17 novembro 2005

afectu

O recurso central desse saber, o xamanismo, é a transposição de perspectivas. esse recurso se caracteriza como recurso de linguagem, recurso de discurso, recurso enunciativo. é um recurso voltado para o âmbito da enunciação, das atualizações discursivas, em sua relação com o enunciado. A alma (cultura), dentro desse modelo, define-se assim como capacidade reflexiva ( enão substância imaterial), tendo por critério uma concepção discursiva/pragmática, o que significa que ela é redefinida para se tornar equivalente a essa mesma concepção em nosso modelo, suprimindo assim a refração. para o corpo remodelado pela corporalidade e definido como corpo afetivo, como afecção ativa, aciona-se a alma-voz como recurso reflexivo (auto-referência). assim como a alma deixou de ser (na passagem de uma epistème a outra) o diferenciador universal, acionando sua atividade fluida, operante em todos os seres como instância enunciativa, autoreferencialidade, o corpo foi igualmente redefinido. de unificador universal (materialidade fisico-biológica), o corpo é definido pelo xamanismo como instância diferenciante (multinaturalismo). os corpos, redefinidos pelos corpos-sem-órgãos, corpos inorgânicos, corpos de pura intensidade, são caracterizados por sua afecção ativa, suas propriedades imanentes, seu emprego cotidiano do corpo.

11 novembro 2005

vozes

“A civilização se define pela decodificação e pela desterritorialização dos fluxos na produção capitalista. (...) Se decodificar quer dizer, sem dúvida, compreender um código e traduzi-lo, é ainda mais destruí-lo enquanto código, atribuir-lhe uma função arcaica, folclórica ou residual, que faz da psicanálise e da etnologia duas disciplinas apreciadas em nossas sociedades modernas.” (O Anti-Œdipo)

Nosso problema mais atual: o que o xamã ensina ao antropólogo? Ele ensina, uma hipótese, ao antropólogo como se apropriar do recurso fundamental do xamanismo: a agência, a manipulação de vozes; sem confundi-lo no interior do seu conhecimento, sem se deixar arrastar por essas vozes nem objetiva-las, deixando o recurso desapercebido.
Por isso, repito, não nos interessa como os índios, os espíritos ou os macacos vêem o mundo. O que me interessa é que mundo pode ser criado a partir dos índios, dos espíritos ou dos macacos, utilizando-se as respectivas perspectivas ativadas pelas respectivas autoreferências e reflexividades.
Enfim, o que constitui o nosso alvo é o instrumento, o arsenal de técnicas, o conjunto de recursos com que opera o xamanismo.
No entanto, a tendência objetivante do pensamento ocidental força nosso olhar a desviar-se dessa técnica para substantivar aquilo que serve de pretexto para a própria técnica, para substantivar esses perceptos, reduzindo assim o perspectivismo a um relativismo, tomando o animismo xamânico como um relativismo radical.
A operação do antropólogo aqui não é representar/apresentar o universo indígena com mais ou menos verossimilhança. Aqui, se trata de operar com mais propriedade o recurso de coordenar a voz alheia. Isso, tanto por que é o que o antropólogo faz de fato, sua função política, e, numa outra instância, é o que ele aprende/apreende nesse/desse universo de conhecimento, e que, portanto, pode reconfigurar-lhe o método, recurso determinado pela sua epistéme e sua arqueologia).
Ao buscar objetivar essas psiques imaginárias (cuja única função talvez seja seu processo de subjetivação/personificação) meu olhar é desviado do principal: o recurso que opera a elaboração e administração/coordenação dessas vozes.
Por isso o autor nos convoca a uma pragmática do signo, a detectar e esmiuçar os recursos com que opera essa técnica lingüística de conduzir o discurso alheio, ou melhor, de simular o discurso alheio, ou melhor, de modular o tom da voz alheia em minha voz.
A alma indígena não é um produto (objeto) que eu possa empacotar e vender para vocês com o rótulo: ANTROPOLOGIA. Ainda que se queira iludir com essa hipótese, o que eu poderia elaborar no máximo seria um discurso indígena que vocês comprariam como lebre, mas que não conteria os miados debaixo da pele.
Por isso, o que tratamos aqui não é de psicologia indígena, com seu pressuposto fundamental da forma-sujeito. Estamos situados na dimensão da sua epistéme, de seu modelo de produção de saber, de seu conhecimento.
Não nos interessa saber como o índio vê o mundo, ou seja, objetivar sua sensibilidade, sua psique, ainda que eu tenha dados etnográficos convincentes.
Estamos, enfim, em busca das características que configuram seu modelo epistêmico, seu sistema de construção de conhecimento: os recursos utilizados por esse sujeito coletivo de conhecimento para elaborar seu saber.