30 dezembro 2011

rascunhando olhares

lançando um olhar (ainda que superficial) sobre as lutas e os movimentos mobilizados em função da questão agrária (reforma agrária) em diferentes contextos, dos quais tomamos aqui para fins relacionais, o movimento dos trabalhadores rurais sem terra e os extrativistas da resex alto juruá, identificamos dois momentos marcados em discursos e práticas;
um primeiro momento de garantia da terra tendo por estratégia a linguagem dos direitos, por campo de batalha, as instâncias jurídicas; o segundo, de definições de políticas afirmativas, constituintes de processos de subjetivação, socialidade, configuração de territórios/territorialidades, tudo isso via saberes/conhecimentos tradicionais atualizados estrategicamente com conhecimentos científicos e políticos;
tais momentos não se sucedem no tempo, são concomitantes, isto é, a implementação de processos de territorialização, ou pelo menos sua atualização, não cessa a batalha no campo da garantia por direitos, mas o redimensiona;

o problema consiste em que a garantia da terra não é a garantia do território;
é o que vemos em grande parte das reservas, em que os extrativistas (e seus parceiros) souberam articular a linguagem do direito e garantir a unidade de conservação, mas não tiveram o mesmo sucesso no processo de produção de territórios (ou territórios específicos);
tomamos o mst por tratar-se de um paradigma de movimento social, de movimento social no campo da questão agrária e ainda, por tratar-se de um movimento paradigmático na produção de territórios, sendo apontado mesmo como vanguarda na definição de territorialidade;
a luta por direitos, uma guerra ao latifúndio e suas profundas raízes em nossa estrutura social e estatal, inclusive jurídica, continua, portanto, articulada aos processos de territorialização (para escaparmos da noção economicista e utilitária de produção), pois os mesmos latifundiários compõem a indústria do agronegócio, articulada com o mercado internacional via mercados de grãos, pecuária para exportação, de um lado, e agrotóxicos de importação, de outro;

sugerimos que experiências como mobilizações, marchas, acampamentos, ocupações etc marcados pela solidariedade e o despojamento são fundamentais num processo de subjetivação e socialidade que definirá a territorialidade criada no movimento;
associadas essas vivências a um processo de ensino-aprendizagem de inspiração freireana que articula saberes locais, isto é, politicamente localizados, em torno de práticas de produção, tem-se então referências para a configuração de uma política de produção que se define familiar e agroecológica contra o domínio majoritário do agronegócio/agrotóxico;

quando contextualizamos a luta de um movimento de trabalhadores rurais no regime de um estado neoliberal, as coisas se complicam ainda mais, pois os órgãos do estado de assistência técnica ao “produtor rural” estão comprometidos com as indústrias do agronegócio/agrotóxico, seja pela formação de tais técnicos em universidades e centros de pesquisa que historicamente construíram tal alinhamento, seja pela própria tendência neoliberal da política de estado;

se o latifúndio e a política neoliberal nos conduziram ao agronegócio e à condição neocolonial de exportadores de bens primários (alimentos e minério), os laboratórios e indústrias da biotecnologia e seu regime jurídico internacional nos conduziram à condição de megadiversos, de fornecedores de saberes e práticas (conhecimentos tradicionais), isto é, de ciência e tecnologia tradicional, as quais sempre foram desqualificadas pela ciência oficial;
por outro lado, o movimento dos pequenos produtores, dando-se conta da rede em que tem sido envolvidos, passaram a compor sua territorialidade contra a ordem majoritária e dominadora que oprime agricultores menores em todo o mundo globalizado;

a agroecologia e os princípios que a acompanham, os quais levam em conta a associação dos saberes locais com princípios de biodiversidade, temporalidade (ciclos de vida), socialidade intra e interespecífica, solidariedade, sustentabilidade, economia solidária, entre outros, acaba por se tornar um contraponto privilegiado na busca por linhas de fuga à sociedade de controle monitorada e matematizada por computadores, sistema financeiro, monetarização generalizada das relações, programas assistencialistas, publicidade...

assim, o lugar em que o nosso capitalismo de colônia deslocou esses agricultores menores consiste num lugar privilegiado de resistência e luta por alternativas à redução das possibilidades de vida e socialidade imposta pela sociedade de controle;

28 dezembro 2011


Estado neoliberal e resistência na floresta

Tendemos a pensar a atuação do estado em nosso contexto, de uma reserva extrativista, geralmente de forma negativa; tendemos a pensar que os problemas da reserva se devem à falta de intervenção do estado para elaborar plano de manejo, conter os infratores, o desmatamento, contribuir na criação de alternativas sustentáveis para alimentação, moradia, transporte, produção.
Sempre ouvimos argumentos como: “o IBAMA não tem recursos”, “o ICMBio não tem funcionários”, “o plano de manejo resolveria o problema do desmatamento e da pecuarização”, entre outros que lamentam a ausência do estado.
Esforçamo-nos e insistimos que o estado é igualitário e faz cumprir todas as leis com o mesmo empenho. Não desconfiamos do estado, mesmo que seja um estado liberal.
Esses refrões acima, cantados em coro pelos funcionários do estado podem, em sua repetição, capturar outras vozes e serem cantados pelos próprios moradores das reservas que, cansados dos abusos de poder locais, assumem a ladainha como quem reza a nossa senhora das leis ou à divina constituição.

Não nos ocorre, porém, uma abordagem positiva da ação do estado: sua forma de manter o controle social na região é justamente por meio da ausência e do suposto descontrole.
Nesse sentido, podemos generalizar, ou ao menos, aplicar à nossa realidade do Alto Juruá, a leitura foucaultiana de Alfredo Wagner para a região em que se instalava o Projeto Grade Carajás em seu trabalho A guerra dos mapas:

Mediante o amplo desconhecimento das realidades localizadas e a não-atualização de informações elementares, pelas instituições públicas e pelos organismos de planejamento, pode-se afirmar que o descontrole funcionaria como forma de controle social. (p.25)

Diante da afirmação do antropólogo, fica evidente a ingenuidade de se pensar que o diálogo com o estado neoliberal não acontece pela falta de recursos para diárias ou corpo de funcionários disponível. Trata-se de uma política de estado que não só deixa de priorizar as ações garantidas em lei junto a essas populações (para cumprir compromissos com outros seguimentos locais), como vai mesmo operar ativamente no desconhecimento dessas comunidades, de sua cultura e seus saberes, de seus complexos regimes de socialidade, no ocultamento de qualquer função que não seja apropriada por essa política neoliberal e sua redução do social ao mercado do assistencialismo de estado.  

O pragmatismo dos planejadores prescinde de dados fidedignos sobre aquelas situações sociais apoiadas nas economias familiar e tribal, nas formas de cooperação simples, no uso comum dos recursos naturais, na pesca artesanal e no extrativismo em pequena escala. A dominação e o controle são exercidos mediante o desconhecimento e a aparente falta de controle. (p. 25)

É assim que as reservas extrativistas, supostamente garantidas pelo governo federal, acabam ficando (se não foram criadas para tanto) a mercê do jogo político local e da economia eleitoral de prefeituras e mesmo governo do estado, que negociam com as bolsas-assistencialismo criadas pelo mesmo governo popular.
 
Aliás não se trata apenas de ausência, o forte impacto na economia da região dos programas assistencialistas de monetarização generalizada e desordenada da parte do estado, os quais vem se juntar às aposentadorias e os salários de professores e outros funcionários da reserva, não são sequer pesquisados para uma avaliação e um planejamento local. O desordenamento é a ordem do estado.
A partir disso, e sabendo dos problemas criados por uma política assistencialista (e somente assistencialista, isto é, sem quaisquer projetos de supera-la), ainda mais se tratando de uma política assistencialista que opera pela monetarização generalizada e descontrolada entre florestãos (habitante da floresta) de uma reserva extrativista que o mesmo estado se escusa de apoiar, assumindo seus compromissos legais.
Essa política assistencialista tem servido muito bem aos interesses do estado, esse estado neoliberal, pois o dinheiro se torna moeda de troca da economia eleitoral;   

Entender tais conflitos na positividade pode, no mínimo, levar a um processo de politização no trato dos movimentos comunitários com órgãos gestores de um estado liberal em tempos de triunfalismo do agronegócio e do manejo florestal (mesmo que esses órgãos sejam parceiros estratégicos de alguns seguimentos desses movimentos).

No entanto, não estamos defendendo mais controle do estado. Nosso ponto é lançar-se num devir com os conhecimentos tradicionais, que chamaremos aqui de saberes, associados a tecnologias contemporâneas e voltados à resistência aos ataques dos complexos capitalísticos que há tempos colonizam a floresta e seus habitantes.
Vemos nesses saberes propriedades que lhes permitem produzir territórios, socialidade e subjetivação voltados à multiplicidade. Entender tais saberes devidamente imbuídos de seu aspecto político pode potencializar o que essas comunidades teriam de contra estado, apropriando-nos aqui do conceito de sociedades contra o estado de Pierre Clastres.
Quanto aos territórios, em vez do espaço estriado com que lida a ciência régia, o conhecimento científico do espaço apropriado pelo estado em função do controle social na forma de discurso, entendemos que os saberes investem um forte coeficiente de espaço liso na configuração de territorialidades.
O nomadismo próprio desses saberes elabora uma cartografia que conecta hecceidades, segundo um regime de causalidade nada convencional, que opera com as linhas de fuga de um saber da floresta, potencializando o duplo sentido da preposição, mas marcando menos sua função genitiva do que a possessiva, isto é, trata-se de um saber pertencente à floresta e suas subjetividades outras.
Em relação à socialidade, acreditamos que a subjetivação capitalística, potencializada por uma política de generalização da monetarização das relações, conduz ao individualismo ou, pelo menos, ao enfraquecimento da solidariedade entre os moradores da floresta que vêem suas complexas relações de vizinhança e compadrio, por exemplo, substituídas por um emprego na escola local ou pelo trabalho na diária (venda de mão de obra).  
Quanto à subjetivação, ela se articula com a territorialização e a socialidade, mas destaquemos um aspecto. Há muito já se fez notar o prazer e o gosto por conhecer e pesquisar desses povos da floresta. Seu convívio cotidiano com a floresta e a prática da observação que distingue e da atenção que organiza, coloca-os em uma posição privilegiada. Juntando isso aos preconceitos que sofrem por seus saberes, visto que só recentemente esses saberes passaram a ser reconhecidos e por um pequeno segmento da sociedade científica, é com grande prazer que nossos interlocutores apresentam o resultado de suas experiências bem sucedidas em agroecologia.  

19 dezembro 2011

dos ínferos 



 


se persistisse em sua tolice, o tolo se tornaria sábio







wb

05 dezembro 2011


alianças demoníacas 2

o biotecnólogo coloca o problema da tecnologia, ou melhor, a tecnologia como solução dos problemas presentes e futuros;
essa idéia da tecnologia como solução, principalmente como salvação, é antiga;
mais interessante ela vem se tornando quando se trata da tecnologia sanar problemas criados pela própria tecnologia;
no entanto, não retrocedamos: estamos imaginando aqui se não seria indissociável a tal tecnologia (termo problemático) e as sociedades e socialidades que lhe dão sentido;

colocando o problema da tecnologia: é/seria/será possível usufruir dos benefícios da modificação genética sem estar na mão dos laboratórios, sem entrar na dependência de suas cadeias?
esse é o problema: o problema político do conhecimento: o saber não se dissociaria  do regime de poder que lhe dá origem;
não há como pensar numa sociedade hiper capitalista, uma biotecnologia que sirva ao bem estar comum;
numa sociedade em que o bem comum foi relegado a uma posição meramente estratégica, a manutenção da democracia, e o mercado alçado à posição de regime político e campo de forças da democracia, não se pode esperar que a biotecnologia sirva para resolver nossosproblemas;

vejamos algumas da estratégias montadas pelos laboratórios para estabelecer tais cadeias, sua relação com o conhecimento tradicional, sua contribuição para o aumento na quantidade de alimento disponível (relação entre produção e diminuição da fome);

essa forma de produção está sintonizada com uma idéia de sociedade 100% urbana e totalmente monetarizada, o que significa que não ter qualquer dinheiro, viver na miséria é mais importante que comer o seu próprio alimento;
monetarização é sinônimo de controle;
tudo está circulando no mercado, inclusive os contingentes populacionais; 

a agricultura familiar é hoje uma das frentes de resistência a esse sistema, do qual não conseguimos separar a biotecnologia ou os transgênicos;
o contraponto a essa ciência régia está sendo gestado nas escolas técnicas e universidades dos movimentos de trabalhadores rurais e sem-terra;
é também nesses movimentos que se articula num verdadeiro coquetel molotov, questões fundamentais de nossa realidade (articuladas com o processo histórico que as influencia) como reforma agrária, apartheid social, alternativas ao capitalismo e sua relacionalidade, poderes da mídia;
é ainda nesses movimentos que tem encontrado lugar práticas diferenciadas de relacionalidade, de produção e apropriação de conhecimento, de troca e circulação de imagens da realidade e seus sujeitos, de uso e interação com a terra e o território;
toda essa produção de diferença realmente ameaça a império da unidade;

no entanto, desmascarando a falácia da dificuldade de produção (preocupação do agronegócio  monocultor da exploração predatória), percebe-se nesse processo de democratização do conhecimento que a tecnologia mais importante é a humana, a tecnologia social;

a tecnologia social associa sim certos conhecimentos da sociedade científica a conhecimentos tradicionais;
muitos desses conhecimentos das sociedades complexas são, no entanto, conhecimentos de resistência, libertários, nômades;
tecnologia social aqui refere-se à relação entre as formas alternativas de produção da agroecologia (que priorizam a autosustentabilidade, via biodiversidade, em vez do comércio, via monocultura), saberes nômades que escapam aos regimes da ciência régia (correm paralelos enquanto fazem frente ao regime majoritário) e, principalmente, processos de subjetivação aqui acionados;
a tecnologia social que visa neutralizar os efeitos do processo de desestruturação próprio das políticas públicas em zonas privilegiadas pela diversidade biológica e social, tais como inchaços urbanos, violência, monetarização generalizada em pequenas comunidades em plena floresta amazônica;
essa tecnologia social que inventa tais processos de subjetivação neutralizantes resultam da articulação de formas alternativas, menores ou outras de produção (principalmente alimentos) e de conhecimentos, e promove entre as pessoas um regime de relações que escapam ao circuito estabelecido pela dinâmica do majoritário;
nesse processo a diferença ou a diferenciação se destaca pois não estamos confrontando dois regimes equivalentes, em vez disso apontamos a emergência de regimes minoritários de relações sociais (o que não se restringe a relações humanas) que se articulam com a produção agroecológica e o saberes locais para fazer frente a um regime majoritário que generaliza a forma da relação social mediada pelo capital e pela divisão originária humanos (cultura) e não-humanos (natureza), reforçada pelo apartheid ontológico da modernidade;
tudo isso se articula num contexto em que tanto a linguagem e como a realidade do desenvolvimentismo que, apesar de precárias, conformam a imaginação e visão de mundo majoritárias, principalmente devido à política em torno da distribuição dos benefícios dos programas de assistência social;
pois é nesse contexto que deve se impor a linguagem e as práticas de reflorestamento e agrofloresta, que tomam, para tanto, desde de os discursos ecológicos fundadores das reservas extrativistas e da reforma agrária do seringueiro, até elementos mais recentes como as mudanças climáticas globais, a neutralização de carbono entre outros;
alianças demoníacas 1



conversando ontem com um jovem pesquisador em biotecnologia, ouvi a seguinte frase: o pessoal fala de transgênicos, transgênicos são o futuro, para garantir alimento para a humanidade;
interessante, algo em sua fala, contextualizada no universo dos biotecnólogos, colocou-me a prestar atenção, em vez de responder imediatamente;
talvez por que minha experiência seja maior com argumentos que reiterem meu ponto de vista, do que com o debate;
então, pude ver o problema de um outro ângulo, do qual não tinha visto ainda;

é importante que se entenda que o exercício de perspectiva aqui proposto também se contextualiza com as políticas públicas que o estado do acre, estado com forte aptidão florestal, vem implementando: programas com sementes transgênicas para pequenos agricultores;
destaque-se que, por uma série de fatores que ainda precisam ser descritos e analisados, o acre, por outro lado, se destaca por um movimento organizado de produtores orgânicos;
diferente dos transgênicos, o apoio recebido do governo por esses pequenos produtores foram iniciativas isoladas, nunca um programa, as quais vieram geralmente do ministério da agricultura;
quem se debruçou mais sobre a proposta, colaborando com assistência técnica especializada foram grupos de pesquisadores da universidade;

também, assim como esse biotecnólogo, considero fraco o argumento de que tais modificações causem danos à saúde;
não por que não possam causar, mas por que a questão só serve para nos manter presos, ou seja, mais que a resposta, o problema está é na questão;
os agrotóxicos causam danos muito mais evidentes e os aceitamos ainda hoje como instrumento de primeira ordem da revolução verde (agronegócio pós-guerra);
usar tal argumento para manipular a opinião pública?
em todo caso, não creio que seja um argumento forte, ainda que seja o único que tenhamos, já que argumentar com a cadeia econômica e suas estratégias exigiria alguma formação política ou social, o que nossa opinião pública não tem ou quer ter;
assim, utilizamos o medo para aterrorizar o cidadão e desprestigiar o melhoramento genético;

no entanto, sabemos que o combate aos transgênicos e à visão de sociedade que os laboratórios ou corporações promovem, tem se travado também como um combate político pela possibilidade de outros mundos, outras sociedades, outras naturezas, outros conhecimentos, enfim, outras formas de relação que as da exploração e do extermínio;
inclusive por que a visão de mundo manipulada pelas corporações hoje alimenta-se da imaginação monista, do universo unificado numa gênese que vem desde as unificações de dimensões religiosas, passa pela síntese histórica da civilização e do estado colonizador, pela ciência positivista do progresso, com o seu grande divisor natureza/cultura a sustentar sua concepção universalizante do mundo natural, bem como seu complementar (multi)culturalismo, da unificação da realidade simbólica com a publicidade e a monopolização do futuro empreendida pela mídia, com toda a manipulação política que já conhecemos e aceitamos, da grande unificação do estado financeiro global que nos suborna com as esmolas do assistencialismo e aterroriza com seu poder de criar inimigos, enquanto o mercado financeiro empreende o sistema de escravização globalizado;

a resposta dos laboratórios também tem sido no mesmo nível de suas práticas de mercado: lobby, influência política, corrupção, propaganda;
o caso de marina silva (michael) pode servir de exemplo, bem como alguma notícia do que se passa no peru, que aprovou no congresso um resguardo de 10 anos para medir os impactos dos transgênicos antes de adota-los;

não tenho dúvida que se trate de uma questão econômica: estamos em um mundo em que as corporações saqueiam e escravizam diante de todos e ainda são homenageadas pela mídia como as grandes e únicas promotoras do nosso bem-estar;

no entanto, o que me chamou a atenção foi o problema de conhecimento aqui envolvido;
os transgênicos estão envolvidos em uma longa cadeia de produção de conhecimento, de ciência: direitos sobre propriedade intelectual, fórmulas, copyright;

o filme corporation propõe uma questão interessante: a da relação problemática das corporações com a sociedade;
comparando as corporações a indivíduos, pessoas jurídicas, analisa sua condição e descreve suas possíveis patologias; 
segundo a comparação e a análise proposta pelo filme, corporações são psicopatas;

portanto, parece interessante, a altura em que chegamos, estabelecer relações entre regimes de conhecimento, políticas públicas e os regimes de relacionalidade, a socialidade que se associa a tais conhecimentos;
o regime de conhecimento produzido pelos laboratórios e corporações traz embutido ou pressuposto toda uma imagem de sociedade e de relações sociais;
cremos que é importante começar a entender minimamente, ou pelo menos ponderar, o que está aí inscrito para podermos relacionar esse conhecimento e essa ciência com nossos regimes de saber-poder locais;
mesmo que sua megalomania nos ofusque os sentidos ou nos sintamos intimidados, penso que não há como nos contextualizarmos sem trazer para o jogo esse regime de saber-poder, sua influência, seu poder de decisão hoje quanto às questões mais decisivas da vida pública; 

isso, inclusive, por que nossos regimes de saber-poder são menores na medida em que escapamos desse determinado regime, que atualiza o majoritário e que hoje domina, que responde pela ciência régia;

aqui tomamos, ao lado do rizoma e dos saberes nômades, a noção de literatura menor também elaborada pela articulação deleuze-guattari: uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior;
o que caracteriza inicialmente essa modificação é um forte coeficiente de desterritorialização;

na ilha da ciência régia, bem localizada, territorializada, abriu-se um rasgo de caos por onde vazam devires-animais, por onde escapam toda ordem de estranhezas evitadas pelo bom senso comum de um mundo unificado;
enquanto regime da ordem, da explicação, da objetivação, do molar e do extensivo, do estabelecimento de valores para a determinação de uma verdade, de uma imagem do verdadeiro mundo, a ciência régia responde pelo controle pela territorialização (ver conclusão de o que é a filosofia?);

desterritorialização quando se investe na diferenciação em vez da identificação pela explicação;
em vez de uma convergência, conquistada pelo isolamento da perspectiva humana, operamos com a divergência, fazendo passar pela matriz da perspectiva humana uns tantos outros sujeitos, ou partes de sujeitos, ou devires[1];
aqui a perspectiva já não é mais função da identificação, ela se torna suporte para a diferenciação, num processo de desterritorialização em que nada será como antes;


mas não se trata de emprestar a perspectiva (oncinha pintada, zebrinha listrada, coelhinho peludo...), trata-se de aliança demoníaca;


[1] Um devir não é um nem dois, nem relação de dois, mas entre-dois, fronteira ou linha de fuga, de queda, perpendicular aos dois. Se o devir é um bloco (bloco-linha), é porque ele constitui uma zona de vizinhança e de indiscernibilidade, um no man's land, uma relação não localizável arrastando os dois pontos distantes ou contíguos, levando um para a vizinhança do outro, — e a vizinhança-fronteira é tão indiferente à contigüidade quanto à distância. Na linha ou bloco do devir que une a vespa e a orquídea produz-se como que uma desterritorialização, da vespa enquanto ela se torna uma peça liberada do aparelho de reprodução da orquídea, mas também da orquídea enquanto ela se torna objeto de um orgasmo da própria vespa liberada de sua reprodução. (deleuze-guattari, mil platôs 4: 91)