16 abril 2008




capitalismo e subjetividade

a subjetividade tomada como produto, como mercadoria no circuito capitalista;
a escola pensada a partir dos valores capitalistas vigentes identifica a prática de subjetividades ao seu acordo e valorização como mercadoria;
pensar a subjetivação indígena na chave contra-estado ou das máquinas de guerra consiste em colocar em questão esses valores do capitalismo e a forma com que ele tradicionalmente se apropria da subjetividade para estabelecer seus consensos políticos;
mesmo os conflitos podem ser capiatlizados pelo estado e transformados em produtos;
o caso do acre é paradigmático, pois sua história foi para a globo não graças ao heroísmo de sua história, mas pela forma com que o estado exemplarmente se apropriou dos movimentos sociais para transformá-lo nas mais diversas mercadorias do mercado das subjetividades;

o modelo burocrático a que foram submetidas as organizações indígenas e a cultura dos projetos que tem gerado uma demanda crescente de gestores indígenas, criando com isso um grande mercado que vai desde os serviços às associações até a formação técnica dos indígenas, não é questionado por trazer para as comunidades os instrumentos para que eles cumpram às exigências de controle do estado;
o estado fornece os recursos, mas para tanto os indígenas precisam se capacitar para a administração da verba pública;
o processo subjetivo aqui envolvido parece então voltado à autonomia, aos projetos culturais, mas para acessar esses recursos, a configuração de subjetividades se dá a partir dos valores do estado;

entre os ashaninka há uma forma de problematizar essa questão interessante;
por um lado por sua atenção ao problema da alimentação;
os ashaninka se voltam, em seu discurso, com bastante força à apropriação dos recursos naturais, tendo feito uma interessante apropriação do saber técnico na área, advinda de seus anos de pesquisas junto a diversas entidades;
por outro lado, eles trabalham uma das melhores problematizações da cultura branca, o que já chamei de antropologia ashaninka;
eles questionam: o que é ser rico ou pobre?
os valores do índio podem ser os mesmos do branco?
um dos problemas que levaram os ashaninka a tal questionamento foi o fato da região ter sido considerada como um dos menores índices de desenvolvimento humano do país;
os critérios definidos para a caracterização desse índice levaram a questionar os valores de riqueza e pobreza e fazer disso uma bandeira política importante para impulsionar seus projetos;

esse questionamento parece importante na hora de pensar projetos voltados aos povos indígenas, principalmente projetos que enfocam as áreas de educação e formação técnica;
sabemos que nossa escola e nossos cursos trabalham com um horizonte único, com uma imagem do mercado de trabalho que não dá lugar para problematizações desse tipo;
a disputa e a concorrência, o dinheiro e o lucro, o poder do consumo intimidam e fazem qualquer problematização essencial como essa parecer algo utópico;
entre um salário de fome e o plantio do alimento, o primeiro possui mais status na sociedade de consumo;

na linguagem cifrada dos conceitos, que muito adianta nossa conversa, trata-se de tornar aparelhos de captura em máquinas de guerra;

ninguém parece querer encarar esa bronca;
até porque ela parece exceder o campo coerente dos unânimes consensos em torno dos nossos valores humanos, porém capitalistas;
porque questionar o capitalismo, parecem me perguntar, como se isso fosse o mais inconveniente, já que agora os índios vão poder consumir, ter seus projetos, estão partcipando da administração etc;


parece-me que há duas formas de se pensar a cultura, cada qual resultando numa concepção distinta de fortalecimento cultural;
uma primeira noção parece trabalhar voltada aos valores convencionais do mercado, reafirmando esses valores, buscando uma afirmação do cultura indígena no interior desse universo de valores, perpetuando a imagem-idéia desse modelo como o único universo de valores possível;
de outro lado, pensa-se uma concepção focada na relativzação dessa onipresença do mercado, tomando, para tanto, os valores indígenas em contraponto aos valores do mercado e, no limite, tomando o modelo de organização indígena e seu fortalecimento como alternativas de resistência ao modelo das sociedades capitalistas de estado;
é próprio às sociedades de estado, até por sua tradição colonialista, valorar [e impor] como única realidade possível a organização de estado, sobrepondo-se impiedosamente [e, no caso, inconstitucionalmente, mas o que é a constituição senão a tábua de valores e mandamentos máxima do estado] sobre costumes e valores indigenas;
essa imposição se insinua nos direitos, essa maneira de ver vem implícita na ciência, essa perspectiva está pressuposta na história, na maneira de pensar e na própria forma de se conceber em que consiste o ser humano;
ela ataca violentamente [não é uma metáfora] por todos os lados;


trata-se então de distinguir entre duas concepções de cultura para, daí, entender-se como trabalhar no sentido de seu fortalecimento, revitalização e autonomia;
uma concepção de ação cultural converge para nossa cultura nossas políticas públicas de diversidade;
nela os valores convergem para os nossos valores de preservação,
as ações pensadas em seu âmbito possue por horizonte de valores o mercado;
a sua educação se pauta no mercado;
seus valores se pautam na possibilidade de consumo, na aquisição de força dentro do sistema do branco;
segundo essa concepção, o sistema indígena não tem força para combater o sistema capitalista e por isso não vae a pena ou seria loucura voltar-se contra ele;
dessa forma, o horizonte dessa perspectiva é integração pois não se visa uma resistência;
a resistência é entendida aqui como sobrevivência e conquista de força dentro do sistema capitalista da mercantilização;
aqui, tudo vira mercadoria: a subjetividade, a educação, o sagrado;
tudo se torna mercadoria para ganhar valor no mercado branco, para entrar no circuito;
os critérios de valor são os critérios de mercado e não se entende por que se voltar contra esse processo de mercantilização, já que ele é inevitável;

a outra possui caráter político, ou seja, entende a cultura e a subjetividade com parte de um projeto político, como práticas políticas com os dispositivos de ação, os agenciamentos de enunciação com que ganham corpo e viram prática;
por esse outro lado a própria prática subjetiva consiste numa prática de resistência por conta se constituir como prática de diferenciação;
escapar às estratégias de homogeneização [e de reconhece-las], típicas do capitalismo, consiste numa de suas funções e justificativas;
o caráter prático da cultura, sua pragmática, sua imanência aqui é evidenciada em detrimento de ações que projetem a cultura num plano de transcendência como faz a escola que na prática cria uma série de intervenções de estado e capitalistas no plano prático [instituição, burocracia, dinheiro, empregos, trabalho e trabalhismo etc] para fazer o discurso da diferença no plano da transcendência, das idéias;
essa concepção mais política, que visa circunscrever [dar conta] os valores do universo branco e contrapô-los aos do universo indígena, trabalha mais centrada na noção de autonomia;



>o fetiche da subjetividade 2
marxismo
o que se considera útil do marxismo para esse contexto que aqui se situa é a relação problemática entre política e capitalismo, que nos fornece um imagem interessante da noção de resistência;
a resistência política que pode ser o ponto de articulação e diferença que se quer enfocar está em relação direta com o mercado e sua capacidade de transformar os mais diversos produtos e linguagens em mercadoria;

essa consideração problematiza a busca de políticas indígenas alternativas submissas ao capitalismo, perspectiva típica das políticas públicas neoliberais, ainda que pintadas do vermelho da utopia que consiste em buscar a resistência via capitalismo;

a resistência política do projeto indigenista, única via para a não-integralização [visto que se considera aqui que a subjetividade mercantilizada tem todo seu poder de resistência absorvido, minado], consiste na resistência [criativa] às formas do capitalismo, capitalismo que, com todas as formas do falso que desdobra, com todos os recursos que aciona, só sobrevive se consumido;

estabelecida essa relação entre política [ou resistência e política] e mercado, para que se entenda o campo neoliberal em que nos deslocamos e a política do terceiro setor [criada por ele e que estamos a engolir como desdobramento do esquerdismo], relação crucial para o estabelecimento de ações que se definam como resistência ao mercado e sua política;


mais que sua apropriação pelas massas socialistas, destinada a se apagar em termos de influência sobre as nova gerações, o que nos interessa do marxismo como resultado consiste naquilo que se esboçou no universo de referência positivista como sociologia do conhecimento [para muitos a possibilidade de redenção do marxismo no próprio século vinte];
conhecimento como mercadoria, que aqui nos conduzirá à abordagem da subjetividade como mercadoria em que consiste nosso ponto;

como o conhecimento lida quando a mercadoria lhe é imanente, quando se descobre a si, à sua função social, como falar de resistência no conhecimento se a condição de mercadoria o lança sempre contra a possibilidade de resistência;
qual a forma de escapar a condição de mercadoria, como tornar o conhecimento em instrumento de resistência;
identificar o projeto do estado, da sociedade ocidental seus valores universais e pensar no conhecimento como poder de destruição construtiva do estabelecido;
em lugar do positivismo universalista, forma acabada da ciência régia, do comprometimento do pensamento com a política de estado, um pensamento iconoclasta que foi por diversas vezes domado apropriado como mercadoria ao longo do século passado;


voltar-se para si num acurado trabalho de auto-análise, colocar-se em observação, dissecar seu próprio corpo, seu instrumental: eis o papel crucial que desempenhará a epistemologia;

pessimistas de todas as ordens definitivamente não crêem na possibilidade de resistir à condição de mercadoria, inerente ao conhecimento, sua linguagem e sua função;

seguindo a pista da desmontagem dos padrões, dos pressupostos do pensamento e da cultura, da filosofia ocidental e seus valores, chega-se ao discurso;
o discurso se justifica pela imanência da linguagem: por isso a abordagem da especificidade da lingugem, da consideração da linguagem na constituição do conhecimento conduz ao problema que nos interessa;

a linguagem, ou melhor, o discurso serve tanto para a construção do conhecimento quanto para a produção das subjetividades;
mais que o caráter político do conhecimento, entendido ainda na chave positivista de uma sociologia do conhecimento, o discurso [e não propriamente o conhecimento, saber-poder] tomado para a produção de subjetividades;
assim que as disciplinas positivistas projetam a normalidade que sustentará a homogeneizante identidade nacional;

discurso: matéria de textos e matéria de gentes [subjetividades]
subjetividade é aquilo que usamos para no projetarmos socialmente como pessoas;

essa foi a vaga que engoliu os ingênuos modernistas que pensavam engolir quando estavam a ser engolidos;
o pessimismo com que o artista vê seu projeto engolido pelo estado, tornado mercadoria pelo capitalismo o faz rever o caráter programático, caráter moralista de sua doutrina;


subjetividades indígenas: o fetiche da mercadoria

há muito me pergunto o porquê de trabalhar com povos indígenas, quando tenho que lidar tanto com problemas dos quais eu queria tanto me afastar;
burocracia, capitalismo, projetos de integração assinados pelos próprios indígenas, enfim, de todos lados as máquinas de captura emergem e atacam;
a subjetividade tomada como mercadoria, aquilo que os antropólogos metidos a espertos [eles pensavam que no enganavam mas pegamos eles] consideram como apropriação indígena dos nossos recursos [escola, história, política, dinheiro etc], em lugar do arcaico pessimismo civilizatório [pobres aculturados] parece muitas vezes o próprio objeto para muitos antropólogos [esses ligados no mercado de trabalho e no seu regime de valores];
o relativismo me parece muito afim com essa abordagem da cultura indígena a partir dos nossos próprios valores, o que faz dela um mercadoria entre outras, ainda que valorizada;
no entanto, não comungo dessa visão estreita {que muitos têm inclusive da antropologia brasileira contemporânea] de que o trabalho da antropologia ou do antropólogo consiste em valorizar essa mercadoria, visando tanto empreendimentos indígenas como antropológicos;

essa apropriação mesquinha se dissemina por todos os lugares, instituições e aldeias;

o que será que caracteriza uma coisa e outra, qual a diferença entre investir na subjetividade indígena como mercadoria e investir na subjetividade como resistência político cultural...

pois o que as instituições parecem fazer, seja devido ao limitado horizonte político [que perdeu toda e qualquer referência de resistência, tendo se voltado ao assistencialismo e ao individualismo consumista generalizado, isto é, formador de valores] das próprias pessoas envolvidas [e que fazem o estado], seja pelo horizonte do estado centrado [ao menos aqui na amzônia] na velha publicidade sobre o assistencialismo, é circuncrever-se no regime de valores determinado pelo mercado, tomando-o como parãmetro definitivo de suas ações;

é trabalhar fundamentalmente com essa subjetividade como mercadoria disputando lugar no mercado, buscando ser valorizada numa identidade nacional caduca que é tomada como parâmetro de valores, ainda que esses valores não sejam sustentados por nós mesmos, afinal não temos mais tanta fé no projeto capitalista do progresso evolutivo indefinido;
o mundo diminuiu muito com o mapeamento da comunicação onipresente, sua fragilidade no salta aos olhos hoje, que o consumismo nos ameaça mais que uma guerra atômica;

é nesse contexto que os projetos que projetamos para os indígenas, incluindo sua subjetividade, desdobrando-se em auto-subjetivações assumidas pelos próprios indígenas, no modo dos indígenas se imaginarem em seus projetos políticos, reduzem-se ao projeto do mercado, de valorização do produto, de práticas de empreendedorismo social;

quando não se tem um projeto de resistência política e subjetiva [quando se vive no horizonte homogêneo, preparado a base de ditaduras pelo capitalismo] corre-se o risco de se impor com maior convicção um projeto de estado a esses povos, de reproduzir nosso modelo opressivo de subjetividade e de política subjetiva e impô-los, sob a figura ambígua do amigo/colonizador, a esses povos;

identificando como nós próprios fazemos, ou seja, diluindo-se em nosso campo de valores os próprios indígenas passam a assimilar a política ao consumo e fazer dele o horizonte último de seus projetos de futuro;
a influência da escola é muito mais a de assimilar tais valores que qualquer suposto conhecimento humanista;
desde o professor como funcionário e diplomata da sociedades indígenas, ponto de contato com o estado, universidades e ongs consiste na figura probemátic a assimilar esse universo do consumo, da mercadoria, do circuito da capitalismo integrado e seus valores imanentes;

um projeto de resistência [mesmo de ecologia] subjetiva pode ter esse ponto como chave para sua abordagem por conta de ser o espaço da produção de subjetividades, campo que equivale no universo indígenas ao tempo dos ritos de iniciação;
o rito iniciático pontual, restrito a datas comemorativas ou mesmo ciclos, não pode disputar com o cotidiano escolar;
a força do cotidiano não deixa espaço para essa memória, esses valores que deixam de ter sentido;


isso não é feito de maneira inconsciente;
quando trabalhei com jairo, certa vez ele nos disse explicitamente que nossa tarefa seria de azer como a cppi tinha feito, mostrar como é "cool, legal, in etc..." ser índio;
a subjetividade é tomada aqui como produto a ser valorizado no mercado;
essa valorização está radicada num discurso que parte da imaginação assistencialista;


realismo
o ímpeto de se pensar a realidade do tempo, travestido de compromisso social, reverte-se num projeto político de estado, forma de se pensar a situação nacional, de se configurar uma identidade nacional a partir a imagem do homem tomado como homem brasileiro;

certo que nesse processo o preconceito é elaborado, mas a perspectiva é daquele que exerce o preconceito, um reconhecimento histórico da desigualdade;
agora ocorre que a consciência, ao contrário do que se pensou com muita intensidade, não é o fim a que devemos chegar;
entre se reconhecer o racismo e, o que é mais difícil, reconhecer o monopólio da enunciação que cria valores, que enuncia a voz dos povos indígenas e negros, há uma distância só há pouco percebida e apropriada;

no entanto, ainda que gilberto freire e sergio buarque de holanda nos tenham levado o pensamento a superar o racismo ainda herdado nos pensamentos de veríssimo e muitos outros civilizadores que se empenhavam no projeto de pensar o brasil dos brasileiros, reconhece-se hoje que sua perspectiva continuou sendo a do estado-nação implementado nessas terras por portugal;
trata-se aqui menos de questão 'política' que de questão política, visto que nos referimos a, nos interessa, mais um problema de enunciação que desenhar um projeto político democrático;
até darci ribeiro e sua antropologia de uma transfiguração étnica que enxerga os elementos indígena e negro impregnado na constituição do brasileiro, mantemos uma perspectiva da identidade nacional quando identificar interessa a um projeto de estado, a identidade;
por mais que com isso se suprima preconceitos, aparentemente negativos, a diferença é apagada e submetida a uma identidade que homogeneiza um mesmo campo de valores, identificado como regime de valores nacional;

aqui já se passa a um probema de outra ordem, pois os esforços da antropologia brasileira contemporânea consistem em criar a linguagem e o circuito onde essa voz possa se manifestar, pois a crítica empreendida pela abordagem da linguagem feita pela filosofia e pela epistemologia desse século levam à problematização radical da produção de conhecimento nas disciplinas da ciência régia com seu horizonte de valores profundamente comprometidos com os projetos do estado-nação, seus pressupostos homogeneizantes;

não se trata de retratar nosso racismo reproduzindo-o ad infinitum em nosso campo de valores, no campo de valores a que submetemos todos os demais pois ele se faz por força onipresente, com exceção, é certo, dos rasgos de provocados nesse tecido homogêneo pela violência bárbara e anti-civilizatória de nossos campos de guerra e zonas limite que atravessam nosso estado de paz unificado na tela da tevê, indo desde as megalópoles e suas panorâmicas periferias que as cercam por todos os lados, até a situação limite dos povos indígenas que se seguram nas fronteiras, atacados por todos os lados, desde as corruptas políticas locais que negociam os projetos do governo em troca de apoio e favores, como do lado de lá, onde outros países como o peru abrem concessão para a exploração das zonas de fronteira;

15 abril 2008




não estou certo
de encontrar aí
guarida segura
teu olhar vacilante
me desconfia
ainda mais


estas em casa
eu não estou
sou estrangeiro
aqui
onde todos
se sentem
seguros
em casa
na cidade
terra de todos
estado de paz

aqui sou estranho
só eu
estrangeiro
- de outro lado
do mundo -
selvagem
brabo
bárbaro

nem a noite
nem nada
de marginal
me aliena
dessa condição

entro na noite
posso ver seu
futuro
não sou

não me limito
aqui
minha aldeia
vai longe

volto pra mata
lembro a cidade
esqueço depois

só a mata fechada
e os sons
de bicho
de chuva

só isso


indeterminação
hansen trabalha com a noção de indeterminação como chave não só para abrir portas na hermética obra prima de rosa;
a indeterminação põe em ação o antigo, ambicioso e inevitável projeto de ruptura da distinção entre literatura e crítica;
tema há muito explorado pela filosofia de nietzsche a deleuze, passando pelo conceito de discurso capital no pensamento de foucault, visando a supressão da idéia de uma diferença substancial ou de natureza, mais que de uso, entre essas diversas linguagens;
essa diferença estaria supostamente assentada numa relação com o referente, relação essa que vem sendo problematizada [extemporaneamente] ao longo de séculos de pensamento filosófico;
essa relação com o referente foi problematizada no pensamento contemporâneo [uso aqui a abordagem epistemológica de as palavras e as coisas de foucault] a partir da apropriação sistemática das idéias de saussurre e do formalismo russo, que se desdobrará nas apropriações do estruturalismo e do pensamento francês desse fim de século;

da ciência à epistemologia
o que ocorre é que o imaginário hermenêutico da representação, que cedeu na distinção entre a ciência e sua epistemologia, abrindo espaço para um espaço híbrido explorado por vertentes tão distintas do construcionismo [que por vezes resvalam de volta ao imaginário representacionista da hermenêutica ou da fenomenologia] como a complexidade de morin, as poéticas de bachelard, a teoria do enunciado de foucault, os platôs de deleuze/guattari;

não há como negar o caráter multidiscursivo de uma obra experimental como mil platôs que se dedica à explorar essas zonas de indiscernibilidade;
nesse sentido, a antropologia há muito tem oferecido um rico material que orienta a operação com os devires;
o xamanismo tem sido uma escola rica, onde linhas de fuga nos conduzem às margens de nossa episteme, a partir das quais o instrumental do xamanismo pode conduzir;
essa é a vantagem oferecida pela antropologia: ela possibilita a experiência com regras que estão fora ou nas margens de nossa episteme;

a concepção de linguagem exposta em mil platôs, que propõe a supressão de uma dimensão transcendente do referente, pensando a verbalidade como puro plano de imanência, possibilita imaginar o plano contínuo da discursividade, em que ciência e epistemologia, poesia e crítica, passam a uma relação de continuidade imanente [em lugar da descontinuidade transcendente que os diferenciava pela natureza do referente];
enfim, um campo em que os mais diversos usos da linguagem verbal não se distinguem substancialmente por uma suposta relação com o referente ou a realidade objetiva;

a diferenciação que se pode fazer aqui dificilmente poderá ignorar [até por conta de nossas referências] a noção de discurso elaborada por foucault;
trata-se de uma diferenciação nos termos de um campo de intensidade, uma diferenciação que se dê a partir da imanência dos discursos e não da transcendência dos referentes;
hansen, no entanto, para faze-la, se utiliza de um referencial próprio da teoria literária;

10 abril 2008



ecologia subjetiva

a ecologia subjetiva não se confunde com a ecologia natural;
elas podem se desvincular, ainda que se possa duvidar de sua eficácia, assim, separadas;

no entanto, para articulá-las, como em nosso caso e contexto, se faz necessário conhecer suas outras apropriações;
como no caso do ecologismo seringueiro apropriado enquanto movimento social organizado de trabalhadores pelo ambientalismo e por partidos políticos;
a fragilidade os movimentos sociais pós-ditadura os fez massa de manobra do período denominado redemocratização, caracterizado pelas políticas públicas em que se misturam discursos diversos, ou melhor, em que o discurso do estado coopta o dos movimentos sociais e é cooptado pelo mercado, que pauta sua eficácia enquanto enquanto empresa entre empresas;


o que me interessa sobretudo no projeto da apiwtxa [yorenka ãtame] é o processo de ecologia subjetiva;
plantar pessoas no árido campo da política subjetiva da região me parece ser o foco não só desse projeto, como de qualquer projeto ou ação a ser desenvolvida na região;

quando estive no processo de avaliação de vinte anos de reserva extrativista do alto juruá, junto aos monitores a reserva, fiz questão de problematizar o caráter assistencialista e as estratégias de integração desenvolvidas pelo estado;

o discurso da autonomia comunitária, dos povos tradicionais, da cultura extrativista, se dissipou para dar lugar a um projeto de submissão total à economia política local, aos projetos políticos de estado e o mercado que proporciona o consumo de produtos industrializados e a produção da pecuária predatória;

a autonomia, baseada na riqueza local, deu lugar a uma submissão e dependência, que tem por princípio a noção de miséria, a idéia de que os critérios de valor aplicados aos centros urbanos são os mesmos;

a escola me parece um pólo poderoso de reprodução dos valores urbanos que minam os valores locais;

ao afirmar os valores dos centros urbanos, a monocultura da mente, homogeneidade subjetiva, e escola se torna o espaço reprodutor dos valores próprios ao capitalismo, tais como a renda exclusivamente monetária, um modelo de mercado de trabalho urbano de que a política local se utiliza para os seus jogos de interesse;

a ecologia subjetiva não se volta contra o capitalismo devido ao seu caráter de reprodutor da desigualdade social;
a ecologia subjetiva não visa generalizar o consumo, lutar para que todos tenham o direito de consumir;

o alvo da ecologia subjetiva é outra propriedade do capitalismo;
consiste em seus processos de produção e reprodução de subjetividades capitalísticas;
contra essas passivas subjetividades de consumo capitalísticas, a ecologia subjetiva visa acionar agenciamentos de enunciação que proporcionem processos de subjetivação, por definição voltados à multiplicidade;


a ecologia natural está na mira para ser apropriada de vários lados;
a ecologia subjetiva também é assediada;
fala-se em jovens em situação de risco, preparação para o mercado de trabalho, afastamento da criminalidade entre outras abordagens voltadas ao mercado do assistencialismo;

a perspectiva depreciativa é típica do processo de apropriação do estado;
trata-se sempre de ter no horizonte a pseudo-normalidade conservadora que garante o bom andamento do mercado na ordem social;

os processos de subjetivação se posicionam contra essa ordem conservadora que se sustenta a base dessas subjetividades capitalísticas e seus processos de reprodução;
eles possuem no horizonte outras imagens;


a apropriação que o mercado faz [através do estado, através da legislação] dos conhecimentos tradicionais opera como no campo das subjetividades;
cria-se um campo de conhecimentos reconhecidos, fora do qual outros conhecimento não tem lugar;
esse campo legitimado da ciência, já devidamente ordenado em função do mercado, passa a reconhecer esse conhecimento e legitimá-lo para que possa circular no mercado, para que obtenha uma identidade para trafegar nesse circuito;

os referenciais convencionais [seja da ecologia natural, como dos processos sociais que envolvem a produção de subjetividades] conduzem à reprodução das subjetividades capitalísticas, pois seu discurso já foi apropriado;

pensar em termos de identidades, de assistencialismo, de mercado de trabalho, de renda monetária, enfim, e integração ao consumo e ao capitalismo é atitude conservadora;
não se voltar criticamente aos processos de formatação de subjetividades capitalísticas promovido pela política de interesses, confundidos quase sempre com a retórica da garantia de direitos, tais como, saúde ou educação, equivale a continuar tomando valores alheios para justificar o processo de homogeneização subjetiva típico do capitalismo que, mesmo quando promove a diversidade, está sempre visando a integração num circuito em que as subjetividades terminam por se equivaler na figura do consumidor;

não se trata simplesmente/exatamente de nossos termos serem impróprios para definir os processos de subjetivação;
trata-se de grande parte de nossos conceitos estarem determinados pelos campos em que eles se constituem e a função que devem cumprir no contexto de um conhecimento interessado;
essa refração é absorvida a partir da compreensão do problema epistêmico a que remonta essa abordagem subjetiva;
essa compreensão libera do pensamento histórico transcendental do século dezenove para uma apropriação prática dos devires via processos de subjetivação;


certo que pretexto da pesquisa com os guarani seria, a princípio, a convivência com eles, estar com eles [captar] no demorado do corpo mais do que no imediato da mente;
mas o que me teria levado ao tema do ouvir, da aprendizagem perceptiva dos guarani em processo de iniciação, entre tantos outros temas que me manteriam igualmente convivendo com eles;

se o antropólogo é o xamã dos brancos, precisava entrar nesse mundo;
certo que se tratava da aprendizagem guarani, mas não podia me furtar a estar aprendendo com ela, a vivê-la como experiência;
essa dobra devia constituir-se numa entrada secreta do texto;


os imperceptíveis podem ser pensados como desdobramento da noção de outrem elaborada nos anos sessenta visando as abordagens intersubjetivas;

aqui a noção de mundos possíveis ganha uma especificidade perceptiva;
outrem abre a possibilidade dos imperceptíveis;

o devir opera com os imperceptíveis, por isso o devir imperceptível ganha projeção, ou os imperceptíveis ganham projeção no rizoma dos devires;

os devires se relacionam diretamente com a criação, com a criatividade;
toda a abordagem de mil platôs centra fogo na criatividade, em nossa capacidade, nos dispositivos que nos libertem pela criatividade;
estar na fronteira é antes de qualquer coisa possibilidade de criar outros mundos;
é estranho, a palavra criar aqui não parece apropriada;
eles usam a idéia de perceber;
penso que minha abordagem da noção de ouvir vai nesse sentido;
para os guarani, o campo semântico da audição fornece uma idéia de se subjetivar xamã, essa figura ambígua que pode ser líder, professor, curador, cantor, diplomata;

liberar a criatividade, estudar a capacidade de criação, a inspiração para escrever, para criar novos mundos;
mundo aqui está no sentido de leibniz;

nesse sentido é interessante voltar a levi-strauss via mil platôs;
levi-strauss em seus textos sobre xamanismo, redefine a imagem da antropologia e do antropólogo;
deduziu-se daí a figura do tradutor: se o xamã é tradutor, o antropólogo também o é;
parece que é contrário, mas fica invertido para uso de reflexão;


criar se relaciona a estar no limite da percepção: função atribuída ao artista, [e – também] comum tanto ao xamã, quanto ao antropólogo;
começo do fim da amazônia peruana
josé carlos dos reis meirelles


Fui convidado pelos índios ashaninka do rio Amônea para participar de uma reunião na aldeia Sawawo, nas cabeceiras do Rio Amônea, em território peruano, praticamente a alguns metros além da linha de fronteira Brasil-Peru. Entre outras coisas seriam discutidas formas de desenvolvimento sustentável dos povos indígenas da fronteira, maneira delicada de dizer aos índios ashaninka do Peru para deixarem de explorar madeira em suas terras.

Já sabia de antemão da presença de madeireiras legais e ilegais explorando mogno nas cabeceiras dos rios Juruá, Envira, Purus e seus afluentes. Mas tudo de ruim que imaginava não chega nem perto da realidade. O que ocorre naquela região é um crime monumental contra a natureza, índios, fauna, além de um atestado da mais pura irracionalidade de como nós, civilizados, tratamos o mundo, casa de todos nós.

Vamos por partes:

1. A maioria das comunidades indígenas da Amazônia Peruana está envolvida com a exploração de madeira. De duas formas. Primeiro, cedem suas terras para um plano de manejo sustentável, em troca da regularização fundiária. O governo peruano reconhece as terras, mas não dá um tostão para regularizá-las. Os madeireiros fazem isso em troca de um plano de manejo. Segundo, são usados como mão-de-obra no serviço pesado da localização e corte da madeira.

2. Os madeireiros plantam comunidades indígenas em pontos estratégicos, solicitam o reconhecimento das terras e as regularizam “para os índios” com o plano de manejo imediatamente após. Tudo de acordo com as leis peruanas.

3. Existem muito poucas madeireiras legais na região, como a Venao, por exemplo, que faz exploração na comunidade Sawawo. Acontece que a maioria das madeireiras é ilegal. Como quase 100% da madeira é exportada e quem é ilegal não pode exportar, quem está comprando toda esta madeira? As madeireiras legais, que fazem um plano de manejo bonitinho em uma comunidade, obtêm certificação e exportam uma quantidade enorme de madeira certificada.

4. Além da madeira, os madeireiros ilegais exploram carne de caça e peixe, que são vendidos em Pucalpa. Toneladas de carne de caça, jabotis, couros e peixe, abastecem a cidade. O peixe é pescado com dinamite nas cabeceiras dos rios. Por lá, nada parece ser proibido.

5. Da aldeia Sawawo, como exemplo, vai-se de caminhão até Nova Itália, na beira do rio Ucayali, e de lá para Pucalpa. A região está toda cortada por “carreteras”, o que facilita o transporte de madeira, caça e o que mais se quiser saquear.

6. É tamanha a retirada de madeira que os exploradores ilegais estavam roubando madeira do plano de manejo da aldeia Sawawo. Alguns ashaninka se reuniram e parece que mataram alguns “ilegales”, que também eram índios. Agora vigiam sua aldeia com uma guarda armada 24 horas por dia, com medo de retaliação e não podem mais subir o rio Amônea, nas cabeceiras, para pescar, com medo de serem mortos.

7. Os índios da Amazônia Peruana estão metidos na exploração madeireira por pura falta de alternativa econômica e abandono do governo peruano. Estão sendo algozes deles mesmos. Os madeireiros são o Estado na região. Esta é a triste verdade.

8. As cabeceiras do Juruá, Purus e Envira, alem de abrigar várias comunidades indígenas conhecidas, abrigam, ou melhor, abrigavam vários povos indígenas isolados, que, em defesa de seu território, atacam os invasores e estão sendo sistematicamente mortos pelos madeireiros, que também são índios contatados e bem armados pelas firmas madeireiras.

9. Os povos isolados da região estão migrando para o território brasileiro, que na faixa de fronteira com o Peru é uma faixa contínua de áreas preservadas, a maioria terras indígenas. E do lado de cá, além dos índios contatados e dos moradores de reservas extrativistas, existem índios isolados. Os migrantes vão encontrar então os mesmos personagens do lado de cá que mataram seus parentes de onde vieram. Por não saber distinguí-los, vão atacá-los e vão sofrer retaliações. De novo índios vão matar índios.

10. No final do ano passado e início deste algumas agressões de grupos isolados a índios em território brasileiro já ocorreram. Além de ataques ao pessoal da Funai que cuida das terras dos isolados, no lado brasileiro.

11. O governo brasileiro e o governo peruano sabem de tudo isso, mas não movem uma palha ao menos para tentar solucionar a questão. Tudo fica nos protocolos de intenção, em atas de reuniões, em salas refrigeradas de encontros binacionais. Nada além disso.

Para que os europeus ou japoneses tenham seus móveis de madeira nobre e para que os norte-americanos enterrem seus mortos em caixões de mogno, uma das regiões mais belas e de maior biodiversidade da Amazônia se tornou violenta. Índios matam índios e a paz é uma lembrança distante. Naquela região estão as cabeceiras dos grandes tributários do Amazonas, os rios Juruá, Purus e Madeira (no Peru e Bolívia), nas terras firmes, que eram reservas intocadas até bem pouco tempo.

Senhor Europeu, embutido em seu lindo móvel de mogno estão vários índios mortos.

Senhor Japonês, em sua linda casa de madeira-de-lei vagam fantasmas de povos isolados que morreram sem saber o porquê.

Senhor Norte-americano, em seu caixão de mogno, além do cadáver do seu querido familiar, estão sendo enterrados juntos outros tantos, de povos que não sabem da sua existência.

Quem sabe se a gente deixar de considerar “chic” um móvel de mogno, de imburana, de ipê, de cedro rosa... Deixar de fazer varandas com esteios de maçaranduba e não se escandalizar com uma mesa de plástico, um pedaço considerável da Amazônia ainda possa ser preservado e os índios que restaram possam recolher os sobreviventes, refazer suas vidas e ser de novo um povo feliz.

Está em suas mãos.
fonte


trata-se de duas concepções, ou melhor, de uma dinâmica desconstrucionista do n-1;
trata-se de não se confundir, numa tendência positiva, com a apropriação capitalística dos processos de construção de mundos através do conhecimento;

capitalístico aqui relaciona-se mais a uma abordagem antropológica, referencializada pelo deslocamento estruturalista da linguagem, que a uma abordagem sociológica ou da economia política marcadas por pressupostos positivistas e categorias tais como consciência ou história;

a forma de ação está pautada menos no grupo e mais na utilização que se pode fazer do grupo enquanto máquina abstrata ou inteligência coletiva;

mas não fica muito pessoal essa abordagem...
fica pessoal se se toma como referência a objetividade e a impessoalidade;
uma certa antropologia continuará indefinidamente voltando-se a uma concepção transcendental do mundo [e do conhecimento] e uma concepção histórica da sociedade;
ambas concepções marcadas pela matriz identitária da filosofia parmenideana e aristotélica apropriada pelo judaísmo e nosso protótipo de estado;

no entanto, quando se reformula essa imagem do conhecimento e se toma um modelo mais construtivista e menos representacionista, passa-se a tratar a coisa menos como uma relação de verossimilhança descritiva e mais de criação e exploração de linguagem;

a pergunta: mais aí não se impõe uma concepção de mundo para o outro...
a questão não é a de um relativismo indiferente, mas de uma indiferença...;
não se trata de negar uma construção para afirmar outra equivalente ou melhor;

trata-se de trabalhar sobre determinados dispositivos coercitivos de manutenção e padronização que operam em nossa sociedade; trata-se de desconstruir padrões valorativos próprios à nossa socialidade;
com isso, afirma-se a diferença, pois essa desconstrução não resulta em outras positividades, muito menos padronizadas;

os agenciamentos de enunciação também possuem essa mão dupla, pois ao encarnarem processos e produtos comunicacionais ou artísticos, não se visa concentrar no receptor e sim volta-los para os próprios produtores;
assim como víramos na relação professor/aluno, o foco se volta sobre o processo de agenciamento [criado pelos alunos ou interlocutores] mais que sobre os receptores;

a promoção de subjetivação opera com os estratos subjetivos que configuram os interlocutores, processa os devires moleculares e não as identidades molares [em bloco];
não se trata de reforçar a voz média, mas de convocar certos estratos dessa polifonia ou multiplicidade que compõe cada um de nós;
se há uma ecologia das idéias danosas como das ervas daninhas, trabalharemos enfocando essa ecologia, enfocando a cultura de subjetividades anti-capitalísticas, que possam inclusive [para além de cultivar sua própria multiplicidade] instrumentalizar-se de dispositivos de proliferação de multiplicidades;


portanto, colocar a antropologia em função da arquitetura, enfocar a arquitetura de uma perspectiva antropológica não se trata de relacioná-la às diversas culturas e buscar padrões identitários [em relação a si] ou mesmo diferenciais [em relação à nossa];
não que não se possa faze-lo, mas não é isso que nos interessa;


toma-se antropologia aqui não como disciplina da ciência régia, como saber-poder oficial de coerção;
toma-se aqui a antropologia mais como um ponto de inflexão na política do conhecimento e na prática de resistência com processos de subjetivação;

toma-se capitalismo aqui mais a partir de seus dispositivos de normalização e padronização subjetiva;
o problema não seria portanto o contato da sociedade ocidental com as demais, mas a ação desses dispositivos determinados;
essa ação pode ser verificada em relação às sociedades não-ocidentais, mas também foi incansavelmente a partir de sua constituição na própria sociedade ocidental;
o processo de diferenciação que define a cultura não se restringe a uma característica das sociedades não-ocidentais, nem tão pouco a sociedade ocidental poderia suprimir a diferencialidade;
o que ocorre é que sociedade ocidental definiu uma série de dispositivos determinados que operam processos de padronização subjetiva definidos;
seja na escola, no hospital, na igreja, nas prisões etc, esses dispositivos se articulam com a apropriação e configuração do espaço;

para o ensino da arquitetura deve-se enfrentar os valores que estão pressupostos nas formas de apropriação do espaço, que são sempre determinadas politicamente;

enfrentar os consensos valorativos;


ecologia subjetiva

nossa dificuldade ou nossa resistência em ser livre se manifesta das mais diversas formas;
ao pensar na ecologia como modelo para os processos de subjetivação, pensava nela como instância última ou limite material do capitalismo;
[nascido para matar];
a ecologia seria, portanto, paradigma anti-capitalista por essa sua referência, por esse necessário contraponto a consumismo;

no entanto, como compreender então o consumismo da ecologia, a ecologia vendida nas prateleiras de supermercado e o mercado de carbonos;

pensava portanto que a ecologia subjetiva partia do mesmo ponto das ecologias natural e social;
que a noção de ecologia subjetiva convergia com a de ecologia natural;

no entanto, as incompatibilidades insistiam quando entrava em contato com o universo dos ecólogos naturais;
a princípio pensava que seria apenas um problema político, até entender que era de fato um problema político;

até que percebi não se tratar de uma convergência, muito menos de colocar a ecologia subjetiva em função da ecologia natural, numa espécie de utilitária conscientização ecológica do tipo, ou voltamos a amar a natureza ou nossos recursos estão com seus dias contados;
o próprio princípio ou ponto de partida da ecologia subjetiva é ou depende da supressão de uma concepção de natureza;
essa noção transcendental de uma natureza essencializada, externa, representada será então incompatível com qualquer possibilidade de ecologia subjetiva;
isso porque a matriz a partir da qual forjamos nossos dispositivos de controle social por padronização subjetiva [normalização] tem em seu princípio e pressupostos essa entidade;

nosso modelo identitário conduz a uma epistemologia representacionista tanto como à padronização das subjetividades capitalísticas;

se de uma lado temos as figuras do estado e do capitalismo, desdobramentos de nossa mística monoteísta, as quais possibilitam a configuração do arsenal de padronização subjetiva, de outro temos as dinâmicas de diferenciação da ecologia subjetiva;

não se pode obrigar ninguém a ser livre, eis a máxima que se tira da servidão voluntária;

nesse sentido nosso horizonte de finalidades não consiste tanto no suprimento das necessidades materiais, que pode servir inclusive [como tem servido] para a promoção do assistencialismo, quanto consiste nas práticas subjetivas que possibilitem utilizar tais necessidades com o objetivo de escapar ao circuito capitalista;
consiste ainda na definição de novos circuitos de valores, em que essas subjetividades configurem outras referências;


é interessante que rafael venha retomar [nominalmente] um elemento que atravessa praticamente todo meu esforço de fazer antropologia, antes e agora, neste juruá amazônico;
quando esboço princípios de uma antropologia ashaninka, não como mera brincadeira teórica, e sim com base em minha experiência junto ao projeto yorenka ãtame, trato de [uma fórmula] um dispositivo que tenho buscado manejar desde quando comecei a lidar com uma antropologia contra-estado, ou seja, pensada mais como máquina de guerra, que como colonial aparelho de amansamento da resistência indígena [por meio da pseudo-autonomia que não passa de burocratização integracionista];

tal [fórmula] dispositivo conjuga nos regimes de enunciação [algo tantas vezes desprezado como puro preciosismo teórico] uma política de conhecimento que forneça subsídios para destrinchar uma gama de instrumentos constituídos pelo estado e a sociedade ocidental para definir as condições de vida dos indígenas [sempre segundo seus pressupostos e quase sempre visando eufemizar sua diferença/resistência como uma suposta incapacidade de ser ocidental];

devido ao fato do pensamento ocidental [além de jogar em casa] definir as regras do jogo e impõ-las como possibilidade única [força] de se pensar a realidade do mundo, fazem-se necessários instrumentos que permitam desmontar esse campo minado;

o que quero, no entanto, destacar desse dispositivo agora é que se ele encontra ressonâncias nas práticas de política de conhecimentos e gestão de recursos planejadas ou em curso [projeto yorenka ãtame] na região do alto juruá, entre povos indígenas e demais moradores da região, é porque há muito procuro destacar, no contato dos grupos com quem convivi, seu olhar diferenciante sobre o mundo do homem branco;
esse olhar diferenciante é uma abordagem do mundo branco [com sua política de conhecimento arraigada em sua concepção mítica ou metafísica] em sua dinâmica etnocêntrica;
essa diferenciação, de características genealógicas, permite circunscrever, então, a história e escapar do cerco absolutizante do pensamento ocidental;
a partir daí, o que interessa é que essa linha de fuga para além [ou aquém, com o mito] da história, libera possibilidades subjetivas que seriam inviáveis [como são] no âmbito das emancipadas subjetividades configuradas pelo estado para os indígenas;
com essa abordagem, escapa-se ao projeto de emancipação da diversidade traçado pelo governo popular da redemocratização, que propõe uma política da diversidade distinta da integração [ou etnocídio] que configurou desde a colonização a política de subjetividades do estado;
isso porque os presupostos etnocêntricos que fundamentam essa política vêm à tona e a política indígena [contra-estado] se diferencia de uma política indígena de estado;

minha atenção esteve voltada para essa antropologia indígena não só porque esses interlocutores são [tenta-me dizer, naturalmente ou historicamente, tanto faz] exímios observadores diferenciantes [ou diferenciadores] da sociedade ocidental;
esse afã, de fato, facilita perceber a tendência de seu conhecimento para um combate a ser travado nas margens na região de contato [não se trata de contato sociológico como na fricção étnica, mas nas regiões ideais do conhecimento e da construção de si] com o universo branco;
acredito que, desde que essa prolixa antropologia encontre vazão, o espaço da escola pode deixar de ser espaço de amansamento e território branco e passe a se constituir como campo para processos indígenas de subjetivação;


ordem e desordem 2

ah, eu sei que não é possível; não me assente o senhor por beócio; uma coisa é por idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... tanta gente - dá susto de saber - e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons... de sorte que carece de se escolher: ou a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida só de religião só; eu podia ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços; para outras coisas não fui parido; mas minha velhice já principiou, errei de toda conta;
(gs:v: 8)

...e o 'urutu-branco'?ah, não me fale; ah, esse... tristonho levado, que foi - que era um pobre menino o destino...
(gs:v: 10)



nonada...
e dispara a máquina de desordenar mundo;
desescrever o idioma, de dentro, o idioma dos avessos;
homem-linguagem, um falador, rio-baldo, homem dos avessos, homem-linguagem dos avessos;
desfazer os lugares comum do idioma, desmontar o idioma dos condicionamentos, a linguagem-condicionamento, a literatura-condicionamento;

no grande sertão a memória é a forma do mundo, é a matéria da literatura;
não se trata de transcrever um vivido;
a experiência humana é plano de imanência em que riobaldo se inventa e se desfaz;

a narrativa cheia de pontas, marcadas com dêiticos e outras referências metalingüísticas, a linguagem dos avessos mantêm o leitor preso a essa superfície rugosa, esse plano de imanência;

desfazer-se;
o destino de desenrola dos avessos, da velhice à mocidade;
não se pretende construir um personagem, uma personalidade;

esta-se lidando com um personagem problemático discorrendo sobre si;
ele não se afirma, seu titubear, sua busca pelas certas palavras nos prende a superfície do texto;
como a vida e sua matéria efêmera nos escapa nos lábios, na fronte, não se trata de um personagem que se des-constrói indiferente, o próprio idioma se desconstrói com ele;

e lugar de estabelecer, de parear o sentido das palavras [sua lógica] com a ordem do mundo, riobaldo parte da incerteza de que somos todos doidos;
o que se tira disso é um mundo estranhado, contínua e gradualmente estranhado;
mundo estranhado - e entranhado - eis a experiência de linguagem riobaldiana;
eis sua agonia;

só em sua confissão riobaldo pode fazer a travessia obstruída pela consciência atormentada;
no entanto, sua análise não visa restabelecer qualquer ordem interna da psique;
delirar o sertão-mundo nessa máquina 'abstrata' aproxima-se sim de um processo de esquizoanálise;


diferença e diferenças
diferença
pode-se falar aqui em uma desgramatização da língua, num projeto em que se leva a extremas conseqüências o problema da diferença na literatura;
o padrão de uma langue é aqui colocado em função da diferença de uma multiplicidade de paroles;
e não é sem ironia que o autor confessa o desejo de publicar um dicionário;

é de se verificar aqui os elementos que distinguam a polifonia bakhtiniana do agenciamento coletivo de enunciação;

diferenças
no país em que o idioma normatizado funciona como discriminador social desde a condição colonial, o falar de riobaldo só pode mesmo se contrapor ao do doutor que nada sabe sobre o mundo do sertão, ou sertão-mundo, ou a máquina abstrata, ou o nonada inventa-línguas;

o lugar das diferenças sociais na linguagem, da linguagem como expressão das multiplicidades, ou a questão da política lingüística só soará algumas décadas depois do épico prenúncio roseano;

não que se deduza aqui a a política lingüística [ou da diversidade] oficial da experiência literária [algo típico do utilitarismo liberal, que não suporta a idéia de resistência], ou vice-versa;
a intenção é marcar o contexto e sua modificação, marcar diferenças;


ordem e desordem


a metafísica clássica alojava-se precisamente nessa distância da ordem à ordem, das classificações à identidade, dos seres naturais à natureza: em suma, da percepção (ou da imaginação) dos homens para com o entendimento e a vontade de deus;

(foucault, as palavras e as coisas: 233)


conhecer como dádiva ou graça a ordem do universo ou violentar a natureza e violar a lei;

conhecer o mundo já pré-definido pela criação ou criar um universo na luta/disputa entre mundos de conhecimento diversos;

com essa distinção de imagens do conhecimento que foucault começa um de seus cursos no collège de france, quando em 1970 [poucos anos depois de publicar o trecho supracitado, em 1966] aborda a vontade de saber;

segundo ele, de um lado temos [didaticamente] um modelo teórico de vontade de verdade estabelecido a partir dos [ou que estabelece os] postulados da metafísica clássica [aristóteles], e de outro, o modelo de um conhecimento menos natural e mais humano [demasiado humano], pautado no interesse, produzido como acntecimento do querer e determinando, por meio de falsificação, o efeito de verdade [nietzsche];


o que se têm é o modelo da racionalidade que pautou a tradição da produção de discursos do pensamento ocidental, que resulta da harmonia entre pensamento e realidade, segundo o imaginário da ordem versus uma concepção do conhecimento como produção humana, não só histórica e socialmente determinada, mas questionando a própria pré-noção de verdade como resultado dessa harmonia, fazendo repercutir os valores que implicam assumir tal concepção;

aqui retomamos a interação entre ordem e desordem que se projeta do cerne de grande sertão;

foucault associa à deus, conforme o trecho citado, a ordem, a identidade e a natureza, em suma os fundamentos [ou a dinâmica própria] da metafísica clássica, que, como ele procura evidenciar, configuram uma idade clássica da representação;


dos três modos de conhecer que definem a idade clássica da representação, um deles é a gramática [sendo os demais a história natural e a análise das riquezas];

portanto, a ordem gramaticalizada da língua é na tradição da metafísica clássica, matriz do saber científico ocidental, índice da presença divina;


a gramática [pensada como ordenamento do mundo que justificaria inclusive a alma dos selvagens, sua filiação a deus] foi tomada no primeiro período da colonização [e ainda o é] como um dos principais instrumentos de amansamento e catequese;

a gramática permitia aos jesuítas do período penetrarem na ordem do mundo selvagem/bárbaro e pagão;

dessa forma, ao relacionar a desgramatização do idioma acionada/disposta no grande sertão à presença do diabo não se faz proposta descabida;


no entanto, ao conduzir o diabólico à linguagem, não se quer reduzir os processos de subjetivação acionados pela linguagem via riobaldo;

mais uma vez: o homem-linguagem riobaldo é a diferença da parole e não a identidade da langue;

portanto, as hecceidades que configuram esse sertão não podem ser ofuscadas por esse processo de desmontagem da norma padrão do idioma;


hecceidades que configuram pela boca de riobaldo a infinidade de subjetividades/subjetivações-linguagem típicos desse sertão-mundo;

a multiplicidade sintetiza essa hecceidade própria da parole, desprezada pela ciência da langue, despreparada para lidar com essa dimensão social da linguagem por ela não se conformar às exigências da identidade típicas da ciência régia;

a diferença encontra nesse material [indomável pela ciência da langue] a possibilidade de se constituir não como ciência régia, pelas regras da identidade, e sim segundo uma outra imagem do conhecimento e da verdade;

esse conhecimento e essa verdade não exaltam o definitivo, mas o provisório, não se fundam na harmonia linguagem/mundo, mas na violência da produção de verdades;