02 maio 2006


um bom exemplo de genealogia, para redefinir nosso quadro histórico, nossa santa ceia, é um conto de jorge luis borges: kafka y sus precursores;
simplesmente o autor esboça uma tese, compõe um ensaio literário sobre a obra do escritor tcheco, considerando que a obra de kafka, tão insólita, recupera seus percursores, então soterrados sob as pilhas de livros da biblioteca de babel;
o que o autor leu ou não leu? isso importa tanto quanto: o que o autor quis dizer com esse escrito? aqui o texto tem uma realidade própria, desvincula-se da psicologia do autor;
o texto de borges é um desdobramento de seu tema e da obra analisada; ele cria um campo textual que se consiste justamente do encontro dessas obras; cria uma dobra em que essas linhas se cruzam, linhas bem distintas, heterogêneas, que chegam a recriar a própria obra de kafka;
as influências não se dão por trás, não estão na intencionalidade do autor; elas são tecidas nas obras, como elementos estruturais, procedimentos técnicos, recursos expressivos etc;
o texto nos desvincula bruscamente de uma irrealidade histórica, de projeções transcendentes a um passado, de uma referência a um homem, um sujeito, um autor insuspeito;
somos acordados repentinamente de tal torpor, despertados então para a imanência do texto, sem pressuposições, sem história; o texto se cria em nossa frente, se tece sob os nossos olhos;
o problema da intertextualidade insere-se na pura textualidade da biblioteca de babel, desvinculado do autor, do contexto etc;
o texto é criado sobre o texto: não é um texto sobre um autor ou uma obra, não se refere mais ao texto como realidade transcendente, como referente; o texto é utilizado como material, serve a confecção do novo texto: é esse o tipo de precursor exigido no texto de borges;
essa dobra sobre o texto, sobre a imanência da textualidade, é uma potência na obra de borges; sua obra é um arsenal de instrumentos para escapar aos quadros confinadores da tradição historico-transcendental do século XIX;
essa releitura revolucionária que se propóe a esse vetor da literatura fantástica nos leva ao cerna da própria literatura fantástica: a ruptura com a mímese tradicional, ou seja, a autonomia do texto ante a “realidade” da época;
autonomia da textualidade: o referente é destronado, a literatura não representa a realidade, ela é pura criação, ela descria a realidade, sua matéria é virtual; o espectro do referente ainda modela sua realidade: a literatura do século XX ainda convive com o pensamento (universo mental) do século XIX;
tem-se neste texto um exemplo do procedimento genealógico instaurado por nietzsche na sua genealogia; o texto dá a ver seu corpo, o seu processo de constituição é a construção de seu próprio corpo: essa instauração do corpo inscrito na imanência da textualidade é a exigência fundamental do procedimento genealógico;
não importa aqui a referência a um autor ou uma obra, por mais que nossa paisagem mental ainda nos enquadre na santa ceia, o que vale aqui é o texto como matéria de composição, como bricolage, como incrição de um corpo textual;
é nisso que resulta o texto: pura textualidade imanente, apropriando-se inclusive da própria referência, campo dominado pelo trascendente;
foto fonte: constructing kafka

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