22 novembro 2006

o velho discurso dos direitos garantidos, dos direitos conquistados;
assumo: sou um anarquista nihilista, mas, ainda assim, um antropólogo amador, pelo menos tenho direito de fazer a antropologia dos antropólogos, portanto, é meio demais mesmo;
desculpe, pensei que o foucault já tinha definido a tabela com o preço que pagamos por nossos direitos e de que forma os direitos visam justamente garantir a máquina estatal funcionando
aliás, e não me engano, ele vai mais longe e propõe que as formas jurídicas são o instrumento com que o estado constituirá todo um maquinário que lhe colocará nas mãos a espada e a balança com que se erguerá para definir as disputas pelo poder na sociedade civilizada;
essa é, na sua e na minha concepção, o processo de criação (e não a origem) das ciências humanas;
sei que é difícil reformular a máquina positivista pra caber uma acusação dessas a nós mesmos, mas a saída dos simétricos parece essa – claro que para fazer uma crítica radical como essas, que alguns acusam de delírios de grandeza, ou complexo de superioridade, é preciso estar com a cabeça no pescoço;
agora eu peço pra você imaginar que eu ensino isso para os bacharéis de direito...eles passam mal...
e olha que eu disse no início: numa análise genealógica...
enfim, não penso que seja uma questão de culpa, mas de perdão;
havemos que assumir as heranças de nossos antepassados, havemos que falar dessa humanidade: isso também é minha responsabilidade;
nossa sociedade criou um discurso tributário da tradição iluminista, de um discurso idealista que se torna em instrumento político de produção de verdades;
esse discurso sobre a sociedade cria uma dicotomia entre a sociedade que temos e suas regras e a que acreditamos dever ter;
essa dicotomia serve à manutenção da sociedade que temos, ou seja, serve para reforçar a própria sociedade com a qual estaria em contradição;
assim, a margem de manobra há, mas seu caminho não é, segundo minha modesta opinião, o do coro dos traídos da revolução francesa ou daqueles que nos crêem na crise de valores que vive nossa sociedade;

estamos diante da seguinte questão: a forma é política;
para os povos indígenas não interessa o que se fala deles, interessa deixa-los falar, abrir espaço para que eles falem;
foram séculos de mutismo, de privação da fala, quando eles não eram ouvidos ou sequer vistos;
certo que num processo histórico como esses os antropólogos foram ótimos pés de cabra, mas o processo propõe que se redefina o papel do antropólogo, sua função, seu modo de produzir conhecimento, de produzir interlocução desses atores com a sociedade que se julga homogênea;
no entanto, a luta por poder não cessa: os povos indígenas afirmam hoje sua diferença, conquistam setores do poder público, não são mais a massa de manobra do tempo do darcy ribeiro;
em minhas aulas, quando entro na problemática do sujeito e do discurso, inicio desconstruindo a imagem de sujeito de conhecimento que construímos pra nós mesmos e reproduzimos em nossos textos;
pra iniciar, dou um enunciado pra eles: em mil e quinhentos, o brasil foi descoberto por pedro álvares cabral;
então eu desconstruo esse texto: qual a voz que aqui fala: de quem é esse tempo, de quem é a idéia de descoberta, quem é o agente da ação;
enfim, com essa frase conseguimos traçar um modelo do falante na nossa ciência humana: um homem, branco, europeu, cristão, burguês, meia idade, urbano, falante do português;
traçado esse modelo da voz que opera esse discurso, afirmo que o enunciado é repetido todos os dias por falantes em escolas de todo o brasil: mulheres, negras, pobres, crianças, idosos, ateus, falantes de outros idiomas, pessoas do meio não-urbano e até índios;
a essa voz predominante em nossa sociedade chamamos voz média: ela atravessa os mais diversos segmentos e se manifesta nos diversos falantes, por exemplo, no apresentador do jornal nacional etc;
também demonstro que de uma hora a outra, de acordo com a conveniência, trafego da voz média ao discurso dos índios ou dos espoliados, das crianças ou dos deficientes;
dessa forma é que eu apresento pra eles o ofício do antropólogo: falar pelo outro;
um mesmo indivíduo: diversos sujeitos ou pessoas;

foucault reelabora a teoria do discurso com sua teoria do enunciado;
propõe uma revisão do sujeito conforme se apresenta, em parte, no primeiro capítulo de a verdade e as formas jurídicas;
passar da teoria do discurso para uma prática discursiva outra, que não fale apenas do outro, nem lhe dê voz apenas citando suas falas entrevistadas, mais sim que o coloque no debate epistemicamente, no mesmo nível epitêmico, e não no texto, onde quem define as regras continua sendo o autor;

com relação à concepção de autoria entre os pós-modernos e o viés tomado pelo perspectivismo;
penso que um ponto de partida é a divertida perspectiva proposta por latour de desconstrução do modelo moderno que possui tradição no empirismo ocidental, tributário do racionalismo humanista que foi primorosamente comentado por clastres, aliás um mestre na concepção de autoria pré-pós-moderna ou anti-pós-moderna;
o centro desse debate aberto acima é a imagem de sujeito sustentada pelos pensadores citados (pós-modernos e outros);
a proposta de desconstrução da imagem do sujeito foi levada a cabo por uma linha de pensadores que se situam na questão pela perspectiva filosófica: o que me interessa nessa perspectiva é que ela desconstrói o conceito de sujeito, levando de roldão o sujeito de conhecimento, ponto estratégico do texto de seeger-viveiros de castro;
enquanto nos situamos numa perspectiva de conhecimento que mantém os pressupostos do discurso científico moderno, enquanto não se faz uma retomada da imagem do sujeito que esse conhecimento e essa ciência pressupõem, estaremos debatendo o conteúdo sem debater a forma, e o pior, sem perceber que forma e conteúdo não se diferenciam;
nesse oco é que penso estar situado o problema político da forma e do código;
quando se coloca o interlocutor na confecção do produto, quando se especializa ele ou se abre a linguagem do texto para o seu código (ex. fala, grafite, música, ...ou mesmo se foco discursivo) propõe-se uma experiência de autoria coletiva na qual se problematiza a forma, se coloca o interlocutor como produtor de conhecimento, coloca-o pra falar, aliás isso não deve ser a conseqüência, pois o propósito do trabalho é projetar os interlocutores para virem a público exercitar seu discurso, colocar seu saber em função da criação de novos direitos, de novos pontos de vista sobre o interlocutor e sua comunidade;
o objetivo disso é retirar o antropólogo de ocupar o lugar de fala do interlocutor, problema esse que começa no texto (aliás, para muitos pós-modernos começa e termina no texto) e segue nas práticas do antropólogo, em seu trabalho;
é difícil para o antropólogo sair dessa tribuna que ele começa a construir com sua monografia e prossegue em sua fala, em seu discurso cotidiano;
o exercício que se propõe é redefinir com esse exercício a própria concepção de sujeito, já vai pra mais de cem anos que o freud popularizou o inconsciente e até hoje nós nos amarramos à mesma concepção de sujeito de há cem ou duzentos anos atrás;
nosso sujeito ainda é um instrumento que foi adaptado a última vez pelo modelo do panóptico e pela sociedade de controle, são poucas as experiências de proposição de novas subjetividades, propostas de subjetividades libertárias, que coloquem em questão os modelos que estamos a reproduzir, que estamos a reificar;
fui hoje ao evento da cpi: encontrei com a malta dos estudiosos da diferença, uma febre de pesquisadores e projeteiros que deve abafar o trabalho tão interessante que insurgia em alguns lugares do brasil com vistas a promover a autonomia de pensamento de alguns grupos por parte desses próprios grupos;
depois de toda aquela pieguice etnocêntrica do respeito à diferença, respeito às outras culturas, vamos lá;
o interessante é que eles fazem exatamente as perguntas proibidas, pra não falar estúpidas, e eu lucro com isso, pois sei onde a coisa pega, onde eles são barrados no modelo de pensamento, que imagem eles fazem do sujeito e do conhecimento (do homem ocidental, cidadão de direito, falante do português, urbano, como sujeito de conhecimento);

20 novembro 2006

como pode um filme ser um instrumento da antropologia simétrica?
em primeiro lugar, por colocar o problema da forma em relação à política;
o lugar ocupado pela escrita na sociedade do século passado já não tem a mesma projeção, o mesmo efeito político que possui hoje;
numa sociedade multimídia, faz-se necessário elaborar a antropologia com outras mídias;
a forma tem uma dimensão política que só faz sentido no contexto da antropologia simétrica: a escrita como instrumento de quem apresenta as perspectivas, como o dono do poder de representar perspectivas, que submete o outro, desprovido desse poder, a sua abordagem, a qual ainda é colocada como definitiva, afinal de contas utilizou o método racional e científico;
não se vê assim que uma abordagem é uma perspectiva, passível de envelhecer, de ser limitada contextualmente, epistemicamente;
a antropologia simétrica evidencia por sua prática, por seu caráter pragmático, a natureza política da antropologia – contra-senso de uma antropologia política, já que toda antropologia é política;
essa natureza política é evidenciada na troca de olhares, na troca de conhecimentos entre os interlocutores, no caráter de autoria coletiva que o gestor da pesquisa consegue imprimir nela a partir de suas estratégias metodológicas;
por isso ela traz para a prática todo o conhecimento acumulado pela teoria do discurso;
reformular o autor, a concepção de autoria, é uma das propostas principais da antropologia simétrica, pois assim, redefinindo a imagem de conhecimento é que se redefine a imagem que fazemos de nós mesmos;
só assim é possível colocar em questão a imagem do homem ocidental em progresso infinito sobre as demais culturas, todas atrasadas, condenadas à extinção;
por isso essa prática é uma prática política, por colocar em questão o tanto os modelos de conhecimento como os de subjetividade que se constituem reciprocamente;
no entanto, não se restringe a uma forma política de pensamento antropológico e sim avança sobre a própria antropologia, visando circunscreve-la;
analisando a natureza do conhecimento científico num procedimento genealógico, constata-se que a natureza de seu poder é a mesma que a dos poderes de controle social a que ela retorna;
são esses poderes que investem na ciência, na antropologia fazendo com que ela tenha sentido na sociedade;
para que se estuda antropologia: numa análise genealógica, isso só se justifica como instrumento de produção de verdades que serve ao reforço das relações de poder como elas se encontram constituídas em nossa sociedade e, sobretudo, no modelo de sociedade em que se inspira;
a natureza do poder do antropólogo se define pelo poder constituído, pela reafirmação das estruturas de poder instituídas;
é para isso que serve o antropólogo à sua sociedade, para isso que ele foi criado;no âmbito dessa gênese, de sua criação, o antropólogo recebeu seu instrumental, com o qual se pretende que ao distribuir as vozes do texto, ocupe o lugar dos seus interlocutores na tribuna do texto, de seu discurso de antropólogo, quando toma a palavra para falar enquanto antropólogo, enquanto especialista;

se investimos sobre o(s) modelo(s) de produção de conhecimento temos momentos cruciais, que definem a matriz que configura o modelo ocidental de produção de verdade;
os gregos, os padres, descartes, as luzes, e, finalmente, o positivismo;

o ideal de ciência objetiva, neutra e imparcial, importada do empirismo liberal e, sobretudo, do evolucionismo biológico, é desmontado pelo condicionamento histórico e social do conhecimento;
no entanto, a critica marxista encontra seus limites ao manter-se circunscrita ao modelo epistêmico de seu contexto, não propondo-lhe uma crítica radical que só poderia caber num outro modelo metodológico, numa outra imagem do conhecimento;
essa outra imagem do conhecimento depende na apenas da definição da natureza política do conhecimento, ela requer uma desmontagem dessa máquina e um estudo de suas peças e engrenagens;
o discurso será uma dessas engrenagens que resultam da articulação de um conjunto de peças;
o discurso contribui nessa dupla construção em que consiste o conhecimento, construção de saber e construção de sujeito;
o sujeito do conhecimento resulta nesse duplo produto, dessa articulação entre a produção de um modelo de produção de verdades científicas, uma imagem do conhecimento, e a imagem do homem, a produção de subjetividades conforme se exige em cada período, conforme cada conjunto de relações de poder;

a partir dessa dicotomia encontrada em textos de viveiros de castro (2002), viveiros de castro e seeger (1979), levi-strauss (história e etnologia), pode-se propor a análise de uma ruptura da qual resultam duas imagens do conhecimento;
o objetivo é definir como se constituíram as propostas de elaboração de uma antropologia política;
por um lado, tem-se a escola inglesa da tradição de radcliffe-browm, leach e outros autores que partem da análise dos contextos político das sociedades primitivas;
sua abordagem é objetiva e seu objeto definido como as formas de organização política das sociedades primitivas;
ainda que suas análises tomem como parâmetro de comparação as formas de organização ocidental, ainda o modelo de política ocidental forneça todo o tempo a referência nas análises desses autores, não há em qualquer momento, por parte dessa metodologia, desses autores, a volta sobre o caráter político do instrumental que utilizam ou, sequer, de elementos que constituam esse instrumental;

09 novembro 2006

A estrada do Pacífico

O projeto de Integração Regional Sulamericana está centrado na chamada Estrada do Pacífico – pelos brasileiros – ou Interoceânica – pelos Peruanos. O projeto empreenderá transformações estruturais para os diversos países sulamericanos da região.

Do Acre ao Pacífico são pouco mais de 1700 kilômetros. A estrada ligará o Acre aos portos de San Juan de Marcona, Matarani e Ilo.

O projeto que se inicia com a infra-estrutura do sistema de transportes tem em vista uma redefinição dos quadros comerciais, com importações e exportações, e turísticos do continente.
O comércio exterior na região é o interesse imediato que deve justificar os milhões de dólares investidos no projeto. As transações não devem ser surpreendentes. Pelo contrário, são óbvias.
O que deverá sair são os nossos velhos conhecidos produtos primários: madeira e soja. O que deverá ser importado são os eletro-eletrônicos.

A conexão turística Peru-Brasil deverá encaminhar para o Acre parte do fluxo de turistas de todas as partes do mundo que visitam Machu Pichu.
Viajando pela estrada, tem-se a impressão de que a preservação se deve ao pouco desenvolvimento da região. Da fronteira Brasil-Peru, Assis Brasil-Iñapari, a Porto Maldonado a estrada de terra é ocupada por uma ou outra cidadela.
A rota do Pacífico

O eixo conectado pela estrada é composto por diversos patrimônios naturais. A biodiversidade é atração turística visada.

As riquezas antropológicas
Formas particulares de expressão que povos

O tráfego constante de pessoas também é parte da vida dos peruanos da província de Madredeus.

O caráter antropológico do filme consiste no jogo de olhares com que visa identificar a visão de mundo, o tempo, as expressões culturais das pessoas encontradas. Esse encontro de pessoas ilustra a dinâmica das perspectivas.
Capturar o canto de cisne dessa região inexplorada, prestes a ser modificado.

A ponta de um olhar trágico sobre o desenvolvimento irreversível do capitalismo que avança sobre culturas já tão calejadas pela colonização infindável, sobretudo sobre uma floresta ainda inexplorada.

Registrar a riqueza de regiões isoladas que se desenvolveram como flores raras. Em tempos de homogeneização global

A riqueza antropológica dessa região resulta na perspectiva, nas formas particulares de expressão desses povos.
A potência dos rios que descem da cordilheira e constituem a cultura material desses povos marcam o ritmo da vida, seu tempo, seus gestos.
Captar o tempo desses atores é a proposta antropológica do filme. Fazer desse tempo objeto de linguagem, procurar extrair daí o elemento estético que há de imprimir na película a experiência dessas pessoas.

Propor essa viagem num produto que resulte de um exercício de linguagem cinematográfica. Um estudo de cinema autoral que não se reduz à embalagem dos produtos veiculados.