31 outubro 2008

afinidades potenciais na etnografia pós-humana de manoel de barros

o vôo do jaburu é mais encorpado do que o vôo das horas;
besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele
vagando por escórias...
a 15 metros do arco-íris o sol é cheiroso;
caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos,
se embutem até o latejo;
nas brisas vem sempre um silêncio de garças;
mais alto que o escuro é o rumor dos peixes;
uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a
fazer parte dos pássaros que a gorjeiam;
quando a rã de cor palha está para ter - ela espicha os
olhinhos para deus;
de cada 20 calangos, enlanguescidos por estrelas, 15 perdem
o rumo das grotas;
todas estas informações têm uma soberba desimportância
científica - como andar de costas;
minha cara
suas provocações são melhores que as das yawanawá...
e olha que elas são terríveis...
bom, provocações a parte
que posso dizer...
que estou tentando, há tempos, engolir esse caroço;
o que você chama de etnografia, que estaria faltando nos escritos, é fruto de um trabalho de muitos anos de delicado e minucioso manuseio com o que acredito que possa nos proporcionar uma forma de escrita ou literatura ou sei lá o que, que roça a antropologia;
se fosse para fazer antropologia seria antropólogo e, quem sabe, você não gostasse de mim, supondo que você goste, de mim ou pelo menos de criar comigo ou ao meu lado...
a conversa é séria, remete ao meu mestrado e sua impublicável dissertação;
meu orientador me via cruel com o leitor;
e ainda tem aquela história da maria cecília na minha banca, que disse, referindo-se ao título da dissertação (o que se ouve entre a opy e a escola?): mas onde está a escola aqui que eu não encontrei?
mas está aqui, disse eu apontando para o auditório da universidade, estamos nela, completei zen;
e ela procurando a escola indígena durante todo o texto e não percebeu que eu me referia à escola-universidade-dissertação e todo o plano de imanência que fazia rizoma com o texto escrito-lido por ela;
pois é, não tenho jeito, não tenho queda para etnografias;
a propósito, não tenho queda para nada que cheire, de longe a jornalismo;
amargo, inclusive, certo remorso por uma ou outra decaída;
e já que estou meio poético - ou seria caquético - rimou!
dou-te um piparote, digo, uma poesia, e adeus...


a poesia está guardada nas palavras
- é tudo que eu sei;
meu fardo é o de não saber quase tudo;
sobre o nada eu tenho profundidades;
não tenho conexões com a realidade;
poderoso para mim não é aquele que descobre ouro;
para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias,
do mundo e as nossas;
por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil;
fiquei emocionado e chorei;
sou fraco para elogios;

manoel de barros



ps.1
em tempo...
o tema do excerto é
entre o objetivo discurso etnográfico
e as implicações do pensar indígena
– desdobramentos –

ps.2
já mais objetivo...
essa conversa de disputa por, guerra, expropriação ou pilhagem de conhecimento...
não está te lembrando nada...
acho que quero roubar
(a propriedade é um/o roubo)
alguma coisa sua...
'ação' entre amigos...

30 outubro 2008




entre o objetivo discurso etnográfico
e as implicações do pensar indígena
– desdobramentos –

diferente do branco – ou do antropólogo – que desfila seus conhecimentos (de forma que só um sistema de conhecimento da transcendência possibilita) num discurso de demonstração ou explicação [isto é, que se dobra pra fora], para os conhecedores [dos] indígenas, o saber-poder implica uma ação discursiva [razão pela qual também muitas vezes admirem os efeitos dos pensamento, das palavras ou das leis dos brancos];

saliento que faço um uso particular da noção de ação discursiva, distinto do de habermas, com o sentido foucaultiano de um discurso que exerce uma função social não-positiva ou anti-positiva;
caberia, portanto, em ação discursiva os efeitos do discurso em contraste com seu sentido ou significado, ou mesmo com sua interpretação;
uma coisa é o que se diz e o que se quis dizer, outra é o efeito do dito;
mas para não se cair na banalização da concepção que se quer conceito, ela tem uma serventia certa na desconstrução de discursos positivistas, em que o ouvinte ou interlocutor é fixado ou enfeitiçado pelo sentido do dito, pelo plano de transcendência que dá a ver sem ser visto, enquanto o acontecimento se passa no plano de imanência, cujos efeitos se dobram sobre o discurso, recursivamente;

são esses efeitos mais que propriamente as técnicas de nosso conhecimento que [me parece] fascinam os indígenas, visto que a nossa falação objetivante e positivista sobre a natureza das coisas é evidente que eles desprezam ou, pelo menos, desacreditam piamente [mesmo, ou principalmente, quando juram crer];
como diz viveiros de castro, é aquilo que para eles em nós não tem mais jeito;
enfim, seriam nossos discursos e as possibilidades de políticas de conhecimento e subjetivação que os impressionariam;
assim como as tantas possibilidades de subjetivação abertas pela socialidade comunicacional que, no entanto, permanecem reduzidas pelo controle do mercado publicitário [perdoe a redundância] sobre o consumo de subjetividades;

é aí que se dá um campo complexo de predação em que os indígenas se inserem para capturar os recursos ocidentais e acabam sendo capturados e subjetivados por eles;
isso é evidente nas políticas internas de educação e de inserção em cargos públicos;

é necessário que se explore melhor esse tema, devido a ser um argumento central de nossa abordagem;
pode-se enxergar aqui um duplo processo na guerra de conhecimentos/saber-poder;
enquanto os indígenas avançam sobre os conhecimentos ocidentais motivados por necessidades que se travestem em diversos discursos de estado ou do senso comum sobre educação e profissionalização, esses mesmos indígenas voltam 'nossos' próprios conhecimentos contra 'nosso' regime hegemônico de saber-poder;
nesse embate aparecem vários mediadores: a escola convencional não-indígena, a própria escola indígena, o cursos para indígenas na universidade, as pesquisas, as pesquisas indígenas, os centros de formação indígenas, os centros indigenistas de formação, o discurso e as leis dos conhecimentos tradicionais, cursos, associações e cooperativas etc;
o interesse sobre esses mediadores é notar de que forma eles mediam o cabo de guerra intensivo dos processos subjetivadores;
de um lado, os conhecimentos ocidentais mediados por suas instituições de ensino caracterizam-se por promover a integração à homogeneidade nacional;
em outro extremo, temos as experiências de apropriação e ressignificação de conhecimentos, que aqui consideramos como a prática [propriamente] antropológica propriamente indígena;
nessa guerra pelo saber-poder [ou por essa reversão antropológica do conhecimento] são muitos que se perdem, que são formatados no padrão subjetivo ocidental, enquanto outros poucos chegam a formular sua antropologia escapando aos aparelhos de captura: o pensamento-subjetividade ocidental;
trata-se de um problema que a antropologia se coloca nas últimas décadas, visando exorcizar os fantasmas da aculturação criados pelo positivismo colonialista de nossa matriz de pensamento fundada na transcendência;




no entanto, pode-se rastrear aqui toda a política indigenista de direitos do estado que influenciou decisivamente a antropologia das últimas décadas [o que, em nosso caso, significa praticamente toda a prática antropológica];
essa política de direitos baseada na cessão de direitos mais que na produção de direitos [algo totalmente alheio de nosso imaginário jurídico autoritário e positivista] levou a uma prática política assentada no assistencialismo e na cobiça das comunidades pelos 'mesmos direitos' dos brancos;
isso contribuiu decisivamente, moldando todo um imaginário político do 'índio brasileiro' difícil de se desconstruir, visto que amalgamou uma política da identidade que tem minado o característico nomadismo das práticas e do pensamento ameríndios;

nesse contexto, o aparecimento do discurso dos conhecimento tradicionais, que está centrado nesse imaginário do direito positivo, se desdobra em efeitos que problematizam o quadro;
falar tanto [ainda que tão pouco] sobre os seus próprios conhecimentos enquanto saber-poder cobiçado pelo capitalismo mundial, a grande força da sociedade de exploração global do século vinte e um, tem proporcionado a proliferação de discursos e de práticas que reproduzem o conhecimentos ocidentais numa espécie de antropologia indígena de si mesmo;

antropologia de si mesmo pois continua visando preservar a identidade, como toda política indigenista de estado, agora aplicada a uma identidade dos conhecimentos, o que se traduziria por propriedade intelectual, preservando-se assim a identidade dessa pessoa jurídica, o conhecimento tradicional;
em suma, a sociedade indígena se torna uma empresa que tem o direito de gerir seus conhecimentos: a nova era do índio empreendedor;

isso por que muitos povos se demoram a direcionar um olhar de diferença, de produção de diferença sobre o ocidental, visto que estão entretidos com nosso regime identitário, apregoado na antropologia e outras ciências régias de estado [desconsiderando-se o jornalismo, essa forma baixa de mercado de política enunciativa];
além desses discursos que se voltam numa antropologia do mesmo ou numa antropologia de si, há as linhas de fuga daqueles que se apropriam e ressignificam a antropologia e outros conhecimentos ocidentais, operando propriamente uma antropologia indígena do homem global, o homem da mesmice ocidental;
nessa prática antropológica indígena fica difícil não resvalar para a linguagem do controle e da criação subjetiva de-codificada na socialidade ocidental por deleuze-guattari com forte inspiração numa política-psíquica [se posso assim me expressar];
isso porque essa prática antropológica [nesta experiência de pesquisa] parece trabalhar com processos de subjetivação que acionam uma diversidade de discursos políticos da diferença que por aqui aportaram junto com a revolução molecular das diferenças, a qual, como se sabe, foi cooptada pelos discursos de uma esquerda de estado;
indigenismo, ecologismo, extrativismo e até feminismo aportaram por aqui como supostos movimentos sociais de base que rapidamente se tornaram nossa 'macumba pra turista', com seus santos milagreiros e tudo mais;
passados anos e décadas de experiências comunitárias e projetos de trocas de conhecimentos, a chamada aliança dos povos da floresta voltou à cena;
agora como pretexto para um trabalho de antropologia indígena;
reprocessando e reciclando essas propostas subjetivas, articulando uma diversidade de discursos que se configuram em nossos segmentos institucionais: educacional, profissionalizante, tecnológico, ecológico, sustentável etc, os ashaninka desenvolvem uma proposta que aqui interessa especialmente pelo caráter antropológico de seu regime enunciativo, do agenciamento coletivo de enunciação proposto;
esse interesse se intensifica com a contraposição do centro de pesquisas indígena yorenka ãtame ao projeto institucionalizado de uma universidade da floresta, cujo nome já chama a atenção pela contradição de termos, pois de as práticas de subjetivação indígenas operam na chave a multiplicidade e da multiplicação subjetiva, como que se poderia integrar num projeto uni-vers-itário;
portanto, esse agenciamento coletivo de enunciação é o que nos interessa aqui mais que qualquer descrição minuciosa das práticas do centro;

o contexto em que se insere precisa ser reduzido para não se projetar ou motivar historicamente nosso problema;
estamos numa área de reservas indígenas e unidades de conservação tais como reserva extrativista e parque nacional em que o assédio das economias locais que sucedem o seringalismo, ao lado da política partidária regional, triunfou sobre um política ambientalista de estado, por vezes comprometida com os poderes locais, e um frágil movimento social que eclode e é forjado como oportunismo histórico, longe de se definir como um agente constituído em relações longínquas de solidariedade, como o são relativamente as sociedades indígenas, as quais, no mínimo, tem alguns milênios de resistência a seu favor;
a história, como ciência constituída, pode fazer dessa simples narrativa motivo para uma subdisciplina, não é o nosso caso;

o que nos interessa a partir desse rascunho é tratar de processos de subjetivação, de construção de diferenças e identidades a partir de certas forças (projetos, política local,), de certas instituições (estado, funai, universidade, prefeitura, ibama, associações), de certas práticas (pesquisa, reuniões, encontros, xamanismo) , de certo discursos (ecologismo, discurso histórico, política estadual), que vão se desdobrar em processos subjetivos e nos discursos sobre tais processos (indígenas, seringueiros/extrativistas, emergência étnica, pecuarização e desenvolvimentismo, urbanização);

29 outubro 2008

[...] imaginemos ‘o inimigo’ tal como o concebe o homem do ressentimento – e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu ‘o inimigo mau’, ‘o mau’, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, um ‘bom’ – ele mesmo!...
genealogia da moral, primeira dissertação


’[...] sejamos outra coisa que não os maus, sejamos bons! e bom é todo aquele que não ultraja, que a ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a deus a vingança, que se mantém na sombra como nós, os pacientes, humildes, justos’

genealogia da moral, primeira dissertação
se, de um lado, os kuntanáwa ressignificam conhecimentos e práticas reconhecidas como indígenas para se fazerem indígenas, para constituírem esse território subjetivo, os kampa do rio amônia ressignificam práticas de conhecimento não-indígenas que ganham sentido próprio quando integradas na concepção que fazem de si mesmos, na produção de sua subjetividade;
tem-se, portanto, aqui práticas subjetivas que vão além daquilo que dizem [ou que se diz sobre] esses indígenas sobre si ou sobre outros;
tais práticas subjetivas integram processos de subjetivação mais complexos, dada a recursividade com que esses conhecimentos reformulam e ressignificam a socialidade e a imagem do coletivo;
tais procedimentos definem condições propícias à resistência, liberam linhas de fuga diante do poder de convergência das subjetividades capitalísticas, que operam normativamente a partir da imagem perpetuada [nas instituições, no seno comum, nas leis, na publicidade, no conhecimento etc] pelos dispositivos herdados da ordem social colonizadora;

de um lado, se utilizam dispositivos próprios dos sistemas de conhecimento e subjetivação indígenas para conquistar espaços subjetivos que não se dobram simplesmente na interioridade de psicologias individuais essencializadas, mas que se desdobram de forma complexa na disputa por territórios, num interessante problema de sobreposição territorial e étnica com diversas implicações;
de outro lado, a mesma preocupação com o território, não o próprio, mas do entorno, considerado como continuidade, tal como os brancos, que são tomados nesse projeto [ambiental e político] como possíveis continuidades do processo de subjetivação [ressignificação de conhecimentos sobre gestão territorial e práticas políticas] dos próprios ashaninka do rio amônia;
também aqui a ecologia subjetiva se baseia na resistência ao processo local de laminação da sociodiversidade típica da região;
perspectivas são construídas, perspectivas não são dadas/dados;
perspectivas são relacionais, não são em si ou fazem sentido por si;
perspectivas se constroem a partir de relações de conhecimento, de contrapontos epistêmicos;

nossos interlocutores aqui quem são: os kuntanáwa em si, os kuntanáwa construídos em seus processos de subjetivação, os kuntanáwa formulados a partir da impressão em livro e análise antropológica de seu mito fundador etc;
de outro lado quem somos nós a antropologia, qual antropologia, teoria histórica-antropológica, a antropologia de assessoria que trabalha focada na garantia dos direitos sacrificando por vezes a própria teoria, a antropologia que pulveriza os sujeitos em fragmentos moleculares (devires e processos de subjetivação contra a redução identitária do controle social do estado);
que tipo de interlocução é essa, penso que essa questão corta de fora a fora a nossa problematização;
um problema talvez de como escrever antropologia, como formular as questões desse nosso contexto desconstruindo um a um os principais pressupostos que nos prendem às noções afins da identidade, as noções desse campo semântico, dessa matriz hermenêutica, desse viés político;
se a visão totalitária própria da história se dissolve nos limites do indivíduo e das histórias de vida, isso precisa ser problematizado;
penso, no entanto, que nossa proposta é superar o indivíduo e operar cortes transversais nesse material etnográfico;
ele não serve para comprovar teses ou legitimar nossas idéias [no velho estilo demonstrativo das citações];
a idéia de um outrora da mitologia ameríndia não se refere necessariamente ao nosso passado mítico, projetado por uma cultura formatada a partir de uma dinâmica temporal referenciada no passado, na evolução, o progresso, na fusão entre mito e história conformada na bíblia e em sua apropriação literal;
esse outrora, característico por essa animalidade-humanidade generalizada, refere-se antes a um tempo paralelo e virtual que eventualmente pode ser atualizado por meio dos procedimento e dispositivos de diferencialidade próprios às práticas indígenas de conhecimento;
essas práticas indígenas de conhecimento, por diversos motivos são consideradas como anti-ciência por nossa concepção de conhecimento e de socialidade;
cabe a nós, etnólogos do pensamento [e das práticas de aprendizagem] indígena formular estratégias, dar chance à emergência de [tais] práticas de diferenciação que desloquem as referências de nossas práticas de redução aos denominadores comuns;
isso só será possível a parir de uma concepção ou imaginação de possíveis antropologias indígenas, de suas possíveis teorias da relação e da diferença enquanto produtora de socialidade;

não se trata a mitologia indígena como um processo histórico ou evolutivo, seu ponto de virada, a passagem para o atual ou o senso comum ou a normalidade é justamente um mero pretexto epistêmico para se situar a virtualidade do que está consensuado;
esse virtual está mais para um mais real ou um quase real do que para um era uma vez passado;
a noção de com a mitologia ameríndia se projeta numa concepção de tempo e realidade, constrói com o mito e seus rituais um impressão de realidade, uma ontologia e uma epistemologia é bem diferente da forma com que nos apropriamos da mitologia para nosso trabalho de unificação da realidade seja em um deus único ou numa natureza que sustentaria uma ciência una e um estado idem;
duas concepções ou duas apropriações da mitologia, dois mundos e dois sistemas de conhecimento;

para a elaboração de uma antropologia indígena que permita trabalhar um conhecimento indígena a ser colocado em relação ao nosso, contra o nosso, que problematize o nosso conhecimento, será importante um questionamento dessas diversas concepções do mito que ultrapassem o dualismo provisório colocando em questão pressupostos e questões tomadas como ponto pacífico;
em lugar de colocar questões prontas que esperamos que eles respondam como num questionário de múltipla escolha, precisamos ser capazes de criar condições não só para que eles escapem aos automatismos mentais e pressupostos com que inevitavelmente contaminamos seu olhar, sua imaginação e sua apropriação da escola com nosso moralismo absolutista do pensamento, com nosso joguinho de poder do certo/errado na mão do professor;
ou mesmo para que eles nos ajudem a nos livrar de nossos próprios automatismos, criados para nos controlarmos uns aos outros;
mas que se possa criar atividades em que se liberem fragmentos de uma escola estranha à sua auto-imagem, fragmentos de diferencialidade, ações ou atos de diferenciação;
não se trata de responder a questões que trazemos prontas de uma política de estado e de pensamentos condicionados e conceitos papagaiados;
nosso hábito mental, nosso condicionamento imaginativo que pressupõe que as questões são as mesmas;
trata-se de liberar questões que não queremos ouvir, que não estamos preparados para ouvir, que nossos ouvidos ainda não podem perceber;
questões problemáticas que nos exijam a transformação de nossa abordagem e não que justamente sirvam para justificar nossos procedimentos;

não se trata de buscar reduzir seus termos aos nossos termos e fingir que se pode faze-los ouvir sem modificar [em vez disso, aprofundando mais ainda] nossos procedimentos;

pode ser interessante voltar ou partir de questões tais como o que é uma escola, para que serve uma escola etc;
procurar fazer o mesmo exercício com todos os pressupostos que forem se sucedendo e que possamos perceber;
duvido, por outro lado que o conceito de perspectivismo possa vir a explicar o pensamento amazônico em seu todo: supondo que isso fosse possível, por que deveria?
mas ele definitivamente tocou em uma dimensão crucial desse pensamento; crucial porque envolve a relação estratégica – prática e teórica – do pensamento indígena com o nosso pensamento;
pois o perspectivismo é a antropologia indígena, entenda-se, a antropologia feita do ponto de vista indígena (ela consiste no ponto de vista indígena sobre a noção de ponto de vista);
esta antropologia começa por partir de um conceito inteiramente diferente do que seja o 'humano';
evc, encontros
com o rápido amadurecimento da antropologia nas últimas décadas, quando essa conhece um movimento auto-reflexivo e um sem número de rizomas que desdenham e atravessam os limites de outras disciplinas [não fazendo caso da velha concepção segundo a qual a segurança de uma disciplina era garantida pela vigilância e domínio de um objeto, ou seja, pelo cercamento empreendido com o discurso competente e suas instituições], evidencia-se a fragilidade do discurso identitário que garantia os direitos dessas populações em troca da institucionalização de um discurso ambientalista em práticas de estado reacionárias, voltadas ao seu tradicional papel de polícia mais que à promoção da autonomia e emancipação via políticas públicas;
assim, o discurso e as práticas políticas desenvolvidas pelos extrativistas em parceria com instituições do estado conduziram ao desmantelamento da dinâmica social garantida pela exploração da borracha para o mercado internacional;
a emergência desse movimento social se dá paralela à constituição de uma ordem jurídica e executiva voltada à conciliar um política ambientalista no paraíso da exploração e da fome capitalista;
e se deu a instituição de um poder, não sem seus heróis históricos que deveriam ser capitalizados na opinião pública por aqueles que ficavam para herdar e administrar o legado político pelos mártires;
mas, se a perspectiva é algo que constitui o sujeito, então ela só pode aparecer como tal aos olhos de outrem; porque um ponto de vista é pura diferença; então, é como você sugeriu, de fato: é necessário ser pensado (desejado, imaginado, fabricado) pelo outro para que a perspectiva apareça como tal, isto é, como uma perspectiva; o sujeito não é aquele que se pensa (como sujeito) na ausência de outrem; ele é aquele que é pensado (por outrem, e perante este) como sujeito;
evc, encontros
o caso é que o perspectivismo depende de um dualismo fundamental;
ignora estrategicamente e esquematicamente a diversidade de imagens que conflitam no pensamento ocidental [isto, para sabotá-lo];
ainda que seja essa diversidade de imagens do pensamento, pressuposta num pensamento como o de deleuze, que torna possível a contra-ontologia perspectivista;
é esse conflito de relações que strathern vai enfrentar, ainda com a abordagem maussiana das categorias nativas [viveiros de castro trata de pensamento, epistemologia, ontologia] em relação às nossas categorias;
de um lado ela ganha em multiplicar a 'identidade' das categorias, vislumbrar outras dimensões numa dinâmica relacional;
as categorias deixam de ser imaginadas substantivamente, de forma extensiva, para ganhar uma imagem conceitual intensiva, um corpo-sem-órgãos, um campo de pura intensidade atualizado nas relações;
focar a relação dessas categorias em lugar de cristalizá-las, libera uma diversidade de 'sentidos' ou apropriações políticas para uma mesma categorias;
os dualismos provisórios servem para por em relação, abrir tais zonas de 'sentido' ou apropriações políticas para as categorias, dos conceitos, dos enunciados;

são muitas as imagens do pensamento, urge nos apropriarmos delas estrategicamente, em lugar de se deixar capturar por imagens ou miragens do pensamento 'maiores' ou 'menores';
as imagens do pensamento, assim como seus conceitos e sua dinâmica, estão em relação de pressuposição recíproca com projetos políticos determinados, posicionados por sua vez em relação a uma rede complexa [ou nem tanto] de interesses;
trata-se fundamentalmente de dois projeto políticos;
um, em histórica vantagem, consiste no projeto 'maior', implementado pelas elites colonizadoras na constituição do liberalismo republicano;
o outro, resulta basicamente da resistência a esse modelo, resistência minoritária que já garantiu por vezes a sobrevivência dos povos indígenas como diferença e voz dissonante no coro dos contentes da pátria;
a diversidade de estratégias aqui se dá tanto pela tradição colonial de concentração do poder e de submissão da maioria, como pela própria natureza do estado que, seja democrático como autoritário, serve para garantir a conservação da ordem e das leis que a conservam;
o que se vê então é o aparato democrático com seus representantes e suas leis sendo grosseiramente utilizado para defender o interesses daqueles que permitiram que ele se constituísse;
esse aparato não está investido de força pública para questionar essa ordem, ele vem sim restabelecê-la reformada e palatável, sustentando a desigualdade gritante nas leis da democracia neoliberal;
valores democráticos e participativos são disseminados com a intenção de promover um liberalismo onipotente, que perpetue a ordem, que não possibilite ou permita rupturas revolucionárias, ou revoltando-se mesmo contra justiças sociais institucionalizadas;


o que pode ser repensado é o estatuto da noção de criação, não para dizer que não é mais possível criação, mas para redefini-lo de uma maneira criativa, digamos assim; temos que criar um outro conceito de criação;
trabalhamos atualmente com um conceito, por um lado, velho como o cristianismo (criação bíblica) e, por outro lado, com o do romantismo, a criação como manifestação, emanação de uma sensibilidade sui generis do indivíduo privilegiado; esses dois modos de conceber a criação não dão mais conta do que está se processando nesse mundo atual;
evc: encontros
a preguiça e o roubo são nossas transgressões por excelência, as quais projetamos nos indígenas por desobedecerem ou não se submeterem aos nossos valores, nossas leis, nosso deus;
o preço que paguei pela construção de identidades em meus cursos para jovens agroflorestais extrativistas, quando tinha que operar com temáticas como movimentos sociais no acre e ética no trabalho do manejo, paguei conscientemente, tendo-o feito para trabalhar uma idéia de conhecimento que estranhasse uma concepção hegemônica de conhecimento, isto é, inserindo-o na mesma dinâmica histórica e social, apropriando-o como prática política de resistência a um conhecimento de manejo trazido de fora sem consideração e interação com os saberes locais;
contra o autoritarismo da ciência régia, representado na assistência prestada pelo estado, definimos princípios comunicacionais articulados a práticas de pesquisa que proporcionassem o reconhecimento de saberes e mestres locais;
saberes da floresta foi nomeada essa perspectiva;
uma identidade provisória com um fim definido de produzir heterogeneidade;

23 outubro 2008



a disputa por perspectivas se contrapõem à idéia de uma interlocução ou parceria;
contrapõe-se à concepção totalitária o regime histórico [legitimidade da ciência régia: verdades de estado, segurança dos regimes de verdade afirmativos no lugar do questionamento dos pressupostos e da desconstrução das verdades estabelecidas] uma tensão que considera os usos que os interlocutores fazem um do outro, mas, mais importante, a interpenetração dessas perspectivas;
isso se combina à noção de perspectiva conforme proposta acima;

isso se constata mais evidentemente na forma como os kuntanáwa se apropriam do discurso antropológico em função de seus direitos e como se adiantam à antropologia e ao seu reconhecimento organizando-se 'como povo' a partir e em função de suas demandas e mesmo criando outras demandas próprias, que convergem para seu processo próprio de diferenciação em relação aos 'brancos' da reserva e sua política ambiental interna;
pode aqui ser desenvolvido uma problematização da disputa por perspectivas a partir da combinação que fazem os kuntanáwa de conhecimentos tradicionais e conhecimento ocidentais (especialmente a antropologia, mas articulada com política de estado, políticas públicas, legislação, legislação ambiental, movimento sociais etc) na formulação de seus processos subjetivos;

atente-se para que o vínculo com o regime de conhecimentos e políticas ocidentais faz com que se evidencie uma identidade kuntanáwa, mais que esse processo dinâmico que aqui se busca captar;
isso se deve aos efeitos visados pelos indígenas com seus processos de subjetivação;

em relação aos ashaninka, as pontes entre mundo indígena e mundo ocidental são uma constante nas práticas subjetivas de seus projetos comunitários das últimas décadas ou fase pós-demarcação territorial;
[são evidenciados nos diversos recursos de subjetivação elaborados por ele nas regiões de fronteira étnica;]
seus diálogos e sua ressignificação dos conhecimentos ocidentais vão ganhando complexidade com suas experiência de pesquisa até a concretização do projeto yorenka ãtame;

em termos de perspectiva, o projeto yorenka ãtame consiste na construção de uma plataforma, de um agenciamento coletivo de enunciação próprio ao conhecimento nativo, à apropriação nativa de conhecimentos;
tal agenciamento processual afronta, no sentido de uma antropologia simétrica, especificamente a antropologia;
o que os índios estão fazendo aqui é produzir conhecimento como forma de alternativa ao sistema de conhecimentos ocidental, representado pela escola e pela universidade;
esse agenciamento escapa aos nossos regimes enunciativos antropológicos e coloca problemas interessantes diante do projeto frustrado de uma universidade da floresta que se define efetivamente como uma graduação para os professores de escolas indígenas do estado;

antes de qualquer coisa, o que fazem os ashaninka ao propor processos de subjetivação com indígenas e não-indígenas, é operar num campo que definimos como antropologia;
em lugar de assessoria antropológica para o desenvolvimento de seus projetos, os indígenas ocupam um campo aberto e inexplorado pelos próprios antropólogos;
concebem uma forma de praticar antropologia e criam, a partir daí, um campo de atuação e, porque não, um mercado [mercado do empreendedorismo social];

nesse campo de produção de conhecimento e proliferação de processos de subjetivação, a antropologia já não pode entrar desprevenida, de posse de suas velhas categorias, simples, unilaterais, monistas etc;

ainda que continuemos a pensar na chave da interlocução pacífica entre sistemas de conhecimento, entre processos de pesquisa, é inevitável considerar que se tratam de práticas subjetivas e projetos de coletividade/socialidades que se relacionam pela diferença, pelo contraponto dos regimes sociais que pressupõem esses sistemas de conhecimento;

atente-se para o fato de que o conflito próprio a essa relação de perspectivas e seus respectivos sistemas de conhecimento, não se dá na forma simples de uma disputa ou concorrência por resultados ou mercados;
o conflito todo, assim como se constituiu de uma problemática relação entre povos e sistemas de conhecimento colonizadores e colonizados [pra começar], deve se desdobrar na forma de relações, de composições, de parcerias etc sempre variando entre conjunções e disjunções conforme os interesses e os momentos/contextos;

20 outubro 2008

falar em diversidade socioambiental não é fazer uma constatação, mas um chamado à luta; não se trata de celebrar ou lamentar uma diversidade passada, residualmente mantida ou irrecuperavelmente perdida – uma diferença diferenciada, estática, sedimentada em identidades separadas e prontas para consumo;
sabemos como a diversidade socioambiental, tomada como mera variedade no mundo, pode ser usada para substituir as verdadeiras diferenças por diferenças factícias, por distinções narcisistas que repetem ao infinito a morna identidade dos consumidores, tanto mais parecidos entre si quanto mais diferentes se imaginam;
mas a bandeira da diversidade real aponta para o futuro, para uma diferença diferenciante, um devir onde não é apenas o plural [a variedade sob o comando de uma unidade superior], mas o múltiplo [a variação complexa que não se deixa totalizar por uma transcendência] que está em jogo;
a diversidade socioambiental é o que se quer produzir, promover, favorecer; não é uma questão de preservação, mas de perseverança; não é um problema de controle tecnológico, mas de auto-determinação política;
evc, encontros
negocio minha beleza
meu apelo
tua libido

administro minha dor
a frustração
do muito
pouco

teus olhos
sobre a minha infância
me despertam
para a noite

prazer, delírio
desejo
ímpeto
atravesso o inferno
morro em paz

16 outubro 2008

quando a questão é a questão

a impressão que se tem é que essas noções de identidade, como as que derivam das abordagens das 'relações raciais' ou das 'relações interétnicas', agem como uma máquina de repressão contra qualquer outra coisa que se deseje pensar; é como se todos soubessem a resposta de antemão; seria preciso, antes de mais nada, saber o que dizer com a palavra identidade; ou melhor ainda, o que se pretende não dizer, ou o que não se deseja que se diga, ao empregar essa noção;
evc:2008
que se imagine o poder d/e estado como esse ordenamento das perspectivas, como essa unificação ou convergência do uni-verso, essa guerra de pontos de vista, esse embate de interpretações [remetendo a nietzsche];
a mídia então deixa de ser imaginada como instrumento do estado para se definir aí como o próprio estado, como o meio em que os discursos de estado se constituem enquanto tal, investidos de força política ao aterrorizar o social com sua onipotência;
nem por isso quero dizer que a única forma da mídia seja essa liberal que historicamente se configurou no brasil como extensão das palavras de ordem da ditadura;

e aí, são tantos os sentidos da liberdade quantos são os da verdade;

se, de um lado, a mídia liberal defende a diversidade do mercado, desprestigiando qualquer outra imprensa não-liberal, por outro lado, qualquer defesa do liberalismo converge [de qualquer forma] para o totalitarismo capitalista travestido de fraternidade global e liberdade universal;
estranha apropriação que se fez da noção de liberdade, por um lado, liberalidade, e de censura de outro, quando se deduz como censura o controle social da mídia, a força dos movimentos sociais ou setores públicos de comunicação mass-mídia;
de qualquer forma, por um lado se propõe um diversidade que conduz à unidade massificada do consumo controlado, de outro se ataca uma convergência que resulta ela mesma em diversificação de perspectivas e multiplicação de possíveis;

enquanto isso, o monopólio e as concessões são obliterados e se chama a atenção para o caráter economicamente saudável da concorrência e da propaganda comercial;
é assim que toda pseudo-diversidade afirmada numa imprensa de mercado, ou seja, propaganda, converge para o controle de informações do império 'democrático' da 'liberdade';
a disputa consiste então numa concorrência pelo embuste, pelo autoritarismo que melhor se maquia de 'democracia';
a propaganda do liberalismo fala então em nome de uma liberdade que converge igualmente para uma unidade, uma ordem;
o que ocorre é que aqui o serviço é tão bem feito que as traves ficam por trás dos olhos e não se enxerga aquela censura que bradam os publicitários contra regulamentação de publicidades para drogas lícitas;
o problema não é bem a censura ou o autoritarismo, mas que ele seja praticado de forma que se perceba que ele exista;
o resultado é toda uma indústria do embuste que precisa ocultar o autoritarismo, a falsa democracia, a verdadeira censura dos movimentos sociais em favor de um mercado cada vez mais competitivo, leia-se nefasto, a violência do estado herdada do espírito militar da ditadura, a formatação subjetiva da renúncia massiva à liberdade etc;
isso para que se sustente uma idéia de liberdade abstrata, para que se sustente um autoritarismo mudo, em que não se encontra meios ou expressão mesmo sendo de uma violência onipresente;
isso para que se mantenha uma unidade que consiste na mesma unidade que a colônia precisava manter para convencer [e converter] os nativos;
por todos os lados, o estado produz discursos que visam reforçar essa unidade, capturando para tanto toda a diversidade de discursos, inclusive e principalmente, aqueles produzidos contra ele;

assim, da mesma forma com que liberdade se reduz a liberalidade, verdade se define como controle de informações, processo que encontra um largo rastro nas tradições do que entendemos ser o pensamento ocidental;

13 outubro 2008

'o conceito de gilles deleuze e félix guattari proposto em mil platôs: aparelho de captura; o que estamos discutindo é isso; o primeiro aparelho de captura está distribuído no universo; é o próprio universo dentro do qual nos encontramos; ou antes, é a transformação por captura do multiverso em universo; podemos imaginar o estado como o inventor do universo: a monopolização da personitude ou agentividade distribuída no cosmos, sua concentração num só lugar;'
evc, encontros

oim iporã ma
tanto, ou mais, quanto as maneiras com que afetávamos nossos interlocutores [mesmo porque eles estavam na cidade de são paulo, portanto, não poderíamos ter uma postura de monopólio da sua alteridade] como efeito e resultado de nossa proposta de participatividades nas experiências e projetos, na construção de conhecimentos e na busca por caminhos diferenciais na atualização da tradição de cantos, de ritos, de festas, de danças, de rezas, de nominações...
interessava-me, sobretudo, as diversas e singulares maneiras com que cada um de nós estávamos sendo afetados, cada qual à sua maneira, com seus interesses, a partir de seus conhecimentos;
- se o perspectivismo é mesmo 'contra o estado', seria a 'antropologia perspectivista' aquela que se deixa positivamente afetar pelo pensamento dos povos por ela estudados – uma antropologia potencialmente anarquista...
- gosto muito desse conceito de hakim bey, 'anarquia ontológica'; o anarquismo político clássico seria apenas um modo de manifestação dessa idéias mais geral de anarquia ontológica, e não necessariamente o mais interessante, hoje; porque os dispositivos de conjuração-antecipação do estado, dentro do sistema capitalista, não podem se confundir com uma pregação política a favor da abolição do estado, idéia que o libertarianismo de direita americano, uma caricatura grotesca do anarquismo, também apóia; a anarquia ontológica é uma idéia mais ampla: a ausência de princípio, de transcendência, de comando, de unidade; o princípio do não-princípio; uma ontologia plana; o mundo como multiplicidade e perspectiva;

evc, encontros




quanto mais nos afastamos da ditadura, ou melhor, quanto mais se arraiga o projeto liberal da ditadura militar, projeto que ditou a posterior pseudo-democratização, mais difícil fica sustentar a imagem eugênica que o fascismo militar herdou de seus congêneres;
esse fascismo que nos governou, não sem o consentimento e apoio de grande parte dos brasileiros, soube trabalhar nossas raízes coloniais e escravistas, acionando nossos preconceitos e definindo uma imagem de nós mesmos: subjetiva, econômica, política, social etc;

10 outubro 2008


emergentes da floresta
é importante que se compreenda que na perspectiva aqui adotada não se trata de tematizar os índios emergentes no processo histórico que se imporia a eles, ou mesmo neles como agentes no interior de qualquer processo histórico transcendente [ou imanentizado nos livros e em nosso tradicional historicismo];
parece-nos que o que se evidencia seria antes uma necessidade de desconstruir uma identidade pressuposta na/da antropologia, que seria a sua definição como ciência das identidades;
por isso nosso desafio de tomar o tema dos emergentes para destrancendentalizar não a disciplina, mas nosso olhar sobre ela;
dessa forma, tomamos não os emergentes como o nosso objeto de estudo [até porque seria mais o caso de o tema ter nos escolhido ou se imposto por conta de experiências recursivas], como nossa identidade antropológica ou nosso território etnológico, até por que nossas interposições territoriais não são mutuamente excludentes;
o que nos interessa sobremaneira no problema será propor uma perspectiva do tipo: ‘na pós-humanidade, todo mundo é emergente exceto quem não é’;
para tanto, nossa intenção é definir o processo de emergência ou revitalização étnica como um corpo-sem-órgãos da disciplina, vidrada na idéia de uma identidade por trás de toda cultura ou de todo cultural, para dinamizar o velho e surrado conceito;
não se trata de qualquer novidade nos debates contemporâneos da disciplina;
trata-se assim de abordar o problema dos emergentes a partir do princípio da relacionalidade, em lugar do viés dos processos de conscientização étnica ou da auto-consciência cultural;
para além da identidade, debruçar-se sobre processos relacionais poderá esclarecer uma intensa retomada de parcerias entre povos indígenas e não-indígenas daqui do alto juruá;
assim, mais pela relacionalidade, isto é, pelos devires-emergentes ou devires-diferenciais da economia subjetiva das identidades, do que pelos devires-identitários, é que o nosso pensamento poderá lidar com as propostas e as práticas de se estender a subjetividade indígena ou a ecologia subjetiva da floresta ao território dos não-índios, ao entorno;
fala-se portanto aqui em devir-emergente, o que se poderia chamar de diferenciação, como contraponto ao processo antropológico e estatal de produção de identidades;
produzir tais devires ou tais processos de subjetivação possibilita a apropriação de conceitos que lidam com a dinâmica diferencial dos processos pós-identitários;

a realidade vivida no alto juruá nos exige problematizar, ou mesmo sabotar, a visão convencional da/da disciplina, a qual, por sua vez, está baseada na imagem convencional [e/ou convencionada] do pensamento de tradição ocidental;
trata-se, em suma, de tomar a emergência como princípio de compreensão;
trata-se, então, de ir buscar nas práticas de subjetivação acionadas por esses agentes, nossos interlocutores, princípios de relacionalidade que marcam tantos outros usos do cultural;
portanto, a cultura não como um fenômeno estático e identitário, mas como processo dinâmico e relacional;
no mais, essa perspectiva proporciona uma linha de fuga em relação aos simplismos que reduzem tais práticas a identidades, sejam majoritárias ou minoritárias, isto é, à falsa diferença das minorias idealizadas para usos de aparelhos de estado e seus legalismos afins;

dessa forma, podemos nos aproximar dos efeitos e impactos da antropologia e de outros agentes de estado seja na função de imposição de ordens [legal, histórica, científica etc] ou mesmo quando já apropriados, adaptados, colocados em uso contra o próprio aparato de estado;
conceitos e processos tais como: identidade, diferença, direitos, território, gestão e tantos outros que propõem novas formas da relação com o não-indígena, com o ocidental, com o estado, com a sociedade envolvente e até ou principalmente consigo próprio;
daí, chegar às nossas práticas de valorização e validação de processos de subjetivação, os quais abrem linhas de fuga aos valores determinados pela sociedade envolvente, os quais geralmente se querem monolítico e absolutos;
e então, lidar com processos relacionais mais complexos, me lugar de reproduzir universos estanques na forma de identidades;

observar e imaginar então, as formas de apropriação da antropologia pelos nativos [ou povos da floresta] [sejam as antropologias legalistas das identificações e reconhecimentos, sejam antropologias que as contradigam] nos fornecerá linhas de fuga para os impasses da relação entre os conhecimentos antropológicos e as teorias nativos, resultados da imagem de uma antropologia apegada à ciência régia;
aí, interessará problematizar a apropriação das teorias nativas a partir do desdobramento em experiências de apropriação da própria antropologia na, digamos, antropologia nativa;
portanto, já não podemos nos imaginar no horizonte de uma antropologia unilateral;
de conceitos nativos adaptados e redimensionados em nosso pensamento e nossa disciplina, passamos a lidar com uma guerra de perspectivas, com uma disputa ‘xamãnica’ pelos poderes de decisão atribuídos à antropologia em suas funções de aparelho de estado ou parecerista jurídica;

enquanto isso, cabe lidar com as crises existenciais da disciplina enquanto mediadora de novos contratos com a sociedade majoritária;
resgatou-se os indígenas de subproduto da periferia do capitalismo ocidental para conceder-lhes o direito ao consumo;
passadas poucas décadas de redemocratização já se pode constatar os limites do estado pós-ditadura, manobrado pelos interesses dos mercados internacionais, e, com esse balanço, identificar as novas linhas de fuga apontadas pelos indígenas no manuseio das tais ferramentas disponibilizadas;
não se trata de seguir reproduzindo a retórica artificial dos direitos como forma de solução aos assédios do capitalismo;


no contexto em que nos encontramos, contexto de sobreposição de territórios, o debate e as propostas em torno da gestão territorial e da gestão dos recursos naturais surgem como justificativa central no discurso da emergência étnica kuntanawa;
por outro lado, o trabalho desenvolvido pelo centro yorenka ãtame, tem por objetivo estender as experiências de manejo e gestão de recursos naturais da aldeia kampa do rio amônea para outra terras indígenas e às comunidades não-indígenas da reserva extrativista do alto juruá, do parque nacional da serra do divisor e do município de marechal taumaturgo;
ambas experiências, pode-se dizer, ambas interposições subjetivas ultrapassam a relações entre territórios ‘étnicos’ para estabelecerem interposições territoriais múltiplas;
nosso interesse tem convergido para a problemática da ecologia subjetiva, como temos chamado a resistência ao modelo regional de subjetivação capitalística, voltadas ao fetiche da pecuarização e ao culto à urbanidade;
esse modelo de desenvolvimento não difere do implementado desde a ditadura ao neoliberalismo que dela descende nos planos da federação de aceleração do crescimento e amazônia sustentável, descendentes diretos de programas como o iirsa, iniciativa para la integracion de la infraestructura regional suramericana, programas multilaterais de ‘estruturação’ da américa latina para atração de investimentos dos partidários da organização mundial do comércio;


à ecologia subjetiva caberá identificar o padrão valorativo local e propiciar linhas de fuga às suas convergências;
se, de um lado, se tem a imagem unidirecional do homem intervindo na natureza, de outra perspectiva, teremos subjetividades afetadas pela biodiversidade, processos de subjetivação que redefinem em novos contextos [urbanos, não-indígenas, neo-xamãnicos, de juventude etc] os valores atribuídos à biodiversidade na mística indígena;
trata-se de dois processos de subjetivação que, inevitavelmente, se interpõem e, por vezes, contrapõem-se para se definir;
isso porque a dinâmica da subjetivação capitalística opera na chave da norma, enquanto a subjetivação ecológica consiste na multiplicidade que se define contra a unidade, ou melhor, investe na multiplicidade imanente;