21 agosto 2008



é interessante notar a dificuldade que se tem para pensar o ensino médio indígena, dado o caráter político que ele implica, caráter este que nos acostumamos a varrer de nossos debates, principalmente em educação, onde a tradição freireana deu lugar a uma linguagem povoada de conceitos voltados para a área da administração;
essa despolitização tem sido alcançada devido ao modelo de organização da educação, centrado na gestão de recursos, prestação de contas, e, em razão disso, mais desvinculado dos processos políticos que envolvem o processo de educação;
com isso, a educação se reduz cada vez mais a um problema de mercado de trabalho, de formação técnica etc;
é importante marcar que quando se fala de gestão estamos nos encerrando no território de um técnica que possui um horizonte político determinado;

ainda que a ecologia tenha se tornado um dos mercados mais promissores desse início de século, evita-se tratar os princípios do modelo de desenvolvimento capitalista;
conceitos e palavras que circunscrevem esse processo são banidas dos circuitos cotidianos e oficiais tais como: capitalismo, ideologia, alienação entre outros;
isso porque de fato o modo de funcionamento do plano de transcendência é o de dar a ver sem ser visto;
assim, circunscritos à mentalidade positivista, renunciamos a qualquer coisa que nos escape, que não se projete nos velhos recursos da história, no teatro e nos personagens da história;
dessa forma, a ecologia em lugar de utilizar seu impacto para colocar em questão o regime capitalista, vai esfriando politicamente e sendo neutralizada como mercadoria;

neutralizar politicamente os discursos, destacar seu caráter técnico/objetivo e seu valor de troca, seu lugar na mídia;
o vínculo direto dos ensinos médio e superior indígenas com a política consiste no caráter político o conhecimento, que tem tentado ser confundido com demandas de estado;
no entanto, a definição de saberes e políticas devem ser desenvolvidos pelos movimento sociais, movimentos esses que precisam estar organizados em torno de seus projetos;
o projeto educacional indígena entregue nas mãos do estado tende a ser neutralizado politicamente e se tornar meio de disseminação do regime capitalista dominante no brasil, em lugar de projetos que se voltem aos planos de futuro dos indígenas que convergem na revitalização da cultura e na constituição de alternativas econômicas ao capitalismo;
se não enxergarmos a tempo a incompatibilidade de procedimentos entre estado liberal e coletivos autônomos e insistirmos em colocar sob a responsabilidade do estado a elaboração de projetos [etapa fundamental no amadurecimento dos movimentos sociais] vamos continuar com iniciativas de fachada, neutralizando o teor político desse discurso social para produzir mercadoria para o capitalismo;
se não nos constituirmos como máquina de guerra cedemos aos aparelhos de captura;


alquimia

não busco mais
ainda que em sonho
desatei os condicionamentos
o conforto
nas camas macias da amizade
em que me rejubilo
em mim mesmo

abdiquei do consenso
desfaço-me em guerra
contra-me
das moscas da feira

nem por isso
coleciono inimigos
esses são raros
como os amores
íntimas intensidades

no mais das vezes
me deixo picar
chupar o sangue
inocente que entrego
destilo
puro

enquanto persisto
impassível
aos zunidos


crianças
o que vocês fingem não ver
não sentir
estou vendo vocês
percebo que estão disfarçando
a dor
e sua maldição

infantes malévolos
por que amaldiçoaram a dor
e agora fingem
que não é com vocês
que são alheios à ela

e inventaram a compaixão
como para remediar
um erro com outro

a dor já dura tanto
há quanto tempo...

porque ninguém quer falar da dor...



fingir que o conhecimento não consiste numa prática política, desvinculada de um um projeto político comum a um coletivo, será renunciar ao gênio de nosso maior ativista do saber popular;
reduzir paulo freire a um discurso, a um produto no mercado das retóricas vazias de estado, a um método que tecniciza o saber e procura explicar a problematização do mestre consiste em um contra-senso;
paulo freire: esse nome se desdobra em práticas libertárias que devem redimensionar ou transfigurar a idéia de educação para uma concepção mais completa e própria para o contexto e os co-textos de resistência continuada à já velha ditadura da modernidade neoliberal;

não somos cegos, sabemos que o mercado dominou de forma inédita as milenares forças coletivas e populares;
já afirmar o mercado como condição, isso é um trabalho bem remunerado pelos pensadores da publicidade em seus mais diversos segmentos: do jornalismo à literatura, da história à ciência etc;


creio que não se trata de questão de fórmula ou modelo;
não se trata de apropriar o modelo do projeto de autoria, mas de entender seus princípios e pesar se eles convergem;
não vejo espaço para o construtivismo no âmbito de um projeto político neoliberal assumido, em que a educação se reduz à formação técnica para o mercado de trabalho desprovida de sua dimensão política minimamente humanista, o que deveria ser direito garantido por um estado democrático se eu acreditasse em direitos;
isso a despeito de meus 'amigos otimistas';
quanto aos coletivos indígenas, vejo a mesma vontade neoliberal do poder aquisitivo e do poder político, do mercado de trabalho e do consumismo, do assistencialismo;
no entanto, não vejo os índios 'quererem' deixar de ser índios, ainda que em grande parte esse complexo de vontades, de processos de subjetivação que articula formação/educação, consumo, trabalho etc seja também deixar de ser índio na prática [o que muitas vezes vale mais que querer ser índio na intenção [isso pra simplificar pois esse querer a cultura está intrinsecamente com um mercado de subjetividades nada inocente como muitas vezes pode fazer parecer]];
como se vê, não estamos satisfeitos com dualidades explicativas e sua cadeia de pressupostos;
em lugar disso, perseguimos implicações problemáticas;
vemos nesses coletivos espaços e aberturas para uma política de conhecimento diversa dessa nossa ciência de cartas marcadas;
enquanto abdicamos cada vez mais radicalmente do caráter político do conhecimento, insistindo nas trevas passadistas do modernismo positivista travestidas em nossa educação técnico-lógica, as questões de uma política de conhecimento indígena [envolvendo os campos tão diversos quanto complementares da educação, tecnologia, saúde, cultura e tradição, agroecologia, gestão social e territorial] vão ganhando força com sua articulação nesses múltiplos e pequenos projetos de gestão local;
ainda que o assédio da tecnicização burocrata travestida de modernização neo-liberal acredite ter nos índios fiéis agentes de estado, está para ser encontrado o curare dogmático que enternecerá a inconstância dessas nobres almas selvagens;
nesse campo fascinantemente problemático, acreditamos ainda em alguma eficácia de práticas inspiradas em princípios construcionistas que possam vir a repercutir no marasmo fundamentalista herdado via cultura judaico-cristã;


o construcionismo não só não se presta a usos conservadores como possui, em relação a nosso contexto moderno e liberal, uma natureza libertária;
ainda a nossa idéia de verdade;
os conservadores nos arrastam pelas ventas, nos conduzem com seus pressupostos tapa-olhos;
e seguimos eternizando nosso provincianismo defendido a unhas e dentes;
não houve independência que não fosse posse oficial do império;
da mesma forma, o nosso desenvolvimentismo democrata não deixa a dever aos paus mandados do império que instituíram o banditismo dos militares golpistas;
nossos homens de saber ainda são parnasianos conselheiros acácios;

12 agosto 2008



estranha dis-posição
por um lado quero me aproximar, estabelecer uma relação de proximidade, para que de alguma forma disponibilizemos a nossa intimidade e empreguemos nossa criatividade nesse processo de pratica coletiva de conhecimento;
por outro lado, um tanto contraditório, quero trabalhar um método e uma concepção de conhecimento centrados na desconfiança;
é estranho: por um lado devo conquistar a confiança de vocês, por outro, despertar a desconfiança em relação ao conhecimento e à universidade enquanto espaço-corpo desse conhecimento, ambos representados por mim;

esse dilema consiste numa contradição que pode esclarecer a posição dos discursos, a forma de concebe-los, de distribui-los, em suma, alguns problemas de política do conhecimento que podem esclarecer pressupostos que definem a relação dos agentes em jogo;
a instituição universitária e a tradição conservadora do conhecimento, as relações entre universidade e mercado no século vinte e um, as metamorfoses da política na contemporaneidade entre outros problemas serão a arena em que no disporemos para praticar o conhecimento;
não vamos ao encontro de um conhecimento já conhecido, não vou formata-los a partir do que aprendi na universidade ou nos livros, nem vou falar de mundo comum a todos [o melhor ou pior dos mundos] etc;
vamos construir conhecimento vivo a partir de nossas experiências e intuições;
teremos alguns problemas como ponto de partida e alguns meios para experimentarmos com linguagens diversas;
o que vamos buscar definir para nos afinarmos em uma abordagem será o plano em que estamos como um plano ocupado e definido por um conjunto determinado de atores, o que diferirá drasticamente do ponto de partida [e chegada de uma neutralidade axiológica];

perceberemos assim que a prática construtivista se dá na medida que desconstruímos princípios ocultos ou pressupostos que assombram nosso conhecimento;
trabalhar assim com as dimensões objetivas de um conhecimento muitas vezes restringido aos seus desdobramentos simbólicos ou representacionais;
perceber também o teor político ou artificial de discursos que se confundem com a natureza ou os fatos ao explica-los;
de um lado vamos perceber nossa liberdade para a construção de conhecimento e de realidades de conhecimento;
de outro, vamos desconstruir os discursos opressivos que se projetam como verdades absolutas, utilizando uma ciência conservadora para tantas políticas opressoras;

ambigüidades
a estranheza em relação a essa minha aparente contradição está na constatação de que o estado e seu discurso convergem para um universo monológico, em que os territórios e as funções estão bem demarcados;
o estado pode promover a diversidade, mas a multiplicidade é seu limite, é o limite que se precisa chegar para circunscrever as franjas do estado;


a sociedade ocidental constituiu formas de socialidade associadas com formas de conhecimento que não possibilita olhares que lhe sejam externos;
pelo contrário, as instituições que a caracterizam mais e melhor são justamente aquelas que procedem assentadas no absoluto como a religião, o estado, o judiciário e mesmo a ciência unificam um universo homogêneo a partir de um olhar e de valores que têm por referência o absoluto;
não só o relativo e a relação como a multiplicidade são estranhos a esse mundo da convergência, universo em que todas as perspectivas buscam um ponto comum e absoluto para ser canonizado;
a relação vai em outra direção, na direção de contrapor, de chocar, de dipor perspectivas e não e fazer convergir;

a relação entre índio e branco, entre conhecimentos diversos, entre diferentes saberes, consiste sobretudo numa relação;
ainda que seja uma tendência de toda relação em nosso ocidentalismo se unificar numa homogeneidade, esse confronto de conhecimentos projeta um jogo de olhares, de perspectivas, em que a ciência identificou[-se] tão somente com sua perspectiva absoluta, tendo deixado de fora outras possibilidades de se ver inclusive [e principalmente] a si;

onde a cobra morde [e a porca torce] o rabo é no ponto em que há uma fusão, em que o pensar ocidental não encontra expressão social a não ser nas sociedades indígenas, sociedades de contra-estado, quando os nativos americanos passam a servir para nos esquizoanalisarmos, nos fornecem ainda um conhecimento como sistema de multiplicidades;
o ponto antropológico de inflexão consiste na socialidade de resistência praticada partir desse conhecimento da multiplicidade ou multiplicizante, quando o pensar precisa se articular num viver;
o suporte vivencial desse saber, essa arte da resistência ao mesmo do universal, consiste em algo ;
a capacidade dessas linhas de fuga de reconfigurar o campo de forças é imprevisível;
essas linhas se lançam, escapam ao controle;
será a solução controla-las;

nesse ponto em que se encontram o construcionismo como procedimento libertário de pensamento e o xamanismo indígena como sistema epistêmico-político, ambos em busca de práticas multiplicizantes de saber-poder ou anti-saber-contra-poder;
ponto em que nosso construcionismo encontra expressão em outros pensamentos-vivências que não [relativamente, até certo ponto] a o pensador, distância que se buscará transpor ainda quando aparentemente intransponível;
em que esse contra-positivismo é acionado nos devires dos povos indígenas, com seus vastos sistemas de saber-viver, marcados pela divergência própria do efêmero, pela multiplicidade típica do provisório;
esses devires dos povos indígenas da amazônia com seus recursos xamânicos, sua socialidade da instabilidade, sua política do dissenso;

os índios proporcionaram e proporcionam ainda [e mais ainda] hoje, um problema para o pensamento e a política ocidental;
um problema central do saber ocidental [problema mais da prática do conhecimento que problema teórico, ainda que essas instâncias só se distingam na ordem do pensamento] sempre consistiu em reduzir os outros povos, em [dando continuidade à sua tradição metafísica] fazer convergir os demais povos a um mesmo universo, a uma mesma configuração perceptual, sensível, cognitiva;

um índio na academia consiste num fenômeno menos incomum que um coletivo indígena na academia;
um coletivo indígena consiste em um corpo estranho à academia, à idéia de academia e aos pressupostos dessa idéia de academia;
consiste num olhar, numa perspectiva que não poderá ser absorvida e moldada pela perspectiva acadêmica, pois que tende a afronta-la sempre e escapar-lhe voltando seu olhar sobre ela, não permitindo que ela se funda ao mundo que está explicando e reproduzindo ao explicar;
os mais importantes e representativos aparelhos de captura do estado consistem em perspectivas que desaparecem ou se fundem no absoluto: teologia, história, direito, todo um regime de verdade científico;
o índio como coletivo, como relação, não pode ser absorvido por essa máquina, o que pode ocorrer com um indivíduo, pois por mais discriminado que seja ele entra nos processos subjetivantes de individuação;


três dimensões do enunciado
o enunciado desconstrói o signo em sua imagem representacionista que pressupõe ou determina um mundo ou natureza a ser representada, dado;
em suas três dimensões articula objeto/objetividade, sujeito/subjetividade e meio/linguagem;
em relação à imagem do objeto, à objetividade do referente, a linha de fuga consiste na prática de um intervencionismo construtivista que se contrapõe às políticas científicas de estado e ao mercado das pesquisas;
em lugar de um positivismo que parte da neutralidade, um construcionismo que se volta contra um circuito fechado e uma disposição conservadora do saber;
aqui visa-se afirmar a multiplicidade de mundos possíveis [isto é, não determinados] impetrando entradas na homogeneidade naturalista do multiculturalismo, entradas essas ativadas [mas não determinadas] pelo reconhecimento e a prática de conhecimentos tradicionais contra a teoria onisciente da ciência moderna;
em lugar do conformismo ao mundo explicado e ensignado [da escola], o universo como opera aberta e multiplicidade experimental;
essa outra imagem do mundo e da objetividade se articula a uma concepção de subjetividade, ambas acionadas por um outro uso a linguagem;
se o mundo constituído em signos não será uma unidade homogênea, o sujeito ou a subjetividade tampouco o será;
neutralizando a imagem tradicional do sujeito, associado a uma suposta essência universal pré-determinada e, por isso, disposta ao espírito padronizador da explicação científica, define-se um programa de práticas subjetivas;
tal concepção nos libera dos processos conservadores de normalização para práticas de subjetivação associadas à multiplicidade;
aqui, também [e não somente] identificar as funções conservadoras da concepção tradicional de sujeito consiste em prática de subjetivação, mas sobretudo experimentar com a subjetividade a subjetivação;
interessa, no entanto, decifrar a concepção tradicional do sujeito e as funções dessa subjetividade como prática discursiva;
uma projeção política sobre essas instituições ou práticas sociais tradicionais: o mundo e o homem, nos chamam a atenção não só pela reconfiguração das imagens da objetividade e da subjetividade que instrumentalizam nossa produção de mundos e pessoas, mas também e especialmente pela redefinição daquilo mesmo que se entende por ação política;
isso pois a política supera sua área restrita, disseminando-se em práticas cotidianas, proliferando-se pelos meios mais inóspitos dos conservadorismos objetivantes e subjetivantes da positividade;
esse deslocamento terá na concepção e no uso da linguagem um ponto de inflexão determinante;
o conservadorismo da imagem tradicional do homem e do universo estão assentados num uso conservador da linguagem;


quando se fala em imagem do pensamento como guerra ou campo semântico bélico, atualizo o rizoma com a argüição de maria cecília à minha dissertação;
depois de abrir a argüição e lembrar de meus tempos de aula, a educadora levanta uma bola, faz um belo cruzamento e me deixa cara a cara com o gol;
seleciona um enunciado e desse enunciado seleciona uma palavra: detona;
com sua sutileza, pergunta-me se não queria ter dito denota, que lhe parecera mais próprio, em lugar de detona;
é certo que numa argüição em que ela começara simulando uma iniciação indígena marcada no corpo, fazendo rizoma com as iniciações de inscrição descritas por clastres, estava proposta a abertura para a performance do texto, para sua apropriação no plano de imanência do evento;
respondi que a noção de detonação integrava-se melhor ao campo semântico da dissertação e do referencial teórico assumido: nietzsche, foucault, clastres, viveiros de castro, deleuze;
a pergunta capciosa refere-se à ruptura em que resulta minha travessia pelas sendas do imaginário neoplatônico daquela escola e seu referencial teórico: jung, eliade, durand;

o interesse sobre a questão da imagem do conhecimento como guerra remete a uma outra imagem do conhecimento marcada pela amizade, que consiste na imagem forjada pelos gregos, especialmente pela tradição platônica;
deleuze aborda essa questão em seu manual de uso da filosofia, quando coloca o problema da filosofia grega associada à amizade, colocando em cena personagens como o pretendente e o rival e seus desdobramentos na relação entre o modelo e as cópias;
essa imagem do conhecimento que se vai desdobrar na concepção de verdade marcada pela relação modelo-cópia;
para desequilibra-la, deleuze propõe a concepção de virtualidade/atualidade que atravessaria imperceptível a relação determinada e determinista modelo/cópia na configuração de uma certa imagem da verdade;
a relação virtual/atual lida com os possíveis de maneira distinta da modelo/cópia: enquanto esta pressupõe a unidade e a profundidade essencial [reduzindo os possíveis], aquela desliza na aparência dos efeitos de superfície da multiplicidade dos possíveis;
enquanto numa os possíveis são empecilhos à verdade, na outra os possíveis estão mais para potências sempre prontas a se atualizarem, a invadir o real;

esse deslocamento da imagem de conhecimento tradicionalmente platônica entendida como verdadeiro conhecimento aciona rizomas com as rupturas em relação à concepção essencialista da subjetividade;
em lugar de uma imagem da subjetividade que se define pela essência individual, o ser humano se configura menos como essência e mais como prática de subjetivação que trabalha a multiplicidade dos devires;
a linha musical da experiência ritual ou performática, em que se lançam os agenciamentos e as perspectivas proliferam atravessando o corpo;

por outro lado, o sem-lugar da guerra em nossa teoria da socialidade proporciona a abertura de um campo e a constituição de um plano que fará deslocar os pressupostos dessa sociologia de estado;
assim, coletivos em que a guerra consiste num dispositivo de socialidade e subjetivação dos mais importantes, em lugar de insistirem como modelos brabos escapando à sociologia positivista da evolução, passam a ser tomados como procedimentos de socialidade contemporâneos e resistentes à ordem centralizada do saber de estado que procura explica-los;
sociedades contra-estado desdobram-se no xamanismo como conhecimento contra-estado da multiplicidade;

é tanto possível como provável que estejamos tratando de práticas políticas em que o conhecimento se articula a processos de subjetivação que visam proliferar a multiplicidade perspectivista própria dessa outra imagem do conhecimento;
afinal, os dispositivos que com que estamos lidando visam programas de ação, linhas de fuga, propostas de gestão, práticas políticas etc num campo híbrido em que exercício do pensamento (teoria) e práticas se impactam mutuamente;
essas práticas interagem com a percepção dos aparelhos de captura que operam na manutenção do sistema de conhecimento ocidental e nas instituições com as quais ele se articula;
no entanto, essa percepção ou consciência não deve ser considerada com condição sine qua non;


conhecimento e política
aprender ou estudar gestão como exercício de liberdade ou ensinar gestão como exercício de opressão;
liberdade de pensamento que visa práticas libertárias;
exercitar um olhar libertário sobre a realidade num contexto em que impera a opressão que submete e o medo que não ousa pensar diferente;
a prática da opressão se oculta no silêncio de nossa auto-censura, no cinismo com que educamo nossas crianças para não pensarem diferente, não pensarem absurdos, não desejarem o que não está definido como bom, por pior que seja;
é na educação, principalmente nossa educação de teor moral extremo, nossos dogmas sobre uma educação redentora, nosso provincianismo mais arraigado, que se reproduzem esses esquemas de medo e auto-censura;
especialmente numa educação determinista que pressupõe seus valores na forma de realidade pré-definida a ser apreendida, desprezando a interação perceptiva e a sensibilidade que conduzem a práticas políticas libertárias, visto estar aí assentado o cerne da opressão e do conservadorismo no conhecimento;
imaginar o mundo, imaginar o futuro: eis o que a opressão de um regime fascista suprime nas práticas de conhecimento;
em lugar disso estabelece procedimentos dogmáticos de conhecimento baseados numa realidade pré-definida;


praticar a gestão como exercício de liberdade consiste inicialmente em identificar os modelos de gestão que disputam a realidade, que controlam nossos fluxos;
praticar a gestão como liberdade, portanto, consiste em identificar como o modelos de ordenamento social que se ocultam em práticas naturalizadas, não-problematizadas;
consiste assim inicialmente em um exercício político de resistência ao modelo de gestão ou desenvolvimento vigente;

praticar gestão se refere a identificar modelos de organização;
não se entende gestão aqui como um enquadramento alienado e inconseqüente a valores indiscutíveis de um modelo tomado como absoluto;
consiste na prática política de resistência através da busca de alternativas ao mercado e não na submissão surda ou auto-censurada das alternativas de mercado;
dessa forma a importância do estudo e da formação em gestão não se resume a aprender as leis, a redação de documentos, ao conhecimento do mercado ou mesmo ao discurso competente da área;
a gestão não consiste num mercado de trabalho, não deve servir para alimentar o círculo vicioso do capital e da mais valia;
a gestão é pensada aqui como prática política de resistência ao processo de submissão que o capitalismo impõe aos coletivos de cultura irredutivelmente não ocidentalizável;

essa prática de gestão se articula aos direitos conquistados por esses povos ao longo dos últimos séculos;
sabemos que esse direito não pode garantir para esses povos mais que um lugar no mercado, mas simbolizam o reconhecimento ocidental da existência desses coletivos e a concessão de um valor para esses povos no mundo que vivemos, ainda que seja um valor pautado em critérios liberais e numa retórica assistencialista;
dessa forma, não nos apoiamos no direito nem o entendemos como finalidade, e sim vemos no direito um instrumento entre outros a serem manejados nessa prática de gestão;

o direito dos povos indígenas não consiste apenas num direito de acesso ao mercado de trabalho, à sociedade de consumo etc;
seu direito é mais amplo e se relaciona com a possibilidade de construir alternativas ao capitalismo e às formas de relação mediadas pelo capital;
é certo que a condição que se cria hoje para isso relaciona-se menos com um quadro de conquistas políticas e sociais e mais com o domínio imperial do capitalismo em escala global;
nossa história contemporânea ainda está mais marcada pela tradição ditatorial que pelas conquistas e práticas democráticas;
a noção que se tem hoje de progresso, crescimento ou modernização e nossa posição diante da economia e da política globais não diferem substantivamente daquelas o regime militar de há trinta anos;
por isso é necessário entender numa postura critica o quadro político em que se insere a popularização do discurso competente da administração ou gestão que tem sido estimulada pelo estado neoliberal e pelos mercados de formação profissional;
estimula-se com isso a reprodução de valores, de maneiras de ver, de pensar, de sentir e de processar o mundo;
valoriza-se com isso padrões de sensibilidade e consumo, projeta-se uma imagem de presente e de futuro que se configura como realidade vivida, como subjetivação;
as relações mediadas pelo capital me reduzem ao conjunto de subjetividades forjado nesse quadro;

não há dúvida de que o investimento da sociedade capitalista em sua auto-imagem visa à manutenção dos seus valores, da configuração de mundo de que é herdeira e que atualiza;
o que chama a atenção é o seu poder de ameaçar e colocar medo naqueles que destoam dessa concepção ao mesmo tempo que propagandeia a liberdade irrestrita;

será importante imaginar o trabalho do gestor como o de um articulador de perspectivas e soluções dos diversos agentes da coletividade;
elaborar um modelo de gestão tem menos a ver com a coalizão de interesses associada a trabalho do representante democrático, os político profissionais;
articular sobretudo os saberes das diversas áreas;
no caso dos conhecimentos que estabelecem interface com os saberes técnicos da tradição ocidental, articular o que há de conhecimento indígena no trabalho do professor, o que há de conhecimento indígena no trabalho do agente de saúde, no do agente agroflorestal e assim por diante;
colaborar sobretudo para que esses agentes construam a imagem indígena de seus trabalhos para além de suas obrigações técnicas e burocráticas;
elaborar com cada um deles e com todos juntos o modo como esses conhecimentos estão sendo utilizados para os objetivos de um coletivo indígena e para a constituição de processos indígenas de subjetivação, evitando assim se deixarem subjetivar pelo conhecimento técnico ocidental e o capitalismo;

a dimensão técnica não deverá servir para determinar um modelo e justifica-lo para o coletivo;
as técnicas de administração e cooperativismo devem ser colocadas a serviço do projeto político da comunidade, não para fazer o coletivo se submeter a um projeto externo e alheios aos seus interesses;
essas técnicas não podem servir apenas para propagandear o capitalismo e a onipresença das soluções mediadas pelo capital;
o projeto político de gestão do coletivo tem no gestor alguém para oferecer alternativas ás violências do poder capitalista e não alguém para propagandear soluções do credo liberalista;

é característica dos povos indígenas uma condução política diferenciada daquela das sociedades ocidentalizadas, determinadas pela coalizão dos interesses de estado e mercado;
essas características econômicas, culturais, sociais etc não devem ser ofuscadas pelas políticas de estado ou o terceiro setor que visam resolver supostos problemas da coletividade;
esse procedimento de assistência é característico dos missionários que costumam chegar nessas comunidades com os problemas pré-definidos segundo seus valores humanitários e cristãos e ocidentais;
pelo contrário, o gestor indígena deverá fazer as vezes de pesquisador das características que convirjam numa gestão não apenas com características indígenas, mas que proponham práticas de resistência ao assédio do modelo de desenvolvimento ocidental e seus valores;

os indígenas se caracterizam por uma outra postura em relação ao estado;
mesmo quando se submetem ao assistencialismo, se distanciam por uma postura de estranhamento ao mundo de origem do estado, mundo que é imposto e generalizado poe esse mesmo estado;
os indígenas se caracterizam por um distanciamento em relação ao poder do estado, da unidade de sentido universal imposta e veiculada pelo estado;
suas lideranças, seus fluxos de poder, seus fluxos econômicos, sua subjetividade heterogeneizante, todo seu regime cultural marcado pela sustentabilidade;
em tempos de questionamento crescente dos velhos dogmas da modernidade tais como o progresso e o crescimento econômico sem limites e objetivo, os coletivos passam a constituir contraponto de referência em diversas direções;
e apesar da aparente fragilidade [que está mais em nosso olhar padronizador] desses coletivos aos assédios da civilização de mercado, os indígenas persistem com seus consistentes regimes de socialidade, ainda que aparentemente soterrados pela avalanche consumista;
essa socialidade persiste, inclusive, tirando vantagem do controle ocidental, treinado na identificação de padrões e restrito à detecção de homogeneidades, não percebendo por vezes a característica homogeneidade desse processo de resistência cultural;

tarefa do trabalho do gestor está em identificar o que há de indígena nas soluções encontradas e nas proposições de utilização indígena dos recursos ocidentais oferecidos pela gestão cooperativista;
essa abordagem se contrapõe àquela que vê e busca alternativas de mercado para os indígenas, que trabalha a partir do dogma das relações de mercado;


reduzir a antropologia às formas imaginadas pelo direito e suas leis consiste em reduzir o mais libertária das imaginações no mais conservador dos pensamentos;
o que poderá ser feito será antropologizar o direito, nossa idéia de leis, de normas, de moral, de valores, de costumes, de controle social, de liberdade individual;
isso porque a antropologia consistiu na linha de fuga [ao lado das concepções de linguagem e da arte das subjetividades liberadas em articulação com as novas imagens do conhecimento experimentadas pela filosofia e a epistemologia] às imaginações deterministas da história do progresso como extensão de uma biologia da evolução;
voltar-se para a ciência das leis em busca do poder necessário para combater com os setores conservadores da sociedade parece um movimento certo e óbvio;
isso porque insistimos em legitimar o frágil discurso da democratização como saída para os problemas criados pela mesma combinação democracia-liberalismo;
a positividade das leis como possibilidade de mediação do estado em conflitos sociais acaba cegando [os antropólogos] para a economia do poder;
a antropologia deve ser o espaço por excelência do questionamento dessa universalidade que o direito atribui a si mesmo, da desconstrução do discurso positivo e da concepção autoritária de poder identificada ao estado;
no entanto, o que testemunhamos quase sempre é uma ingenuidade [sempre a um passo da má fé] que prefere apelar para o jogo do poder para garantir seus direitos e os direitos de seus interlocutores;
a única forma do poder imaginada aqui é a do altar jurídico nas mãos do qual se coloca a solução dos conflitos;
vira-se o rosto para o sem número de formas de resistência que não tem como objetivo conformar-se às leis, mas transfigura-las;
o direito não tem soluções para os conflitos e consiste num desastre que seja imaginado como uma instância que possa decidir baseada em valores transcendentes e universais;
em lugar disso, o direito pode se tornar um laboratório para a desconstrução de nossa tradição etnocêntrica e autoritária;
sua estreita relação com o positivismo e as formas mais conservadoras de pensar ocidentais nos permitirá desconstruir nossa imagem do poder centralizado, poder de estado;
isso possibilitará criar dispositivos que visem impermeabilizar os coletivos indígenas dessa tentação que são as leis e suas falsas soluções fáceis, pautando a organização desses coletivos no reforço de suas instituições e de sua própria dinâmica de poder;
observar-se, sentir-se, perceber-se afetado
enquanto afeta
afetar com a escrita sem se deixar ser afetado
pelo mito, pelos kenês, por outra sensibilidade
outra natureza, outros mundos possíveis
ao nosso fatalíssimo mundo
outros cosmos
a menos que se mercadorize
não se torna perceptível
perceber e ser percebido
conduzir percepções ou libertar-se das conduções
dos determiníssimos encubados
na alma, na língua, no corpo


enfim, abrem-se perspectivas de concepção e uso do conhecimento que diferem da tradição que visa conservar o conhecimento como reafirmação de categorias ou noções fundantes;
a maneira de se utilizar do signo deixa de ser a da chave da representação para assumir uma funcionalidade política ameaçadora ao espírito conservador da tradição;
a abordagem essencialista implicada nesse representacionismo que define então as linguagens é questionada em sua necessidade e sua arbitrariedade;

a partir daí, com uma redefinição da imagem do conhecimento que consegue escapar dessa tradição coloca-se em questão as abordagens que deram origem à concepção de homem e à concepção de homem moderno;
nessa concepção se encontra o ponto nevrálgico de todo o impacto dessa revolução da política do conhecimento no conhecimento;
a construção milenar do sujeito que remonta a tantas tradições de pensamento, marcadamente a tradição da filosofia grega, encontra sua problematização definitiva ao sair do plano de transcendência ao qual remete a objetivação característica dessa tradição;
a desconstrução desse plano de transcendência para a projeção num plano de imanência não poderia ser feita sem uma concepção de linguagem que pudesse desconstruir tal plano, demonstrando seus usos e funções;
a possibilidade de uma abordagem configurada em práticas de subjetivação mais do que nas objetivações explicativas que remetem ao plano de transcendência se deu a partir de uma apropriação construcionista por assim dizer do conhecimento;

a concepção não se desvincula aqui de seu uso, o pensamento não possui status superior à ação, o plano de imanência consiste numa interação entre pensamento e ação, a subjetividade prolifera vetores inimagináveis na abordagem tradicional;
não se trata de relativizar, de se deslocar à uma auto-definição subjetividade como se se assumir a voz de outro, a voz de minoria fosse tão simples assim;
a apropriação de agenciamentos de enunciação que possibilitem a prática de máquinas de guerra, de ações de guerrilha no campo da política do conhecimento consiste em algo menos simples que pressupõem práticas de construção/produção de sentido e subjetividades e não afirmações de subjetividades dadas e pré-definidas;
toma-se aqui a subjetividade e os processos de subjetivação como projeto político-estético no qual a arte livra das pré-concepções enquanto a política imprime o caráter de resistência àquilo que é traçado como modelo conservador de reprodução de práticas e valores;
se essa prática construcionista de conhecimento/subjetividade não pode ser pensada desvinculada da tradição que lhe deu origem e lhe dá dinâmica, isso se deve à sua proposta de método genealógico ou desconstrutivista;

questiona-se assim a prática de tomar a voz do outro, visto que se propõe proporcionar agenciamentos de enunciação como prática política de estética subjetiva;
um dos problemas centrais para essa apropriação da voz alheia consiste na própria suspensão de uma concepção consensual de consciência e principalmente do lugar e da articulação da consciência na agência;
com o questionamento da concepção de linguagem como representação [e da noção de consciência] falar em nome do índio ou do proletariado;

não mais o que dizem os índios, mas como o dizem e, principalmente, o que significa dizer isto ou aquilo, ou seja, quais os desdobramentos dessa prática discursiva ou desse acontecimento sobre nossas posições conservadoras;
suprime-se o plano de transcendência no qual seria apropriada e projetada a suposta voz do outro [em seu fantasma];
as práticas discursivas, tal como as práticas subjetivas, enquanto práticas deixam de valer pelo conteúdo de discursos ou por identidades substantivas;
os processos e sua agência se projetam e o que se convoca são práticas que dêem conta de se pensar em ação;

a subjetivação proporciona um plano de imanência que renuncia a definir e explicar o outro por sua voz [consciência] ou sua categoria, proporciona uma prática de interação [conhecimento/ação] que se volta para as práticas político-estéticas de auto-constituição [e não uma auto-definição barthiana num plano de transcendência que já valorou de antemão o seu objeto a absorver sua prática];

esse plano de imanência se recusa, portanto, a tomar como princípio ou ponto de partida a neutralidade de um plano das idéias;
as idéias [assim como a verdade] não se configuram como abstrações, pois se fazem valer por sua utilização, por sua concretude, por seu caráter de acontecimento;


qual a relação entre essa desconfiança dos processos de subjetivação e a forma de apropriação da voz alheia, a voz indígena, para afirmar um mundo verdadeiro por trás das aparências: eis a questão que nos é colocada ou que nos sentimos convocados a desdobrar;
o uso da noção de subjetivação se deve ao alinhamento a uma abordagem epistemológica trabalhada ao longo do último século, a qual contraporá à tradição ocidental uma outra imagem do conhecimento do mundo e do conhecimento do homem;
essa imagem do conhecimento será detonada por um uso da linguagem que se libera de sua concepção representacionista e abre campos diversos que o do conservadorismo positivista;
com isso desloca-se o problema de um projeto colonizador e universalista de modernização racionalizante, característico do horizonte positivista ou iluminista, para o uso do conhecimento e das disciplinas na configuração de políticas de conhecimento;
o conhecimento se define então como um campo político de práticas de subjetivação, volta-se para si com questões próprias a essa concepção, pois se constituíram instrumentos para tanto a partir da abordagem e desconstrução do velho projeto civilizador que ocultava seus valores entre a enunciação e o plano de transcendência;
daí o uso da subjetivação como prática político-estética que borra os limites objetivantes em que se encerra a ciência;
daí a renúncia ao que estaria pressuposto numa concepção tal como a de um mundo verdadeiro e essencial oculto na realidade aparente;
a dicotomia essência/aparência, própria ao multiculturalismo, só pode ser sustentada por uma concepção representacionista da linguagem e seu uso, por uma imagem do conhecimento que sustenta uma verdadeira realidade, seja ela natural ou sobre natural;
distinta será uma abordagem perspectivista detonada por um multiculturalismo inspirado na corporalidade dos processos indígenas de subjetivação [indígena];
isso porque a dicotomia essência/aparência remete à série de dicotomias: corpo/alma, natural/sobrenatural etc;

o uso da linguagem na desconstrução e criação de valores e práticas conservadoras libera a dimensão política da prática do conhecimento e proporciona mais que seu uso explicativo, a apropriação do conhecimento como intervenção;
em lugar de conservar valores, as linguagens liberam seu caráter criativo de deslocar as referências tradicionais;

no entanto, o que curiosamente nos faz aumentar a desconfiança em relação à utilização de recursos xamanísticos para a definição de uma verdadeira realidade por trás da aparência consiste na forma com que essa explicação se faz agenciar;
se, mais que um personagem, a expressão os kaxinawá será apropriada aqui como processo de subjetivação [desprovido de substancialidade que os pré-defina] dificilmente se sustentará o seu uso molar;
o que significa definir a ayahuasca para os kaxinawá e para outros como a verdadeira realidade escondida por trás da aparência: eis o deslocamento que se propõe aqui;
trata-se de um problema de regime enunciativo;
falar em lugar do outro: eis um problema arduamente enfrentado pela antropologia, problema que ganha desdobramentos inesperados com o perspectivismo e sua problematização das imagens do sujeito e da consciência;
a partir daí, não é mais tão simples o tráfego [e o tráfico] do enunciado entre a boca do indígena e a caneta do antropólogo;
isso porque tanto um quanto o outro não consistem mais em pontos de partida, mas em problemas a serem desdobrados em suas dimensões moleculares;

o conhecimento do antropólogo tomado como construção ou prática de linguagem [mais que como explicação da realidade indígena [ainda que se utilizando de seus termos]] se volta para uma apropriação desse conhecimento visando faze-lo falar ou contrapor-se à tradição do conhecimento ocidental moderno;

para tanto, descarta a construção discursiva: para os kaxinawá o xamanismo é isso;
sua abordagem se caracteriza por dar voz ao material etnográfico com a seguinte ressalva: o que significa dizer que para os kaxinawá [dizer que] o xamanismo é isso;
só assim o enunciado ganha sua dimensão epistêmica que o colocará frente a frente com o saber branco;
esse deslocamento evitará um sem número de confusões na utilização dos recursos aqui disponíveis;



no entanto, ao se desdobrar tais questões, o que se tem como horizonte é o uso desse instrumental em campo visando a apropriação desses processos em práticas e intervenção definidas nos diversos contextos [conceitual, jurídico, político, econômico etc] que configuram nosso campo de ação;


posfácios para os milton
que experiências, que exemplos levaram o grupo a acreditar e atravessar essa linha e o sentido irreversível que leva do índio ao caboclo e ao branco;
a relação dos processos histórico de um lado e de outro o processo de produção subjetiva, de ‘ressurgimento’ ou revitalização étnica;
a matéria desses dois processos é diversa;
não se pode mistura-los simplesmente, o que se pode fazer é imaginar sua articulação, mas diferenciando sua especificidade;
o processo histórico se dá, mas esse processo histórico pode ser apropriado e se desdobrar de formas diversas;
o que não dá é para historicizar o processo subjetivo, pois ele reformula certa imagem da história;
não dá também para abolir a história nesse caso, pois o processo de subjetivação no caso é imaginado por uma relação de ascendência étnica, marcada por eventos imaginados na forma da história;
a própria história, no caso, possibilita um processo de diferenciação que é distinto de sua função de integração do diferente (indiferenciação) numa homogeneidade envolvente;
as diferenciações internas desses regimes de socialidade é reduzida a uma única socialidade definida como indígena;
apagam-se as diferenciações que fazem desses regimes um complexo de relações sociais;
seus processos de subjetivação constituem a chave da dinâmica diferenciante nesses regimes de socialidade;
nesse processo há perspectivas diversas: dessa miríade de pontos de vista dos povos que se diferenciam em suas práticas diferenciantes de socialidade à perspectiva englobante e homogeneizadora da sociedade envolvente;
trazer para o pensamento e para o papel a possibilidade de outros pontos de vista, de perspectivas diversas, é romper com a imagem de um universo monolítico e etnocêntrico;
cabocla regina: história ou mito;
qual a matéria da história e a matéria do mito?
o mito e a história são incompatíveis?
segundo qual imagem do conhecimento histórico o mito lhe seria incompatível?
o interesse nessas questões se deve ao fato de se perceber que não existe um ponto em que acaba a história e começa o mito;
o que há são forma de elaborar, escrituras e maneiras de imaginar diversas, formas de dispor e de considerar o discurso;
a teoria do enunciado de foucault visa demonstrar o caráter de convenção dessa linha demarcatória que definiria a diferença entre o discurso científico da história e a ficção mimética do mito;
trabalhar com histórias de vida já é uma opção por se abandonar a grande e não para vivenciá-la de dentro como se poderia pensar;
as micro-histórias e micro-políticas servem mais para se voltar contra o método histórico, para contradize-lo, que para aperfeiçoa-lo;
o caso dos milton é um caso paradigmático disso, pois com eles a história se transforma em experiência, ela deixa o espaço intocável dos livros e dos documentos, das datas irreversíveis e dos macroprocessos;
o flerte entre antropologia e história no livro d’os milton pode servir para reforçar a dependência disciplinar da abordagem antropológica em relação à história, a antropologia como discurso inerentemente histórico (e, daí, sociológico) ou para revelar pressupostos do discurso histórico, para demonstrar que, no limite, não existe história (que não seja um intensificador de poder), que não existe a história como a imaginamos, como uma grande narrativa científica dos acontecimentos definitivos, contraposta ao discurso mítico;
a idéia de verdade que daria sentido a essa imagem da história pode ser desconstruída como exigência extrínseca, como valor atribuído por sua função (de instrumento político);

nessa relação e nesse embate entre história e mito, o mito assume aqui uma função que sempre foi a dele mas que agora se evidencia: é a de articulador de um complexo de subjetivação;
esse complexo é composto de uma série de processos articulados;

o contrário ou o inverso desse processo que aqui sugiro é a intenção de se utilizar da autoridade de um discurso histórico para provar o processo subjetivo, para lhe dar legitimidade;
o discurso de poder histórico, com suas provas factuais, legitimaria assim a suposta verdade jurídica do caso, como tantas vezes tem sido feito na configuração da legislação ambiental brasileira, com seus ‘laudos científicos’, ou como sempre o fez a própria antropologia que reconhece no discurso histórico o discurso de estado que pode viabilizar a chamada ‘identificação’ e sua legitimidade jurídica;


uma coisa é pensar os caboclos como categoria étnica, resultados do cruzamento entre brancos e índios;
outra é pensar caboclos como uma categoria adotada para definir os índios de forma pejorativa;
outra ainda diversa é pensar no uso que se fez de uma categoria como caboclos para ocultar e promover identidades, para forjar subjetividades, para traficar alteridades;


a diferença entre essas três utilizações da noção de caboclos está em que nas duas primeiras se sustenta uma substância que justifica o nome, com a diferença que na segunda se lança uma visão crítica na forma de relacionar o signo ao que ele significa, essa refração que se costuma denominar ideologia;
na terceira, essa redução sígnica (não cínica) dá lugar a uma outra relação discursiva de enunciados;
aqui a noção de caboclos não ocorre com a naturalidade nominativa das palavras, ela acorre às necessidades daqueles que forjam discursos

nesse uso da expressão caboclo interessa menos o que seja [ou não seria] o tal caboclo e mais o funcionamento ou a utilização da expressão em determinado [e restrito] campo discursivo;
em tal campo discursivo a expressão não vale por sua suposta substância ou referente pois um enunciado como 'no acre não existem mais índios' [comum neste co-texto] pode redefinir tais interpretações/apropriações que fazemos da expressão aqui;

essa distinção de abordagens que agora me interessa marca formas de distintas e até dissidentes de apropriação da subjetividade;
na primeira se processa concepções identitárias que veiculam blocos homogêneos que encontram referência em coletivos humanos, seus referentes;
na outra a concepção que atua como marca subjetiva opera numa dinâmica molecular e serve para produzir recortes, alterações, distinções, para constituir ou destituir subjetividades;
serve menos para nominar e mais para criar subjetividades ou identidades, como se insiste em reduzir, sempre num campo gravitacional que tende para a ocidentalização compulsória;
assim, a concepção identitária se define ainda pelos pressupostos temporais que regem as transformações subjetivas das sociedades ocidentais modernas;
isso quer dizer: sempre evoluindo ou progredindo em direção à ocidentalização;

no entanto, o que se pode ver com a redescoberta dos índios que viraram caboclos para voltarem a ser índios é menos um fatalismo dessa condição e mais os mecanismos com que se apropriaram desses processos subjetivantes brancos e suas regras;
os próprios índios possuíam seus processos de subjetivação, muitas vezes mais complexos que esses com que tiveram que lidar;
apesar de sanguinárias e arbitrárias, essas regras não eram complexas: cristianização e batismo para garantir a sobrevivência, proibição do idioma para se disfarçar de caboclos, a marca do patrão tatuada na pele, ocultar qualquer marca da vida tribal etc;

a sua facilidade de tráfego entre essas subjetividades molares [as tais identidades] em que nos identificamos, de se disfarçarem [o que muitas vezes confundimos com uma qualquer capacidade de tolerância à diversidade como traço de brasilidade] consiste mesmo numa característica dos povos indígenas das mais interessantes a serem pesquisadas contra as etnocêntricas concepções do tempo, da história e do progresso encravadas em nosso conhecimento e que persistem latentes sob o verniz da novidade;
essa disposição de trafegar pela ocidentalidade ou mesmo pela diferença/alteridade pode resultar de algo como um anticorpus do processo de retaliação a que os tentamos submeter;
só assim, resistindo ao fatalismo e ao ressentimento que teremos vigor suficiente para empreender ou ceder à tão falada influência dos índios sobre nós, sobre o nosso pensamento, sobre nossa concepção do tempo, do progresso e do nosso futuro;
apenas percebendo sua diferença sob a capa de identidade [etnocídio gratuito mal disfarçado de civilização] que julgamos envolve-los, justificada na idéia de aculturação, é que poderíamos passar a reformular os valores do progresso que persistem referenciando nosso campo epistêmico;
tomando essa diferença onde antes só se vira identidade e afirmando a apropriação de diversos recursos e agenciamentos visando a proliferação de multiplicidade consiste numa possibilidade afirmativa de composição com os povos indígenas;


penso que atualmente o estruturalismo se inscreve no interior de uma grande transformação do saber das ciências humanas, que essa transformação tem por ápice menos a análise das estruturas do que o questionamento do estatuto antropológico, do estatuto do sujeito, do privilégio do homem;
e meu método se inscreve no quadro dessa transformação da mesma forma que o estruturalismo – ao lado dele, não nele;

foucault, ditos e escritos:1969


passou-se muito tempo em busca de uma ciência que proporcionasse uma imagem precisa ou uma descrição do homem, de sua natureza, de suas propriedades, de sua alma, de sua psiquê;
há tempos se busca uma definição do homem, sua descrição, sua decifração, seu processo de constituição;
das artes à biologia, da filosofia à religião, a psicologia, a antropologia, a economia;

o século que passou nos legou uma miríade de imagens do homem, de sua subjetividade, de sua 'natureza humana';

alinhar essas abordagens, tirar suas identidades e diferenças, analisar suas articulações, perceber o que permanecia e o que se modificava, possibilitou uma projeção da epistemologia que marcou o pensamento ou o exercício, as práticas de ação-pensamento deste começo de século;

isso porque se percebeu sobretudo uma prática de pensamento radicalmente atrelada e marcada por concepções tradicionais de abordagem, de conhecimento, de imaginação;
muitas dessas marcas da tradição se tornaram pressupostos, tantos pressupostos em que se apoiava nossa prática de conhecimento;
pressupostos relativos à linguagem, aos valores etc

detectou-se então que essas práticas se alinhavam pela abordagem objetiva característica do espírito científico;
isso funcionava em relação às diversas imagens que as ciências projetaram do homem moderno;
em que consiste o homem, onde está sua origem comum etc;