia estuda desde os primórdios dessa prática discursiva até suas operações atuais pelas mais diversas disciplinas e instituições, ela possui o material e a habilidade para refletir sobre tal prática. E assim, há quem diga que a antropologia se define como a arte de assumir a voz do outro e, ao mesmo tempo, refletir sobre essa operação.
Penso não haver dúvida sobre o fato de que a linguagem é um instrumento político. Estamos imersos cotidianamente nesses confrontos políticos mediados pela linguagem, seja ela oral, gestual, escrita etc.; cada qual com seu padrão, buscando se sobrepor a outra. Retomando o sentido da palavra bárbaro em sua etimologia, chega-se à seguinte tradução: “aqueles que não sabem falar”. Outra tradução possível seria: “aqueles que não sabem falar o latim”. E outra ainda: “aqueles que não falam a língua oficial”.
Ao trazer à tona o problema da enunciação, a antropologia aciona um dispositivo que tende a revelar a proveniência dos discursos. Esse dispositivo é um recurso bastante perigoso no âmbito de nossas instituições, especialmente das instituições de ensino, que aqui é o que nos interessa.
Por que ele seria perigoso? Primeiro por que esse discurso não oculta a sua proveniência. Depois por que ele revela que toda mensagem tem um enunciador, ou seja, esse discurso descortina o enunciador oculto em toda mensagem. O recurso de ocultar o lugar de onde provêm, de camuflar sua fonte, é um recurso utilizado pelo discurso do poder, que sustenta e marginaliza a diferença.
Esse processo se dá em nosso cotidiano. A suposta globalização talvez não passe de um fenômeno discursivo, de uma voz norte-americana que é modulada em todas as partes do mundo. Ao ocultar a sua proveniência, o discurso jornalístico, o mais evidente (o do quarto poder), fala por nós e instaura uma verdade em nosso nome. Também o professor quando enuncia a língua, a história, a ciência, suprime as outras línguas, as outras histórias, as outras ciências.
Podemos pensar a voz padrão como aquela que está implícita na maioria dos enunciados que circulam em nossas práticas (produções discursivas). Ela nos perpassa, nós a agenciamos seja como ouvintes (vítimas das propagandas, por exemplo), seja como falantes: a voz da instituição agenciada pelo profissional, voz do professor que assume o discurso da ciência para formar as crianças. Essa voz padrão reproduz a padronização, suprime a diferença, marginalizando-a.
Essa voz padrão estaria assim pressuposta em nossa prática. Como estudantes, encarnamos a diferença, a resistência, a bagunça. Há um poder naquelas carteiras escolares de nos fazer devir criança, desobediente.
(Poema de Drummond: Igual-Desigual)
Apoiados no solipsismo drummondiano, pensemos: “se só há diferença, pode-se pensar a igualdade como uma produção humana”. Essa retórica da igualdade assume dois tons que gostaria de explorar. O primeiro perpassa as idéias de que “todos os homens seriam iguais perante a lei, todos são filhos de Deus, todos têm direito ao lucro e à livre iniciativa (e ao consumo)”. O segundo está presente no que chamo de normalidade. A normalidade traz implícito um outro sentido da igualdade, associado às normas e coerções sociais.
Assim, para finalizarmos, delimitemos nosso foco sobre a educação (estamos num seminário de formação de professores) área de atuação e convivência da maioria dos presentes (seja nas funções de professor, coordenador, estudante etc.) e também a minha.

17 outubro 2005

o princípio antropológico


I – Invenção da normalidade
Devo me apresentar, para poder, assim, apresentar o meu trabalho. Em minha formação inicial estudei linguagem. Primeiro motivo para estar aqui. Em minha segunda formação, tenho estudado antropologia, segundo motivo.
Bom, suponho que a linguagem todos sabe do que se trata. Todos já estudamos pelo menos um pouco. Se não estudamos a língua portuguesa na escola ou a LIBRAS, somos falantes ou usuários de linguagens não-verbais que constituem nosso cotidiano em sociedade.
Quanto à antropologia, farei uma ligeira incursão sobre seus domínios para nos inteirarmos do que trata esta ciência. Certo que meu viés será marcado pelo domínio lingüístico.
Penso poder definir hoje a antropologia como a arte de falar pelo outro.
Para explicar essa definição vou propor um exercício ficcional de reconstituição histórica. Podemos imaginar os antigos viajantes como os antecessores da antropologia. Aqueles nômades mercenários seriam, assim, os primeiros a entrar em contato com o espírito da antropologia. Eram esses exploradores que faziam contato com terras desconhecidas e traziam notícias de povos de lugares distantes. Assim, a antropologia se associa, em seus primórdios, a certo nomadismo.
Em contato com as organizações dos impérios, reinos e estados, esses mercenários passaram a exercer uma função política primordial. Intermediavam povos e veiculavam informações sobre hábitos, crenças, línguas, poder bélico, riquezas etc.Note-se aqui que esses antigos exploradores de terras não-descobertas, não falavam apenas sobre esses outros, esses estranhos estrangeiros. Ao tomarem a palavra, esses primeiros diplomatas falavam por esses outros, no lugar deles.

13 outubro 2005

desconstruição

Inicia-se pela subversão do princípio de identidade (Pierre Clastres) que propõe a derrocada do império do Um. Nesse modelo de pensamento (paradigma) opera-se com o pressuposto (a priori) que A=A, portanto A não poderia ser = a não-A. Nos planos em que trafega o conhecimento guarani as operações são de relação e não de definição, em sua maioria. O movimento ganha dimensão epistêmica pois o autor já vem há tempos trabalhando com esse princípio na tradição de produção de conhecimento nesse modelo em que ele próprio está inserido. É assim que ao lermos as suas palavras percorremos o agenciamento que ele faz da voz guarani. a partir daí estudamos a unificação que a voz da ciência ocidental faz sob um mesmo agenciamento (voz) a do: homem, branco, europeu, classe média, meia idade. Ainda que eu seja: mulher, negra, latinoamericana, classe baixa renda, terceira idade, ainda assim posso agenciar a voz da norma. Assim é que se revelou o mecanismo do agenciamento e sua função para adentrarmos no perspectivismo multinaturalista.

04 outubro 2005

fotografemas

não eziste senão a múzica para ser a arte como cosmos e traçar as linhas virtuais da variação infinita (1000 platôs 2:39)
admitindo de início nosso an-alfa-bet-ismo visual podemos retomar de assalto nossa gramática visual e nos reconhecermos como exímios leitores de imagens que somos. Se não fôssemos, não sobreviveríamos no mundo verbivocosonoro e plurisêmico, audiovisual e sinestésico em que estamos imersos.
O primeiro problema a ser colocado é a noção de leitura, tão influenciada pela verbalidade e sua articulação horizontal. A pluridirecionalidade da visualidade projeta uma leitura pautada na dinâmica da constelação. Os planos se superpõem e constelam as imagens contra seus fundos e os elementos que a circundam a partir dos centros do quadro, compondo campos de força.
Conforme propõe bakhtin, a verbalidade ganha tamanha proporção na construção do mundo humana, (tomando o lugar do desenvolvimento anterior que vinha se concentrando na postura e no polegar opositor, possibilitando o desenvolvimento de campos do cérebro a partir da precisão dos movimentos) devido ao signo verbal estar acoplado ao corpo humano, ser leve e prático.
A ciência das linguagens, a semiótica, visa definir o que são funtivos. São os funtivos que definem as relações e possibilitam a articulação da linguagem. As linguagens já são (em caráter inconsciente) utilizadas e transmitidas. A abordagem em que se projeta a apropriação de sua gramática, de sua articulação, de sua análise, da análise de seu funcionamento é o que interessa à semiótica. A análise seleciona os funtivos.
Para o idioma corporal, mauss seleciona uma série de regimes corporais diversos que podem conduzir aos funtivos. Gênero, faixa etária, socialidade, instituições etc. Sua análise pode guiar-nos na apropriação de imagens com possibilidades de leitura sujestivas.

03 outubro 2005

o contínuum da variação

Opera-se na tensão de variáveis. Toma-se, para fixar os conceitos que organizam a razão, a imagem cristalizada de constantes homogêneas. Protege-se a ordem das tendências que tendem ao infinito. A variação contínua, com sua velocidade infinita, opera a fragmentação do pensamento fixado por constantes. Sujeito, linguagem, ciência: império racional das constantes.Tais princípios podem orientar a imersão e o tráfego no caos, de onde se podem trazer imagens do pensamento reconfigurado. Focalizando a máquina de produzir subjetividades a partir de constantes, circunscreve-se o continuum das variáveis que que definem o devir. Nesse processo a agência passa a definir os regimes de enunciação. As vozes passam a constituir matizes. Esses matizes são agenciados de acordo com elementos que definem a enunciação. Articulam-se a variação contínua das vozes ao agenciamento.