04 janeiro 2012

espaço da floresta é o espaço liso, campo do nomadismo;
estriar a floresta;
a floresta se constitui de buracos negros, zonas, passagens secretas;
tornar-se imperceptível, devir-imperceptível;
rastros, invisibilidade, silêncio, saber fazer fogo, saber livrar-se dos restos, do lixo é princípio de sobrevivência no espaço liso;
seguir a dinâmica desse espaço, interagir com o liso;

o espaço da monocultura é homogêneo;
o espaço liso não é o espaço homogêneo;
o espaço liso estaria associado a um espaço heterogêneo;

na floresta, precisamos conhecer o espaço e suas divisões, aberturas, dimensões;
ao passarmos debaixo de determinado cipó, podemos nos perder;
são comuns as histórias de acontecimentos extra cotidianos na mata, geralmente associados à ruptura de códigos ou leis da mata, que fazem com que seus protagonistas fiquem perdidos, às vezes dias, em caminhos conhecidos, que percorrem diariamente;

ao penetrar no universo mítico dos povos indígenas, abundam experiências de espaços heterogêneos;
em grande dos mitos, a performance narrativa consiste justamente em encontrar "o caminho de volta pra casa";
muitas das transações que se atravessa na narrativa mítica, consistem justamente em adquirir pistas, aliados, conhcimentos que possibilitem a passagem de volta;


um dos mais elaborados regimes de espacialidade é aquele de uma heterogeneidade vertical, uma valoração de acordo com a altura;
essa valoração ou heterogeneidade do espaço é imaginada em relação aos níveis de altura;
esse eixo que pode se relacionar com o sol e o movimento das plantas, assim como com os animais que se movem, que mobilizam fluxos coletivos ou individuais/solitários, mas também com os espíritos e sua complexa geografia;

o canto/poema traduzido por pedro cesarino

sou o primeiro sou mesmo como o açaí-espírito acima das nuvens rasgando o céu assim sempre vivi minha garganta desenhada as folhas da árvore-espírito
as folhas farfalha
estou assim contando
a multidão de espíritos-pássaro
a multidão movimento
estou mesmo cantando
e pelo lábio exalo
ventania de tabaco
assim eu digo
sou o primeiro
com sangue de fresca folha
a frente do peito
foi com desenhos traçada
pelos losangos-espírito
pelos losangos aprendi
com desenhos marcado
o espírito foi criado
sou mesmo o primeiro

(Armando Marubo , 2004. Tradução de Pedro Cesarino, que explica: Neste canto, o duplo ou alma do xamã Armando Marubo descreve-se a si mesmo como uma pessoa extraordinária, feito uma palmeira de açaí se destacando na floresta. Na sequência, dizendo ser antigo como os próprios espíritos mobilizados por seu canto, utiliza-se de outras imagens para se referir ao poder de seu pensamento e de sua fala. Com o peito desenhado com padrões geométricos invisíveis, o duplo do xamã é capaz de conhecer o cosmos e os diversos povos que o habitam.)

essa valorização vertical e heterogênea do espaço, em oposição a uma concepção horizontal e homogênea do espaço, é flagrada no canto/poema de armando marubo, traduzido e arranjado por pedro cesarino;
mas, para além da experiência poética proporcionada pelo texto, quero remeter à exegese coletiva que fizemos como performance durante a disciplina linguagem e artes, do curso de formação docente indígena da ufa-floresta, pois foi lá, juntamente com o grupo de pesquisadores indígenas, que vimos erigir a árvore-espírito da experiência poético-musical de armando-pedro, em meio a floresta de versos menores e marcadamente cadenciados,  quebrados, repetitivos, a marcar a pequena extensão do verso, da sua "altura", contrastando até o fim com a potência da altura com que se chega no verso inicial;
talvez fosse necessário deitar o poema para ver o contraste entre a árvore/verso primeira e as demais; 

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o texto recria em seu corpo essa lógica dos espaço vertical e os valores atribuídos ao que é associado à altura;
coisas do baixo tem um valor, assim como viventes do médio e do alto;
o espaço é heterogêneo, valorado de acordo com a altura;
o valor atribuído à samaúma como árvore misteriosa, rainha da floresta e morada dos espíritos se deve à altura de sua copa;
nas florestas do juruá as árvores muito grandes, do porte das samaúmas, constituem uma pequena parte da vegetação;
pássaros e macacos certamente terão seu valor simbólico associado a essa geografia;

aqui conectamos a heterogeneidade do espaço a partir do valor estabelecido às alturas, com a heterogeneidade do espaço que associa altura ao mundo dos espíritos;
os espíritos e seu mundo, com sua espacialidade, uma etnografia dessa territorialidade nos diz muito a respeito da heterogeneidadedo espaço, de como os povos que vivem na floresta imaginam o espaço e as maneiras de habita-lo;
perguntei a bane sobre a samaúma, ele me disse que os espíritos dos mortos iam habitar as samaúmas, que precisamos de autorização ao passar por essa árvore, perguntei então sobre os nai yuxin (espíritos do céu), ele confirmou que os espíritos iriam para o céu, seguindo minha lógica (três princípios da razão), questionei: se eles vão pro céu, como podem morar nos galhos da samaúma? sua brilhante resposta: no céu também tem samaúma; 


a princípio, opomos o mapeamento como instrumento de controle do estado sobre um certo território, isto é, a cartografia como produção de certa territorialidade, cartografia como territorialidade de estado, ao mapeamento como instrumento ou tecnologia que empodera as populações tradicionais, no sentido de capacita-las a produzir uma contra-territorialidade;
a noção de região criada pelos grandes empreendimentos de desenvolvimento regional versus a cartografia dos territórios específicos;
a partir disso, podemos imaginar que ao tomar outras referências, essa cartografia pode redefinir, desreferencializar o próprio sistema de produção de referências;
isso porque a idéia de espaço homogêneo que está pressuposta pela técnica cartográfica será subvertida por um pensamento, por um saber que pressupõe um espaço heterogêneo;

essa territorialidade produzida pelas comunidades locais, pelas populações tradicionais a partir de seus conhecimentos coloca o problema do espaço liso e sua relação com o estriamento inerente aos processos de identificação de usos de recursos;
identificar-se em função de demandas territoriais pode ser o objetivo, mas interessa-nos o que escapa, isto é, de que maneira esses saberes subvertem os recursos cartográficos, e subsidiam a apropriação, a detecção de um saber nômade, processos de produção de territorialidade afins com espaços lisos;


a cobertura vegetal permite que os fluxos permaneçam invisíveis à visão aérea: fluxos de água, de animais que anadam na terra, de animais que vivem nas árvores;
o agente laranja como desfolheador tinha a função de descobrir, de estriar, reduzindo esses platôs a superfície da terra que poderia ser controlada;
nas estratégais de guerra podemos encontrar outras formas do liso na medida em que esconder-se ou ser encontrado, fazer-se imprevisível pode garantir com que o inimigo não possa prever seus movimentos;
na caça isso pode funcionar: rastros, pistas, pegadas, barulhos, tocaias;

prever está ligado ao estriado assim como escapar se associa com o liso;
as sociedades de controle são as sociedades de informática, de computadores, as máquinas de previsão;


o problema dos limites: o limite do liso e o limite do estriado;
o horizonte de ambos não é o mesmo;
segundo michael, apeiron é o termo grego utilizado por anaximandro para referir-se aos limites;
segundo japiassu/marcondes (dicionário básico de filosofia), para anaximandro: "seria 'aquilo que não tem limiar extremidade ou limite', sendo considerado, pois, como 'infinito' e 'imenso', com o princípio original dos seres, tanto de seu aparecimento quanto de sua dissolução" (p. 13);    

  
as tecnologias que nos permitem visualizar o planeta, o globo (gps, google earth), são essas mesmas tecnologias que articuladas com os meios de comunicação, nos possibilitam imaginar o mundo "globalizado", isto é, imaginado de uma determinada perspectiva e, portanto, de um certo olhar;


a escrita e a matemática mesmo estão associadas ao estriamento, são, inclusive, instrumentos fundamentais à concepção do estado como aparelho de captura (máquina de estriamento);
kenes são também uma linguagem, um idioma que serve, assim como os cantos, para delimitar territórios nessa sociologia cósmica;

estamos interessados tanto ou, talvez, mais nos efeitos que as práticas e conhecimentos indígenas exercem em nossa maneira de conhecer, de imaginar, de (des)organizar o pensamento, do que no ingênuo pressuposto de que podemos ajudar ou ser de grande valia, com nossos conhecimentos e nossa capacidade de tradução, às causas desses povos;
penso que leva-los a sério e a seu conhecimento nos coloque mais em contato com uma crise em relação ao nosso pensamento e seus pressupostos, do que na posição de defensores da efetividade desse pensamento (em função de nossos valores científicos), ainda que em certa medida sejam ambas a mesma atitude;

a agricultura, a roça branca, a monocultura, os assentamentos do incra etc todas essas territorialidades, essas maneiras de conceber o ordenamento territorial, sustentam-se numa concepção do espaço e do conhecimento;

levi-strauss está interessado, até um determinado ponto, em estabelecer similaridades entre pensamento científico e pensamento ocidental;
pelo menos em identificar uma vontade de saber (e de organizar ou classificar, no caso) própria ao pensamento selvagem;
num segundo momento ele vai distinguir, aí já segundo seus interesses hermenêuticos, entre um pensamento científico, de engenheiro, e um pensamento selvagem, de bricoleur, da bricolagem;