30 setembro 2009





22 setembro 2009

marubo pé na estrada





se você tiver medo você nunca vai aprender
nani

aprendendo com os índios 1

a gente estava na sala de aula;
estávamos debatendo a pesquisa e sua importância na escola e na concepção de uma educação propriamente indígena;
os professores da velha guarda, que tinham levantaram a bandeira da pesquisa, do professor-pesquisador, o professor-autor, escritor e ilustrador de seus próprios livros e até do professor videasta, aquele que não só se utiliza de material audiovisual, como produz o seu material audiovisual;
esses professores defendiam com convicção e um discurso afinado as vantagens e benefícios da prática de pesquisa, seja para o educador, seja para o educando;
com isso, as restrições próprias do conhecimento indígena iam sendo afrouxadas e seu conhecido devir-segredo, timidamente abrindo brechas para explorações;
daí, há uma linha previsível a ser traçada: a da relação entre saber escolar e xamanismo;
a pesquisa, com seu pressuposto do saber aberto, democrático, liberal e comercializável, propõe uma abordagem do xamanismo que desconsidere seu constitutivo conjunto de restrições, o devir-segredo que define essa prática terapêutica, artística e mágica;
ainda que isso se faça no ambiente de formação de professores com um espírito iluminista e um discurso desmistificador, em nome da “sobrevivência” de conhecimentos que podem ser perdidos se não forem registrados (mas o conhecimento reside na coisa, no sabido ou na prática, na relação de aprendizagem, no saber), esse assunto é sempre tratado a partir dessa perspectiva do devir-segredo, isto é, com olhos apreensivos, cabeças meneantes, dúvidas e incertezas;
um bom exemplo consiste no registro de cantos;
os cantos são essenciais à qualquer prática xamãnica na amazônia;
portanto, seu aprendizado está igualmente envolto em todo o complexo devir-segredo;
no xamanismo, o canto não é entendido de uma perspectiva contemplativa;
um canto consiste numa prática;
enquanto se canta, realizam-se coisas, práticas, gestos, ações;
tomar o canto como um objeto que possa ser coletado, colocado dentro de um arquivo e catalogado não só descaracterizaria o saber intrínseco a essa instituição indígena, argumento do cientista-índio, como pode ser 'perigoso', visto que o complexo devir-segredo, mesmo que de forma cifrada, justifica suas restrições, argumento do índio-cientista;





ao lado do devir-segredo, ou melhor, intrinsecamente ligado a ele, essa mudança de natureza do saber, no caso, o canto, coloca um outro problema interessante aqui;
de uma sociedade em que ele funciona como instituição, sendo utilizado pelas pessoas em seu cotidiano para práticas como cura, proteção de práticas artesanais, limpeza e proteção de crianças, liberação de restrições alimentares entre outras, para outra sociedade, em que a música mágica, a música como prática social, se tornou uma prática marginal, realizada em espaços rituais, em momentos determinados, tendo dado lugar, numa sociedade capitalista, a uma concepção de música como entretenimento e indústria, isto é, a música e seus praticantes como mercadoria;

os pajés, como bons viajantes, conhecem essas diferenças culturais e na arte da troca consiste seu comércio;
portanto, quando acontece de você, pesquisador, solicitar a um ancião ou uma anciã indígena que execute um canto, e ele propõe uma troca, um comércio com o saber desejado, necessitado, valorizado pela pesquisa, cruzamos novamente aquele ponto em que passamos;
terá mudado de natureza o canto?
terá o canto deixado o sistema de práticas e valores indígenas para trafegar por outro universo, outras máquinas, outras utilidades, sendo agora material de pesquisa acadêmica, objeto antropológico, prática terapêutica profissional/comercial, e mesmo entretenimento nova era?
talvez, a simples questão de se cobrar pelas informações envolva desdobramentos que a tornem uma questão mais complexa;
e quando se trata do ancião indígena cobrar não do branco, antropólogo, estrangeiro, mas do próprio professor indígena, da escola, da comunidade;
como entender que uma prática que já encontra seu valor estabelecido no comércio e na economia tradicional possa ser revalorada, sem que se modifique toda essa economia de saberes;
a escola aqui é a instituição responsável por inventar ou instituir o saber-mercadoria quando introduz na comunidade a figura do professor (valorizado pelos conhecimentos 'ocidentais' da escrita, da matemática), do salário, da merenda, do aluno (contabilizado pelo mec como aluno e como indígena);
tudo normal: a escola é o mundo do branco, no que possa ter de útil aos indígenas para se 'defenderem' dele;
no entanto, passa o tempo e a escola indígena ganha 'identidade intercultural';
trata-se do 'respeito à diversidade', projeto de modernização democrática instituído como política pública pelo estado visando valorizar os passivos culturais que nossa economia desprezou por tanto tempo;
a escola indígena ganha identidade inicialmente com a noção de língua indígena que ela recria a partir da noção criada pelos lingüistas acadêmicos, a qual, por sua vez, é uma recriação da noção de língua indígena criada pelos lingüistas protestantes, noção esta também recriada a partir das práticas lingüísticas católicas;
aberto o espaço para a alfabetização na língua materna, símbolo ou imagem publicitária de uma escola intercultural num país pluriétnico, o próximo passo será indigenizar 'as outras áreas' do conhecimento;
daí, pode-se entrar por disciplinas como a história, a geografia, as ciências etc todas sendo recriadas e recriando os saberes indígenas, saberes tradicionais;
com isso, surge a figura do professor-pesquisador, do professor autor de material didático para escolas indígenas;
esse novo pesquisador vai munir-se dos instrumentos de pesquisa que nós conhecemos na academia: caneta e papel, gravadores, tabelas, objetividade, espírito explicativo etc;
com a virada proposta pelo professor-pesquisador, antes valorizado exclusivamente por seus conhecimentos escolares, os saberes dos pajés, o conhecimento nativo, dos mais velhos, ganham uma nova luz, passam a ser vistos de uma outra perspectiva, a ter outro valor;
essa noção de valor é aqui uma noção capital;
não sei se é nietzsche, deleuze ou viveiros de castro que fazem graça com a polissemia do termo;
valores são tanto os princípios como os preços atribuídos às coisas e às pessoas;
valores consistem numa dimensão fundamental daquela massa amorfa que entendemos como cultura, responsáveis pela máxima do relativismo levistraussiano: 'não é exclusividade nossa, todas as culturas são etnocêntricas';
enfim, valores...




é certo que o pajé está sentado em seu banquinho vendo todas essas mudanças;
um certo dia, ao seu lado, no mesmo banquinho por que passaram tantos antropólogos em busca de informações sobre a via do índio etc, senta-se o professor, agora professor-pesquisador, e começa a lhe explicar pra que lado sopram os novos ventos da educação indígena;
como o processo de afirmação étnica é anterior à própria redemocratização que inventou a tal diversidade na escola, o velho entende que será necessário que se estabeleça, paralela à economia tradicional do saber, uma economia do saber tradicional;
com isso, o velho propõe um reajuste no valor de seu saber;
o professor, que sempre comercializou seu conhecimento, que sempre usufruiu dos conhecimentos tradicionais no âmbito economia tradicional, passa dificuldade, não entende e o mal estar o leva a julgar com tom acusatório que o velho pretende cobrar pelo conhecimento que é de todos, evocando inclusive as gerações vindouras;
o que o professor pode não entender é que o velho pode ter uma noção mais clara do contraste entre esses mundos, esses valores, essas economia, muitas vezes por te-los atravessado numa perspectiva distinta da desse profissional que comercializa seu saber na sua comunidade;
ajeitando a cangalha...


até o boa viagem...





21 setembro 2009


O Cavaleiro e os Moinhos

Composição: João Bosco & Aldir Blanc

Acreditar
Na existência dourada do sol
mesmo que em plena boca
nos bata o açoite contínuo da noite.
Arrebentar
a corrente que envolve o amanhã,
despertar as espadas,
varrer as esfinges das encruzilhadas.
Todo esse tempo
foi igual a dormir num navio:
sem fazer movimento,
mas tecendo o fio da água e do vento.
Eu, baderneiro,
me tornei cavaleiro,
malandramente,
pelos caminhos.
Meu companheiro
tá armado até os dentes:
já não há mais moinhos
como os de antigamente.