26 outubro 2006

Tempo de viagem

A incursão pelo caminho do Pacífico chama a atenção para um outro tempo. Convida à reflexão sobre a compulsão do nosso modelo de desenvolvimento. Propõe um elogio ao ócio.
O que o filme transparece é menos o ritmo das máquinas que ocupam a floresta para a construção da estrada.
O ritmo é o do tempo milenar que acompanha sereno o caminhar desses povos originários e dos que vieram junto a eles compor seu mapa étnico. Ritmo dos rios que confluem num só corpo. Ritmo das amizades que se compõem e amadurecem pelas estradas.
Enfim, A rota do Pacífico remonta à persistência do nomadismo próprio à cultura andina nativa, uma cultura de estrada.
Arrumemos as malas. Tomemos o expresso. A estrada é longa. A viagem fulgurante. O destino é o Pacífico.
Conflitos

Contudo, as zonas de vizinhança que compõem esse mapa cultural têm outra característica similar à constituição física: o conflito. Essas identidades se assemelham a batalhas travadas nas trincheiras étnicas.
O filme não se restringe à visão oficial de uma ingênua integração harmônica. A estrada resulta de um projeto econômico que ameaça a constituição física de uma Amazônia isolada até então. A resposta diplomática é ornada com ares ecológicos.
Além disso, encara-se uma cultura brasileira estranha a nós. Vê-se um Brasil que se sobrepõe às culturas andinas sem as assimilar.
Talvez o episódio do filme que evidencie tal conflito, inerente a esse mapa cultural, seja a situação política dos extrativistas brasileiros que há décadas vivem na Bolívia e estão prestes a serem extraditados.
Culturas de fronteira ou cultura de fronteiras

A rota do Pacífico é um filme de estrada. Pega o percurso que liga Rio Branco, capital do Acre, a Lima, capital do Peru. Parte da Amazônia brasileira, passa pela boliviana, adentra a peruana, atravessa a Cordilheira dos Andes até chegar ao Pacífico.
Essa constituição física híbrida do caminho, entre a Amazônia e os Andes, conduz o filme. Dilui-se a fronteira entre o econômico e o cultural. A estrada passa a ser o fio narrativo que nos leva por esse encontro de culturas.
Trafegar então entre fronteiras físicas e políticas confere a experiência da dissolução das formas homogêneas a que nos habituamos no cotidiano, formas as quais delineiam nossas identidades.
O mapa desenhado pelo filme descreve fronteiras culturais. No entanto, tais fronteiras não são linhas divisórias que distinguem homogeneidades, são zonas de vizinhança que se espraiam configurando um mapa cultural difuso.
Os personagens que constituem o filme, dos rios à vegetação, dos pássaros às pessoas, fulguram esse trânsito, essa confluência.
Assim, identidades são redefinidas. Imbricam-se clima e vegetação, pássaros e morfologia, pessoas e rios. Do econômico ao cultural, da cidade à floresta, do físico ao humano.
Daí a originalidade do filme, que atualiza o difícil tema do sincretismo próprio às culturas, sobretudo à latino americana.
visão de porto maldonado a partir do ruztika
A rota do Pacífico, um filme que redefine fronteiras

Documentário sobre a integração Brasil-Bolívia-Peru representa
o Acre no projeto DocTV 2006

A estrada do Pacífico, ou la carretera del Pacifico, consiste num projeto de integração econômica entre Brasil, Bolívia e Peru. A estrada que liga o Acre ao oceano Pacífico deve transformar a economia da região, promovendo uma interação cada vez mais intensa entre esses países.
O Brasil, principal interessado no projeto, financia grande parte de seus custos. Estados ou departamento, antes isolados, passarão a constituir o corredor por onde escoará parte considerável da riqueza de seus países. A configuração natural da região imprime o caráter estratégico da estrada.
O acesso do Acre e dos demais estados da Amazônia brasileira ao oceano Pacífico é um projeto que deve reconfigurar a cultura da região.

19 outubro 2006

longa é a história que precede esse assunto, no entanto, vamos lá;
definiria hoje a antropologia como o estudo das perspectivas: como se constituem perspectivas, de que são feitas, como funcionam, para que servem, como se relacionam, como caracterizar sua gramática... etc.;
o que levou a antropologia de seus objetos abstratos e metafísicos – os estudos do homem... etc. – a uma tal abordagem pragmática e imanente, foi seu exercício de voltar-se para si, mobilizando seu instrumental em seu favor, colocando-se como experiência em estudo, e, com isso, redefinido sua matéria;
o tal homem não subsistiu ao estruturalismo, menos ainda ao capitalismo, foi pulverizado pelo arsenal produtor de realidades econômicas, sociais, políticas, cotidianas;
ao longo do século vinte os instrumentos de produção e transmissão de vozes coletivas se proliferaram, fazendo o falar pelo outro, prática clássica da antropologia, um dos dispositivos centrais das micropolíticas urbanas desse tempo;
a imprensa, com sua natureza política de quarto poder, consiste no laboratório de experiências das enunciações coletivas que vão nos caracterizar, a nós brasileiros;
ela já nasce o grande irmão, se não em escala, em discurso, já possui o olhar megalomaníaco do discurso homogêneo e autoritário que define a política e a história do brasil;
dado certo contexto, a antropologia, especialmente a da periferia, ao se auto analisar, analisar seu próprio discurso, descobre sua natureza híbrida, entre nativo e pesquisador;
tal processo desnuda sua natureza discursiva, relacional, bem como a pulveriza nas micropolíticas cotidianas, como prática molecular, como agenciamento autônomo de perspectivas pelo mais diversos grupos;
os grupos, os marginais exploram práticas discursivas: os beatniks na literatura com suas narrativas experimentais, explorando os devires marginais mais diversos visam criar um idioma para um novo povo, desconstróem o viés homogêneo que caracteriza a literatura do século dezenove, investem na derrocada, abortam os últimos suspiros da narrativa épica que trabalha as enunciações homogêneas;
o processo de popularização da antropologia, esse dar voz ao outro descoberto na imprensa, ainda retomou a roupagem do século dezenove, como se fosse essa a possibilidade de expressão do proletariado, dos marginais;
no entanto, não obstante o caráter fundamentalmente político de tais práticas, o que esse conjunto de procedimentos possibilitava era justamente uma desconstrução do sujeito do século dezenove, agenciado por essa vozes coletivas e homogêneas, não sendo, portanto, possível, para revidar politicamente a esse processo de dominação dos processos de produção ressuscitar categorias que só faziam reafirmar a ilusão de sujeito, de personagens conceituais no caso;
foi quase todo um século para exorcizar tais fantasmas, o que só ocorreu na segunda metade do século vinte;

antropologia e cinema
quando a antropologia – ou melhor, se se tomar aqui tanto a antropologia central como a periférica, dir-se-á as antropologias, assim: – quando as antropologias se voltaram, deram-se conta, e, principalmente, passou-se a praticar a concepção de antropologia submetida e marcada pelo processo sobrescrito, as velocidades aumentaram, as narrativas se tornaram mais complexas, as crises sucessivas provocaram deslocamentos de eixo na disciplina;
seu caráter relacional, central na construção das narrativas antropológicas, detonou a noção de perspectiva, conceito tanto visual quanto lingüístico;
a escritura verbal, mais especificamente a lingüística, teve função chave nos processos atravessados pela antropologia aqui referidos;
em termos lingüísticos, a noção de perspectiva remete aos processos de enunciação, processos decisivos para a definição dessa antropologia, seja em sua operacionalidade discursiva, estendendo-se pelos problemas epistêmicos em que redunda, seja em suas dimensões políticas;
quanto à escritura audiovisual, antes de assimilá-la a um instrumento etnográfico por seu caráter simplesmente descritivo, cabe rastrear as experiências antropológicas e, inclusive etnográficas, feitas por esses criadores enquanto experiência de linguagem análoga às propostas pelos movimentos aqui atravessados, tendo por guia a antropologia;
assim, o que se procura definir com perspectiva em termos de linguagem audiovisual? é o recorte feito pelo quadro, o olhar por trás da câmera, a seleção de imagens feita pelos cortes, a montagem e o encadeamento de imagens, o olhar do sujeito, do personagem, a troca entre a câmera e esse olhar...?
onde estará, assim, a perspectiva que é o elemento que promove a conexão entre cinema e antropologia, ou melhor, antes de se definir conceitual ou idealmente tal problema, como defini-lo pragmaticamente, em termos de linguagem, como instrumento operatório;
portanto, como se opera com a perspectiva nesse interstício que define a antropologia visual – interstício que abrange tantas experiências de linguagem que muitas vezes se pensa distantes dele e que ao mesmo tempo exclui tantas experiências que se acreditam representar-lhe?

para impulsionar esse devir, propõe-se retomar a gênese da concepção de perspectiva em antropologia;
a conceito é liberado ao se neutralizar o viés positivista – racionalista e empirista – do princípio de representação que pauta esse processo de produção de conhecimento;
quando a linguagem se volta para sua natureza operatória, quando se coloca em questão a tradição metafísica que define a ciência por seu objeto e por sua capacidade de neutralidade na representação desse objeto e de seus processos, passa-se a trazer para os procedimentos o processo de construção do conhecimento, esse processo passa a fazer parte do próprio conhecimento, do próprio resultado, exorcizando, com isso, a idéia de um método e de um conhecimento absolutos, para além de qualquer juízo de valor;
para que a objetividade continue sendo objetivo da ciência a noção de objetividade precisa reformular-se;

o caráter formal passa então a coabitar esses processos de produção de linguagem ombro a ombro com o conteúdo ou, por vezes, destacando-se em primeiro plano, desdobrando vertiginosas metanarrativas ou metateorias;
tais procedimentos requerem outros métodos de construção textual, bem como uma outra sensibilidade para recepção de tais obras;
a perspectiva resulta, assim, dessa outra sensibilidade, dessa inteligência voltada para a percepção de tais desdobramentos narrativos e enunciativos;
o olhar que olha se percebe a olhar, a experimentar olhares, captura-los, apropriar-se desses outros olhares, ou melhor, devir esses outros, deixar-se apanhar, assimila-los numa memória corporal, material;
esse olhar que experimenta com sua própria materialidade, sua percepção, resulta do processo que aqui se traça;
experiência metalingüística da sensibilidade, entre a sensibilidade recriada in actu do criador que, enquanto cria, opera a sensibilidade do espectador como seu intercessor, co-autor do trabalho;
jogo de perspectivas que se associa à dinâmica da caça: o criador busca circunscrever e caçar a sensibilidade do espectador num cinema da crueldade;
no caso, se o criador se deixa vagar, inconsciente de sua mira, pode ser ele a estar na mira desse espectador conceitual;
o xamanismo como ciência da percepção, que tantos instrumentos forneceu à antropologia, certamente os terá a oferecer à antropologia visual;

documentário e ficção
uma característica da operação realizada pelo pensamento desse período, no caso, se buscarmos regularidade que alinham procedimentos de construção de conhecimento, é o trabalho sobre a indistinção entre sujeito e objeto via olhar, contato;
o processo de separação, de distinção entre sujeito e objeto, visando a neutralidade do discurso, típico do racionalismo e empirismo precedentes, conheceu seu limite, cumpriu sua função, e passa-se então à busca de outros pressupostos;
é nesse processo de experimentação, nessa alquimia entre sujeito e objeto possibilitada pelos recursos discursivos, antes alheios e mesmo invisíveis do campo perceptivo e do campo semântico dos antropólogos, que será reformulada a noção de objetividade;
o processo de construção de objetos conceituais passa para o primeiro plano, passando a ser tratado no mesmo plano, no mesmo nível com que se trata o objeto;
alinha-se, portanto, no texto os níveis de tratamento do objeto e procedimentos de pesquisa, de apreensão, bem como procedimentos de linguagem com os quais ele é construído;
no caso da antropologia, o objeto é trazido para o primeiro plano, o plano do discurso do narrador-autor: mesmo valor, mesmo nível epistêmico;
estabelece-se uma simetria entre tais discursos, simetria essa que será problematizada na reflexão sobre os procedimentos de pesquisa que deverão trazer igualmente a marca desse pragmatismo próprio dessa simetria;
o exemplo de partida é a entrevista que será vista, a partir de agora, com mais desconfiança, por criar um espaço discursivo de laboratório, que isola o entrevistado de seu uso cotidiano e espontâneo da língua;
tal prática não será descartada, mas só fará sentido acompanhada de estratégias que visem dirimir o impacto desse procedimento, trabalhando-se paralelamente com outros procedimentos, como por exemplo procedimentos que promovam a autoria coletiva do material produzido para a análise ou mesmo para a própria pesquisa;
nosso propósito é traçar um quadro no qual se possa deslocar da estaticidade que caracteriza a lei codificada e, em conseqüência, do pensamento que define a lei como um conjunto de normas universais, que visam garantir princípios transcendentes tais como o bem, a justiça, a verdade, os quais são eivados de valores morais e se definem de acordo com aqueles que deles fazem uso;
compreender, assim, o direito como o instrumento de que uma classe, que tem por objetivo manter o poder, se utiliza na luta pelo poder;
o direito, portanto, possui a natureza similar à natureza do poder instituído, é um instrumento que serve ao poder instituído;
nosso propósito, assim, é contrapor o direito positivista, de tendência conservadora e reacionária, a uma perspectiva sociológica do direito que o insere na dinâmica da sociedade e da análise crítica do poder em sua imanência;
para o objetivo estabelecido se faz necessário caracterizar os operadores do pensamento que define esse direito positivista, seu contexto histórico político, social e epistêmico;
é isso que se tem feito ao se estudar a formação do estado nacional brasileiro no século dezenove, destacando os conflitos entre princípios democráticos e ideologia liberal, estudando a definição própria de liberalismo forjada pelas elites do período e nesse contexto, o papel central dos bacharéis como figura central do intelectual do império;
ao estudar o ensino de direito em relação com tal contexto e a cooptação desses bacharéis que assumem cargos políticos, num processo de profissionalização da política, tem-se a possibilidade de articular a prática desses bacharéis com o pensamento positivismo que se constitui no período e que fornecerá a base para o pensamento da república militar de duque de caxias;

10 outubro 2006

29_09
princípio de uma genealogia das concepções de natureza e cultura na antropologia da amazônia contemporânea
[1]

enfatizando o valor cognitivo e simbólico daquelas dimensões materiais estudadas pelos ecologistas culturais de um ponto de vista adaptativo – relação com os animais, origem das plantas cultivadas, dieta, tecnologia –, lévi-strauss deslocou para o interior das cosmologias ameríndias a macro-oposição conceitual entre natureza e cultura que subjazia às teorias deterministas dos herdeiros de steward;
(viveiros de castro, 2002:322)

a concepção da antropologia pelo estruturalismo

a intenção deste escrito é definir a especificidade da contribuição teórica do estruturalismo reinventado por lévi-strauss em sua abordagem da antropologia amazônica;
essa contribuição que vem sendo formulada metodologicamente desde as estruturas, avança em antropologia estrutural sobre o aspecto simbólico ao abordar temas como a linguagem, as artes, os mitos e, principalmente, o xamanismo;
daí a pensamento selvagem é o período de formulação das propostas arquitetadas então;
em pensamento selvagem já se desloca no território antes apenas referido, ainda que já recriado (xamanismo);
pensamento selvagem reformula novamente, como cada uma das obras do autor, seus princípios metodológicos, definindo seu instrumental construtivista que possibilitava uma conversão do olhar sobre os princípios empíricos e empiristas que ainda imperavam nas primeiras tentativas de antropologia;
concomitante e possibilitada por essa redefinição metodológica (forma), o autor investe na transubstanciação do seu material de trabalho (conteúdo), os referentes do empirismo tornam-se em modelos para o estruturalismo;
a deliciosa lógica do concreto narra as peripécias desse processo de redefinição epistemológica no vai e vem entre ciência e magia, entre modelo natural e modelo simbólico, entre objeto descrito e descrição do objeto, em que a intenção do autor é deslocar forma e fundo, descrever as miragens do empirismo e seu procedimento hipotético-indutivo, descrevendo, assim, as armadilhas em que essa abordagem resultava;
para isso é que o autor lança mão de um recurso incompreendido na lógica empirista: criar dois personagens conceituais – o bricoleur e o engenheiro – que funcionam como enunciadores, como figuras de retórica – ou de retórico –, que lhe servem para construir a imagem desses dois discursos que estão sendo contrapostos pelo estruturalismo não apenas como recurso discursivo, próprio a essa concepção de ciência, mas como um outro paradigma, um modelo de ciência diverso daquele cultivado pela tradição desde o racionalismo antigo;
refiro-me que tal recurso seria próprio a essa concepção construtivista de ciência, pois tal concepção tem por característica a apropriação de seu processo de construção e sua inserção na própria narrativa (análise), diluindo, assim, a fronteira, antes tão bem marcada, que distinguia objetivamente procedimento empregado de resultado obtido, visto que aquele devia ser neutro para alcançar invariabilidade deste;
na construção do construtivismo, no bricolage, a autoridade já não é a da tradição, legada pelo objeto descrito objetivamente – processo do qual, inclusive, o empirista extraia sua própria autoridade, visto que falava, de forma quase mística, a linguagem das coisas via laboratório;
aqui, a linguagem opera uma dobra sobre si mesma – e não sobre uma natureza reconstruída artificialmente em laboratório, ainda que objetiva –, o que possibilita um tratamento diverso do material;

dobra: a política discursiva
essa dobra sobre a linguagem redefine o tão pautado problema político, de fato, ainda hoje, um problema para a antropologia, mais ainda com o revival marxístico dos colonialismos e pós-colonialismos que voltam a excluir a dimensão da ordem do discurso, fazendo-nos ter a impressão que precisamos retomar os ares do século dezenove para acompanha-los, ou melhor ressuscitar o cachorro morto do positivismo para chuta-lo;
lembre-se que a antropologia, aliás, todo o estruturalismo, foi considerado, e ainda o é por aqueles que se negam a abandonar os tais ares revolucionários do século dezenove, um pensamento alienado, desprovido de engajamento, que essa coisa de discurso seria um preciosismo, coisas de intelectual, ciência pela ciência, etc;
no entanto, é nos termos das estratégias de discurso que se pode desconstruir o discurso herdado pela antropologia, principalmente pela etnologia, desconstruir seu modelo metodológico, processo em que das próprias ruínas resulta um viés epistemológico outro, desconstruir seu empirismo via construtivismo, desconstruir seu positivismo via estruturalismo;
não me refiro ao etnocentrismo pois não tenho intenção de sair dele, visto que o campo conceitual e analítico em que me desloco não é outro que o do nosso olhar;
desloco-me no problema discursivo colocado por essa antropologia ao analisar a linguagem utilizada pela ciência, ao circunscrever o limites estreitos que a ciência empirista que origina as ciências humanas lhe estabeleceu;
a circunscrição desse limite foi levada a cabo pelo estruturalismo, com sua redefinição das possibilidades narrativas das ciências humanas, com a redefinição de seu material de trabalho;
essa operação que permite às ciências humanas circunscrever o universalismo e o objetivismo de seu discurso, de sua perspectiva, possibilita igualmente redefinir seu plano de imanência, redefinir o limites e a especificidade de seu conhecimento;
colocado em perspectiva, esse sujeito do conhecimento ocidental reduziu-se de todo discurso a um discurso hegemônico;
essa operação possibilitou então um mapeamento das dimensões em que o político ou o poder, digamos assim, se desdobra no texto, estabelece províncias discursivas na superfície do texto;
deve-se, em parte, tal mapeamento ou diagramação a michel foucault, pelo menos, é a tal trabalho que o autor se dedica em sua obra;
é dessa abordagem, que projeta o problema político para os recursos discursivos constituintes do texto, que a antropologia simétrica colhe seus frutos;

as mitológicas
cotoveladas a parte, voltemos a lévi-strauss: se em pensamento selvagem a experiência era trazer o pensamento selvagem para desconstruir e redefinir o modelo metodológico das ciências humanas via etnologia, ainda com material analítico pertencendo predominantemente à abordagem epistemológica, nas mitológicas a experiência transpõe o limite que ainda a separava de diluir-se no pensamento selvagem;
se o pensamento selvagem define o instrumental, as antropológicas são sua aplicação;
os mitos não tem autores ou forma definitiva, acabada, não constituem obra provida de individualidade e seu conjunto pertence à ordem do discurso;
ao colocar-se em contato com tal material e absorver suas características no processo de construção de seu texto;
indubitavelmente refém do instrumental conceitual da epistéme tradicional, do modelo de construção conhecimento com que pretende romper, conforme análise de derrida – uma outra possibilidade seria que os conceitos apesar de continuarem pertencendo à tradição, sofreriam uma transubstanciação ao serem projetados no âmbito de tais cosmologias –, o autor arrisca investir numa mito-lógica que é mito-mórfica, ou seja, uma bricolagem etnográfica que assume sua função mitopoética;

conclusão
conciliar a tradição, via conceitos e procedimentos, e simultaneamente romper com a tradição passa a ser o dilema dos autores do século vinte;
impasse colocado por foucault como o de uma ruptura com o século dezenove, pode ser o impasse que remonte ao pensamento grego, que, segundo alguns (deleuze e guattari), teria sido despistado por nietzsche em sua redefinição do plano de imanência, da imagem do pensamento da filosofia platônica via pensamento trágico;
[1] segunda versão de texto originalmente destinado ao núcleo de antropologia ambiental da ufac, coordenado pela profa. dra. mariana pantoja;
antropologia simétrica I
como balanço pessoal dos temas debatidos no último encontro do grupo de estudos em antropologia simétrica, 18_09, passa-se agora à retomá-los;
o texto estudado, que serviu de intercessor ao debate, foi o panoptismo, extrato do livro vigiar e punir de michel foucault;
deu-se início com a tentativa de situar a texto na obra do autor; as obras mais importantes que o precedem são as palavras e as coisas, de 1966, e a arqueologia do saber, de 1969, sendo o texto em debate de 1975;
o ponto inicial quanto a essa contextualização consiste na constatação de que, nas obras anteriores, o autor está voltado para a definição do problema epistemológico, as palavras e as coisas, e à constituição de uma teoria dos enunciados, a arqueologia;
portanto, traça-se um quadro no qual a obra se concentra no problema discursivo, no qual a ordem do discurso predomina no texto e o organiza;
vigiar e punir, a partir desse contexto, marca uma inflexão no sentido de traçar um plano que é colocado como extensão do universo dos enunciados, o diagrama disciplinar;
não há uma relação de determinação, ainda que haja uma implicação entre tais instâncias;
ambas possuem a natureza do modelo, o que o afasta de determinar os enunciados a partir de um campo histórico-transcendental e vice-versa;
a questão é que o autor vai colocar sua teoria dos enunciados para operar como instrumento de poder, os enunciados implicam produção de realidade, não representam referentes transcendentes, pois agem na imanência;
colocou-se que o problema do poder-potência deve ser aprofundado conceitualmente, buscando sua genealogia;
esse movimento, a grosso modo, visa dissipar a distinção interioridade/exterioridade, conduzindo para as concepções de exterioridade e dobra, centrais no pensamento último do autor;
é essa operação que é caracterizada na passagem do arquivo para o diagrama: enquanto a primeira ainda guardava uma dimensão interior, a segunda realiza o texto como pura exterioridade (klossowiski);
este movimento implica destituir a imagem tradicional do pensamento modelado pela metafísica, de grande influência no século vinte, especialmente sobre a fenomenologia, no qual persiste a bidimensionalidade interior/exterior, corpo/alma, significante/significado, natureza/cultura;
a importância deste debate se evidencia, pois projeta a obra de michel foucault para um lugar central e precursor no campo da antropologia simétrica;
se já é vigiar e punir que propõe um método e uma metodologia para problematizar o caráter político da teoria dos enunciados, para operar a desconstrução discursiva das ciências humanas, arqueologizando os discursos soterrados sob seus escombros;
certo que aqui se refere ao problema conforme abordado por bruno latour e voltar-se-á a tal numa comparação aprofundada;
assim, este se apresenta, com certa liberdade, como o segundo tópico do debate: em que medida contribuirá foucault à antropologia simétrica?
instruções iniciais sobre o primeiro capítulo

a introdução deve apresentar sucintamente o trabalho, comentando tema, abordagem, procedimento e objetivo, ou seja, uma sucinta transposição discursiva do projeto que, supostamente, estava em forma de tópicos;
após a introdução, o primeiro capítulo deve conter essencialmente as resenhas dos textos lidos para a pesquisa;
os textos resenhados podem ser textos sobre o tema;
pode-se comentar as abordagens do tema feitas pelos diversos autores que o trabalharam;
daí a importância das resenhas na composição do texto, que deve resultar de uma costura das resenhas preparadas de antemão;
a disposição das resenhas ao longo do capítulo pode ser cronológica e/ou temática;
seguindo (exclusivamente) diferentes abordagens sobre o tema, pode-se referir a correntes teóricas adversas, rupturas epistemológicas etc;
temos como ponto de partida que não estamos trabalhando exclusivamente com racionalismo - método hipotético-dedutivo - nem exclusivamente com empirismo - método hipotético-indutivo -, pois operamos com o construtivismo, concepção vigente nos últimos 120 anos;
o próximo texto pode ser sobre isso, ademais há um subcapítulo em convite à filosofia da chauí para esclarecimento básico sobre este tópico, para todos, cujo título é as três concepções de ciência, está no capítulo as ciências;
como se está trabalhando com a concepção construtivista de pesquisa - isso é importante saber - opera-se com a premissa de que a abordagem é constitutiva do material trabalhado;
a pesquisa se define por ser um processo durante o qual se constrói um instrumento conceitual;
sendo assim, deve-se ser cuidadoso para não se confundir com o processo de descrição da realidade observada, modelo do empirismo, procedimento hipotético-indutivo;
não se busca aqui radiografar a realidade, a pesquisa não serve para isso, além do mais, em ciências humanas, de tal procedimento só resulta pseudo-ciência de herança positivista;

dito isto, enquanto se apresentam as abordagens diversas do tema não se pode perder nele, como se ele se restringisse à sua representação, sua radiografia, sua descrição, seu desenho;
não se procura desenhar o objeto, a linguagem não serve para tal feito, ela tem um estatuto que a ela só se permite recriar o mundo em seu próprio código e não imita-lo;

fala-se em construção, assim, não se pode perder de vista que os textos analisados são a construção de um objeto teórico, um instrumento teórico, diria meteórico, já que visa um fim, um objetivo, uma função, já que visa servir para alguma coisa;
são a construção de um modelo, com suas regras próprias, internas, com suas próprias proporções;
assim, o que vai prevalecer nesse primeiro capítulo construtivista é a intersecção entre o tema, tratado nos textos resenhados (tanto o tema como a sua abordagem e transformaram agora em tema do seu texto), e a abordagem ou o método utilizado ao longo da pesquisa, da qual resultou o produto final, o texto;
o que se procura analisar é o modo de construção de um tema através de sua abordagem;
lembremos de que nesse primeiro capítulo não trataremos do tema diretamente, mas de forma indireta, intermediada, distanciada, pois estamos tomando impulso para o salto;
o tema do primeiro capítulo são outras construções discursivas do tema, suas várias abordagens, pois estou demonstrando o meu domínio teórico do tema;
portanto, nesse capítulo prevalece uma linguagem teórica, de análise de textos, de teorização de teorias;
durante esse primeiro capítulo, a abordagem utilizada na pesquisa em curso pode ser referida em comparação àquelas que estão sendo comentadas;
geralmente se procede assim quando se crítica uma abordagem distinta da utilizada na pesquisa em curso;

resumo: esse primeiro capítulo se refere aos textos lidos na preparação para a pesquisa, no reconhecimento do campo que vcs estão pisando;