23 setembro 2005

Não foi possível acabar com Deus, ainda temos a gramática.
Aprendemos a pensar (para não dizer que fomos condicionados) racionalmente, ou seja, no âmbito de um padrão, modelo ou paradigma da ordem em que identificamos muitas vezes o objetivo do pensamento com a prática da ordenação, lê-se Deus. Nossa própria concepção de sujeito, a construção social da pessoa, se dá em nossa sociedade pautado antes na ordem que na arte. Esse modelo ou paradigma (ou cultura) recai sobre nossa percepção com um esquema de pressupostos que nos determina a fixar ou identificar o universo criado (instaurado, determinado, herdado) pelos sentidos com todas as capacidades da realidade, ou seja, universos possíveis. Têm sido criadas linhas de fuga pela antropologia contemporânea que remetem esse caráter de nosso pensamento e de nossa ciência a uma tradição metafísica (ou mítica) que remonta aos gregos e se arregimenta com a tradição cristã criada posteriormente.

13 setembro 2005

coletivos inteligentes

na introdução a ouvir o tempo esboça-se a experiência de elaboração, a tentativa de definição de um OO possível; o que se ouve ali são os esboços, balbucios talvez, de uma definição de todo o trabalho: de que forma se dá a experiência laboratorial dos coletivos de saber; o caráter laboratorial do OO forneceu o motor para a elaboração de uma proposta de design desse coletivo; tentou-se então definir linhas de fuga que nos deixassem entrever o alcance dessa experiência; esse constructo perceptivo, criativo, pensante, sensível busca vazão para expressar-se; a cada vez encontra canais mais puros de onde tem irrompido a criação desse agenciamento OO; esse agenciamento resulta da interação, da circulação, da reelaboração contínua de nosso saber; não podemos falar individualmente, não podemos ver com olhos individuais; nossa voz retumba longe, nossos olhos podem ver muito além da espessa nuvem de concreto que nos cerca; não é possível renunciar a essa máquina;
prosseguindo na proposta original opero com a noção central do trabalho do ouvir o tempo: o plural criativo; percebe-se que o processo criativo opera na zona limítrofe da ordem: não se obedece a ordenação psíquica que aprendemos na escola; o criativo é um devir em que o outro deixa pistas; ao longo de alguns anos operando em um coletivo de intervenção e saber, o Oimporama Orereko, operei em um desses complexos que constituem conhecimento de forma coletiva: para elaborar vivências de saberes: nadaram em rios, viajaram pela Serra do Mar, sorriram, comeram chipa, cantaram e dançaram muito em noites de frio e suor, ficaram em silêncio dentro do tempo guarani etc.; implodir com a obsessão objetiva de definir o sujeito de Estado: a experiência guarani a bordo dessa nave mãe: OO. proporcionou a vigência de devires em corpos e saberes escritos, palavras que proporcionam a proliferação de perspectivas;
imagem: O Pico do Jaraguá, de Evandro Carlos Jardim (gravura em metal).

12 setembro 2005

Para que se dê o processo de diluição da forma aciona-se o devir. A diluição da forma é processo de devir do criador de formas. A matéria é a palavra-chave para abrir a cápsula produtora de formas. Essa operação de identificação criador-mundo é captada por um narcisismo cósmico. Ao invés da identificação fascinante proporcionada pela representação, pela imaginação formal, opera-se a diluição no cosmos, ponto de partida para o devir da imaginação material. O ser se volta a sua fonte jorradora de reais e se estilhaça. Quando busca fixar a impressão sobre si entra num processo de abertura ao infinito. Esse processo não pode se definir enquanto objeto, só se objeta enquanto processo. Desloca-se assim da busca da definição de objetos para o movediço campo da produção de objetos, de atos. Estilhaçar-se é o processo de desfiguração proporcionado pelo exercício da polifonia literária ou pelo devir filosófico. O agenciamento é o processo de operar com esses enfoques materiais, esses devires. Os intercessores são esses devires que vão se definindo. Nosso objetivo é estabelecer a partir desse processo as condições para o plano de imanência. Neste plano, o que se processa é o próprio coletivo criador. O indivíduo ao obliterar-se cria a condição de possibilidade de tais coletivos criadores. Mesmo o sujeito é constituição de um devir, à diferença que esse devir busca manter sua homogeneidade.

09 setembro 2005

O corpo dissol...

O corpo como modelo teórico é similar ao corpo como laboratório do xamã. São diversos os recursos a serem explorados no intuito de acionar modelos pluridimensionais de criação e exploração de conhecimento. Segundo Dom Juan Matus, relutamos que possamos aprender em silêncio. O silêncio é prática fundamental da aprendizagem. A natureza do conhecimento é o silêncio. Definiu-se essa dimensão como conhecimento silencioso. O silêncio epistêmico homologa com o fogo. Práticas silenciosas são fundamentais à exploração de vivências corporais intensas. Elas operam como vetores, como aceleradores de processos. Estaremos nos próximos dias trabalhando com modelos sensíveis. Espécies de mapas que buscam captar dimensões sensíveis e dispô-las em superfícies. O material a ser utilizado deve variar, priorizando as experiências visuais e táteis simulando outros sentidos. Com essa experiência pretende-se colocar os sentidos em contato com dimensões sensíveis não refletidas até então. São raras as oportunidades de refletir, expermentar e recriar dimensões sensíveis, por isso aproveitaremos as aberturas que fizemos em nossos corpos vigiados ao longo desses primeiros meses para operar modificações e metamorfoses em nossa matéria essencial. Devemos nos situar em situações limite que nos possibilitem experiências extremas. Essas experiências dependem de nosso grau de suportância para adentrar, manipular, cortar, costurar, diluir, dissolver entre outras operações. Já se comentou o princípio dessa operação com o complexo de Ofélia. O complexo de Ofélia é utilizado entre as imagens da morte e do terror que compõem o universo iniciático de Bachelard. Ofélia caracteriza a operação de dissolução provocada pela prática da imaginação material rumo à imaginação dinâmica. Diluir-se no universo: esse é o princípio afirmado pelo narcisismo cósmico elaborado em A água e os sonhos.

(imagens Odilon Redon: Silence, Ophelia)

02 setembro 2005

Tempos Modernos


Tempos Modernos

O filme de Charlie Chaplin pode ser considerado como um tratado crítico de técnicas corporais. Utilizando-se de seu arsenal de gestos, trejeitos e movimentos articulados por um corpo cultivado na escola mambembe do circo num período anterior à emergência tecnológica, o autor opera uma crítica da modernidade tendo em mira o uso que se fazem dos corpos nessa era das máquinas. Corpos e máquinas se misturam. Operam em continuidade, ao ponto de se inventar uma máquina de alimentação, ao ponto do empresário perseguir o operário dentro do banheiro (consciência).
A apropriação que o filme faz do espaço coordena-se com a possibilidade de explorar os corpos. Trabalha-se com planos abertos, poucos cortes e manipulações da imagem. Os recursos sonoros são apropriados nas vozes das máquinas e dos apitos (cenas: fábrica, voz do patrão, toca-disco, apitos da prisão). A música tem função narrativa e visual fundamental (cena do refeitório, cenas: início, intensidades, tensões sociais).
Um ponto central na abordagem do filme é seu caráter meta-teórico. Por meio do filme o autor teoriza o cinema. O autor se refere ao próprio cinema ao explorar espaços como a fábrica ou a prisão. Demonstrando como o corpo é apropriado nesses espaços, refere-se à apropriação do corpo pelo cinema. A primeira cena do industrial em sua sala, monitorando todo o espaço, coloca-nos a questão central primeira da sociedade de controle que aperfeiçoa antigas técnicas de vigilância, apropriando-se agora dos recursos tecnológicos. O espaço que vemos na tela é o espaço da produção. Carlitos é o agente da disfuncionalidade. Lembremos que é assolado pela loucura que opera a ruptura de espaços e sai do espaço da fábrica para a luz do dia. Não sem antes bater o ponto.
É o filme dentro do filme. Assim como vimos que as vozes que soam são as vozes das máquinas, a imagem inicial do filme é a tela dentro da tela.
Esses corpos-máquinas (corpo do operador de controle da fábrica) são sobrevalorizados por sua artificialidade, sua reinvenção em descontinuidade com a máquina. A espontaneidade é o elemento que ameaça essa ordem.
O corpo produzido pela indústria cinematográfica (lembremos do corpo de John Wayne, por exemplo, de sua barriga e de sua maneira de subir ao cavalo nos filmes da maturidade) é o corpo dócil, o corpo moldado na poltrona (e, no nosso caso, no banco escolar). Assim, também, são os recursos de linguagem que se tornam cada vez mais explorados na confecção dos filmes como é o caso dos fechamentos dos planos em plano americano e em close. Enquanto este foi cada vez mais se tornando característico dos filmes de ação (western e policiais), aquele ganhou notoriedade nas grandes narrativas, com o uso do plano/contra-plano, e nos filme de amor.
Nosso filme, no entanto, privilegia cenas abertas, à luz do dia, em ambiente externo. Cena clássica é a cena do líder comunista Carlitos, cena em que se mostra tanto a manifestação dos trabalhadores como a repressão policial. Essas cenas têm forte influência dos filmes documentários, tendência oposta à qual se encaminhava a indústria cinematográfica americana, no sentido da manipulação incansável das imagens, do fechamento cada vez mais intenso no interior dos estúdios, do cultivo da artificialidade de temas, enredos e personagens.
Ao invés da artificialidade dos estúdios, rupturas similares a do teatro épico, que denuncia o deus ex-machina dos recursos tecnológicos na produção artística. Até mesmo a máscara do palhaço Carlitos já se evidencia em cena e não mais se esconde. Com sua espontaneidade Carlitos denuncia a artificialidade funcional dos demais personagens.
Desse jeito, a intenção do autor com sua abordagem da corporalidade é denunciar certa degenerescência que acompanha a utilização dos corpos pela sociedade moderna. O corpo é, assim, evidenciado enquanto instrumento, revelando a apropriação e transformação das técnicas corporais por essa sociedade através dos símbolos e valores associados ao corpo.
É assim que o autor coloca em cena diversos discursos da modernidade, tal como o discurso da saúde perfeita proporcionada pela ciência farmacêutica. Por vezes os personagens tomam pílulas.
Outro discurso relacionado à saúde é o do anti-stress. Nessa cena, Carlitos-louco está tendo alta do hospital, quando o médico recomenda evitar emoções fortes e se despede com um tapa em suas costa que o desconserta. É assim que elabora a problemática moderna da produção de consumidores (de produtos, de serviços e de discursos).
Durante o devir comunista-presidiário, Carlitos vivencia situações exemplares. Depois da demarcação de espaços com seu companheiro de cela, todos os reclusos vão para o refeitório. Todos marcham ao som do apito. No refeitório é colocada a questão da cocaína (coca, cola?).
O valor do corpo e as transgressões a ele associadas podem conduzir o comentário sobre essa cena. A cocaína é o pecado moderno. Pecado extraído da natureza, coca, a cocaína pode encarnar o espírito da modernidade. É assim que Carlitos embala um devir junky.
A operação se dá por debaixo da mesa. O traficante sentado ao lado de Carlitos coloca o nose-powder dentro do saleiro. Ele, por sua vez, se farta do estimulante. Suas reações se dão na expressão facial antológica. Torna-se valente como os personagens de filme de ação. Ao voltarem para a cela, dá-se à cena em que o autor elabora uma cena circense em que parodia o cinema de ação americano, o western.
No jogo das certeiras previsões da modernidade, seja empiricamente, como pelos elementos que serão apropriados como modelos teóricos (prisão e a corporalidade em Foucault), brincamos com a referência à Matrix, na cena em que Carlitos desvia dos tiros.
O problema colocado na prisão com o elemento cocaína é o dos fluxos que atravessam esse corpo-máquina. Ao contrário do que se pode pensar, o tabu também produz consumo, estimula o desejo ao magnificar o proibido. Sem querer operar definições correlativas, a relação tabu-transgressão merece ser associada. Através da paródia o autor prenuncia a sociedade da ação e dos plantões policiais: sociedade tensa..
O poder da pantomima serve-lhe para chamar novamente a atenção sobre o corpo como a máquina mais fascinante a ser cultivada ao invés de posta de lado, em desuso, substituído. Lançando sua obra num vão atemporal desse tempo devorador da memória dos homens o autor faz rir do tempo das máquinas que avançam para ditar o que perece. Afirma a pureza...