17 setembro 2008



deleuze: entrevista 80
qual seria a unidade de mil platôs, uma vez que não há mais referência a um domínio de base?

seria talvez a noção de agenciamento (que substitui a de máquinas desejantes); há toda espécie de agenciamentos, e composições de agenciamentos; de um lado, nós tentamos substituir a noção de comportamento por essa: daí a importância da etologia em mil platôs, e a análise dos agenciamentos animais, especificamente, por exemplo, dos agenciamentos territoriais;
um capítulo como o do ritornelo considera ao mesmo tempo agenciamentos animais e agenciamentos propriamente musicais: é o que nós chamamos um 'platô', que coloca em continuidade ritornelos de pássaros e ritornelos como os de schumann;
de outro lado, a análise dos agenciamentos,vtomados em seus diversos componentes, nos abre para uma lógica geral: não fizemos mais do que esboçá-la, e essa será, sem dúvida, a seqüência de nosso trabalho, fazer essa lógica, aquilo que guattari chama de ‘diagramatismo';
nos agenciamentos, há estados de coisas, de corpos, misturas de corpos, ligas, há também enunciados, modos de enunciação, regimes de signos; as relações entre os dois são muito complexas; por exemplo, uma sociedade não se define por suas forças produtivas e por sua ideologia, mas, antes, por suas “ligas” e seus 'vereditos';
as ligas são misturas de corpos praticados, conhecidos, permitidos (há misturas de corpos interditadas, tal como o incesto); os vereditos são os enunciados coletivos, isto é, as transformações incorporais, instantâneas, que têm curso numa sociedade (por exemplo, 'a partir de tal momento tu não és mais uma criança...');

você descreve esses agenciamentos, mas eles não estão, me parece, isentos de julgamento de valor; mil platôs não é também um livro de moral?

os agenciamentos existem, mas eles têm, com efeito, componentes que lhes servem de critério e permitem qualificá-los; os agenciamentos são conjuntos de linhas, um pouco como em uma pintura; ora, há toda espécie de linhas; há linhas segmentares, segmentarizadas;
há linhas que se afundam ou caem em 'buracos negros'; há linhas que são destrutivas, que desenham a morte; há, enfim, linhas que são vitais e criadoras; essas últimas abrem um agenciamento, em vez de o fechar;
a noção de linha abstrata é uma noção muito complicada: uma linha não pode representar nada, ser puramente geométrica, ela não é ainda verdadeiramente abstrata, na medida em que ela tem um contorno; a linha abstrata é a linha que não tem contorno, que passa entre as coisas, uma linha mutante; afirmou-se isso a propósito de pollock;
nesse sentido, a linha abstrata não é, absolutamente, a linha geométrica, é a linha mais viva, a mais criadora; a abstração real é uma vida não-orgânica; a idéia de uma vida não-orgânica é constante em mil platôs e justamente é a vida do conceito; um agenciamento é arrastado por suas linhas abstratas, quando ele é capaz de tê-las ou de traçá-las;
hoje, assistimos a algo de muito curioso: a vingança do silício; os biólogos freqüentemente se perguntaram por que a vida 'passou' pelo carbono e não pelo silício; mas a vida das máquinas modernas passa pelo silício: é toda uma vida não-orgânica, distinta da vida orgânica do carbono; falar-se-á, nesse sentido, de um agenciamento-silício; nos domínios os mais diversos, deve-se considerar os componentes de agenciamento, a natureza das linhas, os modos de vida e de enunciado;

entre coisas muito diferentes, pode haver uma continuidade intensiva; quando nós tomamos de empréstimo a bateson a palavra 'platô' foi justamente para designar essas zonas de continuidade intensiva; (...) as intensidades são questões de modo de vida e de prudência experimental; são elas que constituem a vida não-orgânica;


sobre certos enunciados 'indígenas'
não se confunde consciência e agenciamento, não se trata de conscientizar um campesinato alienado;
outros tempos outros [e mesmos] problemas;
também não se trata de exigir anacronicamente direitos, num situação de compassivos, de dignitários da compaixão, do assistencialismo;
supondo: e se não for o caso, e se não se tratar enfim de uma questão de barganha, manha sempre atualizada no populismo escroto que dominou a política indigenista/indígena;
afinal, as lideranças indígenas aprendem como devem ser políticos nos critérios de nossa representatividade, de nossos fluxos de poder;
afinal, definimos [ou seja, convencemos] as lideranças indígenas como talento para a diplomacia;

falar ou repetir o que foi ensinado pelo branco, aquilo que foi ensignado pelo professor, que foi balizado, determinado pelo branco;
afinal é nisso que definimos educação, não só educação como pensamento;
questionar a partir daí é tabu;
a partir daí coloca-se o problema do caráter político do pensamento, o problema de sua origem na dogmática do monoteísmo, no professor universal;
e assim, circunscrito nessa imagem do pensamento, não se pode questionar as bases do conhecimento ocidental, seus valores, seus princípios, seus pressupostos;
sem questionar [ou seja, aceitando e se submetendo a] tais pressupostos, o pensamento, o conhecimento, a aprendizagem não podem ser apropriados e utilizados em função de linhas de fuga que atravessem e desconstruam esse pensamento único, que se imagina absoluto, tal como o estado e o capitalismo;

no entanto, esse questionamento interessa para muito além de seu 'conteúdo';
enquanto método, enquanto processo, enquanto prática interessa essa problematização;
pois a maneira de se absolutizar [e de passar tal absolutização imperceptível sob nossos olhos e entre nossos corpos] do pensamento de tradição ocidental se define a enquanto plano de transcendência;
esse plano de transcendência distingue os campos e circuitos dos corpos e dos signos, devidamente distintos como reza a tradição representacional;

um plano de imanência vem justamente dobrar, definir o diagrama em que se detecta os pontos que escapam ao policiamento do pensamento, ponto em que se tornam indiscerníveis essas instâncias;

assim como diz viveiros de castro a respeito do projeto etnografia e modelos analíticos: a essência do problema era como construir um modelo teórico capaz de operar sem a separação entre o simbólico e o real, permitindo que se descrevessem as redes sociais empíricas juntamente com o conjunto de relações cosmológicas;

o que está determinado na ensinança definida nos pressupostos da educação de estado é o lugar único, o ponto de referência de onde se fala, de onde se enuncia;
outros pontos de vista pressupõem outras imaginações, direcionadas à liberdade, à proliferação de possíveis mais que a perpétua constatação de uma verdade única e absoluta;
no entanto, essa verdade absoluta não pode circunscrever esses outros possíveis;


sobre certos enunciados 'indígenas'
não se confunde consciência e agenciamento, não se trata de conscientizar um campesinato alienado;
outros tempos outros [e mesmos] problemas;
também não se trata de exigir anacronicamente direitos, num situação de compassivos, de dignitários da compaixão, do assistencialismo;
supondo: e se não for o caso, e se não se tratar enfim de uma questão de barganha, manha sempre atualizada no populismo escroto que dominou a política indigenista/indígena;
afinal, as lideranças indígenas aprendem como devem ser políticos nos critérios de nossa representatividade, de nossos fluxos de poder;
afinal, definimos [ou seja, convencemos] as lideranças indígenas como talento para a diplomacia;

falar ou repetir o que foi ensinado pelo branco, aquilo que foi ensignado pelo professor, que foi balizado, determinado pelo branco;
afinal é nisso que definimos educação, não só educação como pensamento;
questionar a partir daí é tabu;
a partir daí coloca-se o problema do caráter político do pensamento, o problema de sua origem na dogmática do monoteísmo, no professor universal;
e assim, circunscrito nessa imagem do pensamento, não se pode questionar as bases do conhecimento ocidental, seus valores, seus princípios, seus pressupostos;
sem questionar [ou seja, aceitando e se submetendo a] tais pressupostos, o pensamento, o conhecimento, a aprendizagem não podem ser apropriados e utilizados em função de linhas de fuga que atravessem e desconstruam esse pensamento único, que se imagina absoluto, tal como o estado e o capitalismo;

no entanto, esse questionamento interessa para muito além de seu 'conteúdo';
enquanto método, enquanto processo, enquanto prática interessa essa problematização;
pois a maneira de se absolutizar [e de passar tal absolutização imperceptível sob nossos olhos e entre nossos corpos] do pensamento de tradição ocidental se define a enquanto plano de transcendência;
esse plano de transcendência distingue os campos e circuitos dos corpos e dos signos, devidamente distintos como reza a tradição representacional;

um plano de imanência vem justamente dobrar, definir o diagrama em que se detecta os pontos que escapam ao policiamento do pensamento, ponto em que se tornam indiscerníveis essas instâncias;

assim como diz viveiros de castro a respeito do projeto etnografia e modelos analíticos: a essência do problema era como construir um modelo teórico capaz de operar sem a separação entre o simbólico e o real, permitindo que se descrevessem as redes sociais empíricas juntamente com o conjunto de relações cosmológicas;

o que está determinado na ensinança definida nos pressupostos da educação de estado é o lugar único, o ponto de referência de onde se fala, de onde se enuncia;
outros pontos de vista pressupõem outras imaginações, direcionadas à liberdade, à proliferação de possíveis mais que a perpétua constatação de uma verdade única e absoluta;
no entanto, essa verdade absoluta não pode circunscrever esses outros possíveis;


o modelo de participação, de representação, de individuação das opiniões, modelo da consciência está baseado na fala, numa fala apodrecida, que percebe o humano como indivíduo, para a qual o melhor mesmo é o humano se restringir ao individual, para um melhor controle e uma melhor intelecção ou entendimento [sempre segundo determinada imagem do pensamento, o que visa por sua vez reproduzi-la ou perpetuá-la];

o modelo da consciência reduz, neutraliza e aniquila com a potência do agenciamento coletivo de enunciação;
despedaça com ele, isola-o, desbarata-o sobretudo com o efeito dos sistemas de onipotência/onipresença como a igreja ou o estado;

a perspectiva dialética ainda é uma perspectiva de estado, presa a uma idéia de justiça histórica que cumpre ao estado reparar, que encontra reparação no estado;
é no campo do estado, no âmbito de suas instituições que essa justiça maneja seus valores;
escapar aos direitos, à justiça, ao bem, à ordem e aos benefícios do estado [eis algo não admissível, e talvez por isso interessante, nas regras pré-estabelecidas pelo estado], enfim, escapar aos valores dos estado, não tocar nessa questão delicada, tabu, ao mesmo tempo intocável e a partir do qual se define uma interlocução propriamente indígena;
afinal, não se trata simplesmente de individualizar as opiniões para querer enquadrá-las no direito intelectual, transformar essa doxa mais ocidental que indígena em produto de mercado;
conservar-se e explorar mais o mito [como agenciamento coletivo de enunciação pode ter mais a nos dizer] em lugar de buscar 'libertar-se' em nossos campos discursivos loteados com os arames farpados das palavras de ordem com sua hierarquia pressupostas;
nossas palavras não permitem liberdade, nosso discurso permite tudo menos liberdade;
a palavra e seus circuitos, campos em que ela se reveste de valor de troca, são determinado e determinantes;

o caráter polêmico da questão [que podemos chamar de genealógica] está em que onde termina nosso plano de transcendência, nosso exprimível, é aí que começa a questão indígena;
a marca consiste no tabu estabelecido por esse discurso, a partir do qual se coloca a questão indígena do poder, a questão do poder indígena expressa em seus agenciamentos coletivos de enunciação, contraposta ao discurso de poder do estado;
o tabu está sustentado na contradição de uma constituição que reconhece os direitos de outros povos, não tanta contradição desde que mantidos tutelados;
não se trata de uma questão de direito, de compaixão ou de justiça histórica, todos dispositivos que fazem inserir no circuito os mesmos valores ou esquemas valorativos ocidentais;

parece haver aí um atrelamento que só se deixa denunciar pela perniciosidade da individuação como palavra de ordem, como necessidade, como imagem obrigatória do sujeito, que para operar deve se constituir ou subjetivar como individualidade;
um atrelamento entre genealogia e agenciamento coletivo de enunciação;
à medida em que se coloca em questão a ordem dos valores dogmatizados desde os tempos em que o discurso oficial, o discurso do estado vinha investido de misticismo monoteísta;
o agenciamento de enunciação se desdobra como possibilidade de um fora em relação à onipresença típica do estado;

a forma de se abordar a história pela busca anacrônica por direitos persiste como vontade de protagonizar esse dispositivo de estado, esse intensificador de poder;
sair da história equivale a sair do estado, neutralizar sua pretensa onipotência/onipresença;


projetar não se limita a determinar, projetar como determinar opera numa imagem do pensamento marcada pelo consenso e a consensualidade, um pensamento da identidade, que investe na convergência como o monoteísmo, cujo deus é o condutor da convergência num padrão de valores que escapa porque projetado num plano de transcendência;
projetar consiste na possibilidade de multiplicar possíveis, geralmente determinados pelo dispositivos de controle e ordenamento, de homogeneização e massificação;
consiste em projetar linhas de fuga pelas quais possam escapar experiências singulares de singularidade, que se possa escapar instantes de aprendizagem que reconfigurem os campos de monocultura do sentido, campos de consenso;
a multiplicidade se dá contra esse muro em que o estado nos encerra, muro da ordem, dos valores, dos pressupostos de conhecimento que os determinam politicamente;

máquinas de guerra visam constituir esses campos provisórios, essas zonas autônomas temporárias;

projetar menos como essa postura autoritária que pretende pré-definir a aprendizagem, seus fluxos, mais como proporcionar linhas de fuga as determinações, formular e trabalhar com uma imagem do pensamento enquanto prática de liberdade, lidando e desconstruindo os aparelhos de homogeneização de sentido e subjetividades, principalmente aqueles que se acredita aliados como igreja e direito;
a imagem do pensamento de estado, a ciência régia, tem como função o controle, o controle que simule uma liberdade;
o direito é um antigo aparelho de captura, dado o pseudo-empoderamento forjado em tribunal, em instâncias decisórias do estado;
o direito é um dos dispositivos mais arraigados no positivismo, na afirmação do valores dos estado, na conservação da ordem;
há uma impressão de justiça que serve mais para investir poderes ao estado e menos para colocar em questão as disputas diante de regras pré-definidas também a partir e como afirmação dos valores mais conservadores da sociedade;
transferir a disputa para a justiça consiste em transferi-la para o estado com seus interesses e seus jogos de força;

03 setembro 2008




fazer convergir para uma mesma história, absolutizar a história como foi feito com o deus único do monoteísmo judaico-cristão;
essa unicidade dos acontecimentos, esse campo de sentido único circunscrito pelo pensamento coincide com os limites do estado, com a imagem do estado;
por isso a história é importante na configuração do pensamento, por sua imagem do acontecimento que se desdobra da unicidade positivista do representacionismo clássico, inspirado nas verdades dogmáticas e inquisitoriais dos tribunais medievais, para a dialética do devir contra-histórico;

a anti-história dos indígenas, com todos os dispositivos contra-estado vislumbrados nos mitos e desdobrados nos ritos e sistemas xamânicos, consiste numa história dos possíveis;
sua resistência é tanto a da determinação guerreira como a inconstância sistemática que os previne contra a monocultura do pensamento monoteísta;


aí é que está: um história dos homens infames não consiste em alargar a jurisdição da história, consiste numa mutação intensiva, em mudar a natureza daquilo que entendemos como história, ou seja, modificar o próprio pensamento que pressupõe a história, a própria imagem da verdade pressuposta na história;
já se trata de uma outra história, que implica numa outra concepção de história, num modo diverso de operar a história e numa outra função a ser desempenhada pela história, ainda que uma contra-função;
de sua função de ciência régia, de investimento absoluto sobre a doxa, é despistado pela figura do discurso, do enunciado, que redefinem a relação simplificada do representacionismo positivista;
de um valor estritamente histórico, as falas dos militares na ditadura passam a se revestir de um valor discursivo, que opera melhor no jogo complexo dos possíveis, em que a distinção entre história e literatura é borrada pela noção de discurso;
sua violência determinista, positivista etc é tão mais forte quanto mais indefinida se comprova ser a variedade de posições ou de possíveis afirmada pelos subversivos;
o combate de fato é menos contra uma força revolucionária organizada em torno de uma causa, de um partido, de uma doutrina, e mais um combate contra a diversidade, a multiplicidade, a singularidade, combate este que se dava muito além dos combates militares, das sessões de tortura de dissidentes, da censura à mídia, e que se constituía mesmo como política subjetiva de doutrinação nacionalista, de um projeto de homogeneização que definisse a apatia política das próximas décadas em favor de uma liberalização reacionária sempre crescente, em consonância com as ordens dos aliados de guerra do norte;

uma história dos homens infames
as histórias possíveis já não são mais a história, pelo menos já não são história como se entende que seja a história, a história detentora da totalidade e da autoridade do acontecimento, com seus compromissos epistêmicos;
a reformulação da imagem da história pressupõe ou implica uma reconfiguração a imagem da verdade ou do próprio pensamento;
a tensão entre determinismo positivo e a complexidade dos possíveis vai além da história atingir a imagem do pensamento centrada tradicionalmente na consensualidade e na convergência;
a história será, portanto, um carro-chefe na reformulação, como o é na manutenção, de uma imagem do pensamento;

daí a tarefa da antropologia e da política de formular um pensamento dos possíveis contraposto à ciência régia identificada na doxa e na sua consensualidade;


o regime seringalista opera a partir de dois dispositivos centrais: o pagamento da renda pelas estradas de seringa, que eram administradas pelo seringalista, e o barracão, onde este detinha o monopólio do consumo de produtos industrializados, dado que aos seringueiros era proibido o cultivo de alimentos;
a organização dessa classe se deu por meio das cooperativas, que surgiram como alternativa em meio à mobilização estimulada pelos sindicatos de produtores rurais e da categoria;
as cooperativas não só quebraram o monopólio do barracão, elas questionaram, a legitimidade da propriedade de terra conforme o sistema seringalista;
esse ponto de conflito foi resolvido com as gordas indenizações do estado, velho parceiro dos seringalistas na idealização do sistema e na exploração dos soldados da borracha;
diante da legitimidade que já alcançavam as leis trabalhistas e os movimentos de trabalhadores, era insustentável, mesmo em meio à floresta amazônica e com o apoio das classes privilegiadas e mantidas por esse sistema, a sua sustentação;
o valor positivo da floresta, organizado no discurso da ecologia, e a problemática do socioambientalismo, ignorada pelas décadas de desenvolvimentismo militar, projetaram chico mendes como símbolo de um novo segmento da nova democracia;

os índios acreanos, seringueiros, embarcaram na estratégia dos outros seringueiros, que estavam fazendo valer leis trabalhistas jé legitimadas em todo o país e diante de um sistema em plena decadência tanto econômica, como política e social;
essas pessoas já tinham um valor social e um valor enquanto mercado de consumo que superava sua produção no extrativismo do látex, em franca decadência;

no entanto, o direcionamento das colocações e seringais habitadas por indígena era outro, a funai chegava ao acre e reconhecia essas etnias demarcando terras indígenas no estado;
com a morte anunciada da economia do látex, os barracões, que resultavam de investimentos de projetos, com forte apelo político, de promoção da 'sustentabilidade', não se sustentavam mais numa economia não monetária e as fontes de renda passaram a ser novo projeto social dos movimentos;
de fato, o legado deixado pela máquina seringalista em seus últimos suspiros antes do golpe do mercado internacional foi um pesado fardo que ainda hoje desnorteia as sociedades tradicionais com a cultura do barracão, do consumo, do dinheiro, do salário, em que os valores da sustentabilidade se rendem aos apelos do valor de mercado, do emprego, da concorrência etc;
os poderes locais, na inércia do regime seringalista e suas relações, fazem convergir a máquina do estado para essas mesmas relações, dando seguimento aos valores desenvolvimentistas e à ordem liberal da ditadura militar;


o que se quer, o que deseja uma comunidade é mais um ponto de chegada que propriamente um ponto de partida;
ainda que esse desejo coletivo seja um ponto de partida para a sua efetivação num projeto prático, ele deve resultar de um processo de amadurecimento político que situe o contexto e descortine os consensos em torno da inexorabilidade da sociedade de consumo e de seu way of life;


é certo que poucos de nós [que trabalhamos com os índios] pensa em chegar até eles pelo tratamento com esse material [falas, fragmentos ou discursos dos militares no poder, 1964-1984];
todos queremos residir nas etnografias e na mitologia que nos torne cada vez mais íntimos desse pensamento e suas especificidades;
minha escolha pela área, inclusive, se deve a essa possibilidade;
no entanto, para que não tratemos esses temas de forma tão positivada, pode ser interessante um vislumbre sobre as práticas de subjetivação, a corporalidade e a epistemologia/ontologia dedutível do conservador discurso militar;

nas fissuras abertas com o trato a esse material podemos vislumbrar estratégias de desconstrução desse discurso;
para se trabalhar com a concepção de escola e educação me parece importante desconstruir a imagem do conhecimento e das relações de força impressas em nosso corpo e reações, em nossa subjetividade e percepção pelas décadas de ditadura;


há muito nossa tarefa enquanto homens de conhecimento deixou de se definir por uma busca explicativa de uma verdade pré-estabelecida no mundo;
aliás, depois de se apreender a apropriação política dessa imagem do conhecimento para conformá-lo ao arsenal de aparelhos de captura, de dispositivos de controle social, nossa tarefa se define ou se caracterizaria melhor pela prática contra-explicativa, por buscar definir métodos que demonstrem o que não é, métodos de produção de conhecimento anti-positivistas, que permitam lidar com tais procedimentos de configuração de realidades;
daí, como ponto de partida, uma redefinição, a partir dessas bases, das maneiras de conceber e fazer uso da linguagem;
isso porque a verdade se desloca quando se passa de uma imagem do conhecimento voltada à positividade do mundo, à objetividade absoluta, para uma imagem do conhecimento que se desdobra em plano de imanência e não se distingue como produtora de signos do mundo a conhecer;
aqui o discurso se posiciona na berlinda, em meio ao combate das coisas por se fazerem perceber;
não está mais alheio ao campo das intervenções [políticas, sociais etc], pois assume-se e meio a elas;





mas como fazer se aprendemos a pensar assim, se essa é a imagem do conhecimento que possibilita o funcionamento de nossa racionalidade, como entender essas exigências estéticas quando o que se exigia antes era a objetividade;
como lidar com jogo de espelho dos virtuais quando nosso pensamento esteve voltado até então para a individuação de atualidades, ainda que atualidades sempre defasadas por que suprimidas de seus devires;
renunciando à imagem objetivadora o pensamento o que nos resta, que orientações seguir, se estamos ainda habituados a nos dizerem o que fazer, como podemos criar outros procedimentos que não aqueles já estabelecidos sobre nossos valores;




é quando deixamos de trabalhar com o mundo, de explicar as coisas e passamos a nos concentrar sobre as palavras, os discursos que explicam as coisas, que configuram as percepções, quando percebemos que uma explicação não tem valor em função da coisa explicada, mas enquanto processo de produção de sentido, de controle perceptivo e social, controle de sentidos, convergências valorativas que se dão na forma de palavras de ordem que nos explicam como deve ser a realidade para o nosso bem;
vale aqui arrolar uma série de expressões comuns, ditos que se tornaram populares durante o período da ditadura, quando uma realidade política autoritária se fazia valer à força e com o cinismo daqueles que se sabem interventores autoritários;
o interesse sobre tais expressões e sobre esse momento histórico decisivo consiste na sua presença em nosso caráter passivo e conformista, que se revestiu de certo cinismo a partir da convivência com o espírito autoritário do militarismo nas condições de exclusiva força de estado (ai-5);
penso que aqui está uma chave interessante para a compreensão e utilização do positivismo como contraponto do perspectivismo que estamos a experimentar, pois assim podemos lidar com o caráter autoritário com que se fez passar de aspirações democráticas para uma ordem neoliberal tomada como condição inqüestionável;
isso nos possibilitará lidar com traumas utilizados pelas mídias de massa para dar curso ao projeto 'dos militares' de implementação de um submisso liberalismo nortista, inicialmente percebendo a continuidade entre esses regimes, que não se restringe às suas políticas econômicas;
o que se nota, tanto no campo semântico, como nas expressões cristalizadas, é o caráter conservador, a assegurar a ordem e a manutenção da hierarquia social, tomando, conforme a tradição colonial, o direito como privilégio que diferencia e não como princípio de igualdade;
nessa economia, a distribuição da cidadania terá na classe jurídica, com sua relação promíscua com o estado autoritário, um lugar fundamental;
inclusive a concepção que elaboramos de direito, ordem, força, justiça etc antes de se definirem [e longe de sê-lo] como universais, se constituem e caracterizam a partir de suas apropriações e usos brasileiros, demasiado brasileiros;




o tão fora de moda [falamos de 1968: num mundo já globalizado ao menos pelas ditaduras ditadas pelo globalismo das corporações centralizadas na norte-américa] positivismo nacionalista da mentalidade ainda provinciana e colonialista [mas que cumpria as fórmulas liberais de mercado], aferrou-nos à identidade brasileira das aulas de educação moral e cívica, cujo nacionalismo de restrições de uso ganhou forma nas economias que louva[va]m a dependência do norte neocolonizador;
nacionalismo de fachada enquanto entregavam-se nossas riquezas minerais, mão-de-obra e mercados consumidores estratégicos, tudo orquestrado com a velha imagem democrática dos políticos corruptos, autoridades representativas de seus próprios interesses e dos interesses de seus aliados na pilhagem dos recursos públicos;
uma velha ordem social que visa se perpetuar e perpetuar os aliados que a legitimam;
assim, enquanto engolíamos o autoritário discurso patriótico e puritano [dos mais retrógrados e violentos entre as diversas forma de controle social] nas aulas de educação moral e cívica, nosso futuro era negociado nas rodadas de negociações por representantes democráticos dos interesses das corporações globalistas;
esse é o passado imediato que nos ressoa e que as mídias de massa [sempre voltadas para sua imagem de futuro] ocultam, enquanto nos ocupam com um lixo consumista altamente tóxico, pois se impregna mais e mais em nossas subjetividades, tornando-nos cada vez mais apáticos e semelhantes aos nossos irmãos consumistas do norte;o lugar efêmero e singular desses discursos, dessa expressões que resultam de um exercício de poder determinado servem bem à abordagem, aos procedimentos de trato da imagem de verdade que pretendemos desdobrar;
tomamos o caráter quase literário desses ditos, visto que o que nos interessa é menos as intencionalidades dos personagens e mais as virtualidades, a nuvem de virtuais indiscerníveis daquilo que está atualizado;
de que forma esse imaginário conservador [que rebate sobre uma concepção positivista do real] nos influencia hoje, que práticas de socialidade respondem imediatamente a seu apelo, em que medida, ou melhor, por que condutos ele configura nossas práticas de ensino-aprendizagem e a imagem do pensamento que elas atualizam;
em que pressupostos, em que não-ditos, em que medos ressoam essas práticas de violência associadas ao conservadorismo, à conservação de nossa condição social definida como ordem;
que outras formas de violência, que outras formas de censura sucedem e dão novos sentidos à maneira com que fomos imaginados pela ditadura militar;
ponto: porque o tema ganha área especializada e, portanto, estanque, em lugar de se dissolver no complexo da problemática social contemporânea, de ocupar seu lugar central nessa problemática;
o silêncio sobre alemanha nazista, uma sua esquizoanálise, pode ser pensado, com as proporções devidas, em relação aos nossos devires: devir-torturador, devir-assassino, devir-espião, devir-fascista;
tais devires não desapareceram, como querem cinicamente as pseudo-democráticas mídias de massa impor, eles nos povoam em nossa socialidade;
o que não podemos é nos forjar à figura, desejada nas mídias de massa, de democratas de fachada, [revestidos de uma fina camada de tolerância: nós, os neonortistas vencedores do liberalismo] enquanto em solo fértil as sementes do fascismo só esperam a primeira chuva para brotarem e engalharem viçosas;





o exacerbamento das palavras de ordem nos discursos autoritários de violência ontológica podem no fornecer um campo interessante para fundarmos nossas práticas de conhecimento, nossa imagem da verdade articulada a instituições como o estado e seu complexo jurídico;
acredito que haja uma conexão direta entre o autoritarismo violento que se cristaliza nessas expressões e as formas da verdade que se definem pelas instituições sociais competentes: escola, pesquisa, ciência, direito, legislativo, igreja etc;
assim, poder-se-á articular o interesse e os projetos da política de estado militar em relação à educação;
a imagem do ensino, da verdade, do saber, da prática, enfim desse campo semântico que se conecta em torno das práticas de ensino-aprendizagem, desde os mais próximos e oficiais até aqueles marginais;
o período militar, não por acaso, coincide com o início da efetiva democratização do ensino escolar gratuito e obrigatório, tendo marcado sobretudo o ensino fundamental;


se [conforme foucault a respeito de deleuze] o propósito da filosofia [o que é a filosofia] será se constituir como anti- ou contra-platonismo, em antropologia o projeto e desdobraria numa antropologia contra-positivista, uma antropologia contra-estado;
essa antropologia contra-estado não é nada mais ou menos que uma antropologia que se recusa ao velho jogo saber-poder que define os aparelhos de captura, o que equivale à convergência de investimentos na natureza e no funcionamento de máquinas de guerra;


trata-se da questão da constituição histórica das demandas indígenas, relativizar tais demandas como construções que não podem ser tomadas como referências absolutas na construção desse projeto, a menos que com certa omissão aos desdobramentos políticos e a manipulação de subjetividades a que resistiram os movimentos sociais das formas que puderam;

a construção de demandas, portanto, não deve ser tomada como um ponto de partida ou um dado transcendente por que apoiada na autoridade que atribuímos à efêmera consciência;
a construção das demandas pode se constituir como parte integrante de um projeto coletivo debruçado sobre as instituições dos povos indígenas;

a construção de demandas deve articular-se nesse projeto específico de construção do projeto de ensino médio, este por sua vez articulado aos projetos comunitários em andamento;
articulado a esse processo de construção pode ser retomada no projeto a trajetória educacional do povo em questão, a qual deve retomar suas lutas e conquistas políticas, destacando os motivadores de tais impulsos;

02 setembro 2008




pensava hoje aqui na aldeia sobre a penúria e o privilégio de sentir a solidão em meio à multidão molecular revolucionária, de perceber ao mesmo tempo o quão imaturos estamos em nosso processo de resistência ao hipercapitalismo implementado pela extrema direita da cruz e do fuzil, que antes de esquartejar o carnaval revolucionário que foi nosso ensaio de guerrilha, cortara a língua de nossa tão perigosa quanto pacífica antropofagia cangaceira: resultado: engolimos a aliança sinistra entre o liberalismo dos mídia que modulam e modelam nossa língua no jornalistês dos alcagüetes de cada esquina e a bem comportada esquerda democrática que vai liquidando a floresta para abrir os caminhos de um pac politica e ambientalmente correto, e o quão inusitado é despertar a essa altura dos acontecimentos, despertar ao lado da floresta e do mestre ('o' mestre), para enfrentar a indiferença do entorpecimento e para apreender a potência da diferença sob o signo heterofóbico da identidade, do claustro do ego que nos une, para aí dar conta do que em nós (e em nós neles todos os outros, nossos e 'outros' outros) quer a servidão, nosso medo que aciona o desejo de servir e voltar-se, impiedoso, para encará-lo...
de fato, devir latinamericano e, melhor, devir índio é pra quem pode, quem pode saber o privilégio...
com uma floresta de saudades...