27 setembro 2007

rizomas

dou graças a aracy lopes da silva o rizoma na obra de viveiros de castro;
em seu texto pequenos xamãs ela faz uma extensa citação que me ganhou com a noção de corporalidade, qualquer coisa como a corporalidade como categoria central da constituição do conhecimento indígena;
isso, somado ao xamanismo me fez bater no perspectivismo;
daí não saí, roí o osso do perspectivismo por anos, converti-me e comecei a pregar;
fiquei possuído por aquele texto que não cessava de se desdobrar;
com ele, aprofundei-me no problema epistêmico da natureza e do objeto, da objetividade que caracteriza nossa matriz filosófica;
tais problemas ganharam uma dimensão fundamental em minha dissertação que aí, já quase na final, encontra seu problema teórico, articulando-o aos meus problemas de campo: ritual, canto-dança, xamanismo, inspiração, êxtase, conhecimento guarani;
quando pensava que tinha chegado, encarei o perspectivismo com uma turma de ciências sociais, no sexto período, era a primeira vez que dava antropologia educacional;
entrei pela corporalidade com a aracy e mandei o perspectivismo amortecido por uma entrevista com o autor;
o lombo das gentes estalou, foram aulas inesquecíveis, para mim certamente;
um de meus alunos me disse algo que não esqueci, também pudera, disse que tinha aprendido naquele curso o que não aprendera em anos de universidade federal;
o problema era as imagens da natureza de um lado no idealismo do conhecimento positivista da tradição ocidental em polêmica com, de outro, a corporalidade o xamanismo indígena imaginado pelo perspectivismo;

depois de tantos anos e linhas escritas sobre a imaginação da natureza nos saberes e nas instituições indigenas que atinei para o problema supostamente simétrico e oposto da imagem de sociedade imaginado e problematizado em nossa tradição;

a solução da antropologia regional para o problema de classificação da morfologia social colocado pelas sociedades ameríndias foi operar com dispositivos híbridos, as sociocosmologias, que traziam a dimensão simbólica articulada aos dados empíricos;
a idéia foi trazer para o jogo as definições de socialidade nativas, redefinindo a tradição descritivista do empirismo europeu;
a corporalidade foi uma das dimensões fundamentais nessa transposição;
cabia à antropologia regional levar a sério o animismo e as metamorfoses do xamanismo indígenas para chegar às formas dessa socialidade;
por aí se chega ao perpectivismo que não se restringe a uma epistemologia como pensava no tempo da dissertação e conforme o autor em o nativo relativo;
ele possui essa dimensão social, essa imaginação da socialidade, que foi por onde a antropologia brasileira pode dar conta de definir elementos que dessem conta da morfologia social ameríndia;


assim que, articulada à metamorfose, a guerra tornou-se outra instituição central para a compreensão dessa socialidade;
por extensão à guerra, o sistema de parentesco foi revisto a partir da instituição da afinidade pelas alianças de casamento;
sabe-se que entre os grupos guerreiros as alianças de casamento, constituindo relações de afinidade através da troca de mulheres tem papel contitutivo;
a guerra que está vinculada em nossa concepção contratualista de sociedade à dissolução social, pode assim ser elemento constitutivo da socialidade ameríndia;

Marcadores: ,

os kontanawa e o futuro da pesquisa


é preciso entender por acontecimento não uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende, e uma outra que faz sua entrada mascarada;
foucault, microfísica: 28

estou procurando montar e me referir a dois modelos, ou dois modos de apropriação de um modelo, um do pesquisador e outro do pesquisado;
o modelo do pesquisador fixa seus pontos no passado, a ciência tem o passado por referência, cria o futuroa partir do passado, tira o futuro do passado;
o segundo tem o passado como circunscrição, determinação, círculo e limite com o qual quer romper para fazer a história, transformar o passado e não perpetua-lo, tornar-se vítima dele nesse momento determinante do contato, dos projetos que envolvem a pesquisa e a presença do pesquisador;
o pesquisador se torna parte dessa guerra e não seu espectador passivo como o quer a teoria;
o ponto fixo do pesquisador do modelo histórico dá lugar à dinâmica que caracteriza o acontecimento;
a lógica da guerra, do acontecimento, serve melhor que o modelo histórico para acompanhar esse processo de apropriação que o pesquisado faz da pesquisa;
esse jogo de forças é apropriado pelo pesquisador quando este se desloca do probema da identidade e das regularidades próprias da retórica pseudo-científica, para enfrentar o problema dos processos de subjetivação que o pressupõem em campo como agente ativo, tirando-o da passividade própria do modelo positivista;
só então ele pode se dar conta da projeção para o futuro na qual o lança o pesquisado;
por sua própria condição o contexto emerge em torno do pesquisado;
emerge de uma perspectiva distinta daquela que o aborda e pode abordar, entre outras coisas por sua condição teórica, o pesquisador;
há uma diferença que dependerá do pesquisado superar, para que possa se apropriar dos recursos que o pequisador tem a oferecer;
na prática
a apropriação dos milton sobre o livro da mariana é um caso interessante de se detalhar, até porque ela própria já assumiu numa das postagens de seu blog o processo de subjetivação por que tem passado a mariana antropóloga;
e esse desdobramento, da subjetivação que afeta o pesquisador, é outra dimensão em que nos interessa investir mais, pois, como já me referi diversas vezes, há um grande investimento, ao longo de minha pesquisa com os guarani, na abordagem de meus processos de subjetivação;
pois bem, mariana escreveu um livro de antropologia rural cujo subtítulo publica cem anos de história nos seringais;
é notável, já no título, a proporção que o passado toma em sua abordagem etnográfica da família e do coletivo estudados;
num passado não muito distante, a pesquisadora se depara com um parentesco indígena que marca silenciosamente grande parte da família acreana, especialmente em sua porção feminina;
e por aí vai, em direção ao passado, etnografando fascinada as histórias de caboclo do patriarca e da matriarca;
o ponto culminante do livro consiste no elo que liga a família milton, propriamente dona mariana, aos seus ancestrais indígenas, quando esta conta a história de dona regina sua mãe e o episódio de sua captura por seringueiros;
o ponto mais antigo das histórias dos milton, torna-se a história seminal para a constituição de um futuro;
a história registrada, colocada no papel, assinada e documentada torna-se de passado remoto em presente e futuro urgentes;
coordenado ao movimento político interno da reserva, que não teve um desenvolvimento satisfatório, os milton encontram no livro a linha que conduzirá o futuro da família que vivenciou a aliança dos povos da floresta e conheceu o fio tênue que distingue índios de seringueiros;
a comunhão com a cultura indígena, que não foi testemunhada por tantos outros moradores da reserva, tocou fundo a vida e o destino dessa família;
a convicção da família na reserva extrativista do alto juruá é tão intensa que, não podendo modificar a realidade externa, encontraram na transformação interna o sentido e a saída para sua história de luta na construção desse espaço;
e a vantangem deste percurso não se restringe ao problema da subjetividade que vimos perseguindo, como também permite uma abordagem do problema temporal que despiste as velhas recaídas cognitivistas via esse perspectivismo todo particular;

Marcadores: ,

06 setembro 2007



não posso conceber uma antropologia sem filosofia;
a antropologia tanto quanto a filosofia estão baseadas em teorias do conhecimento;
talvez a antropologia (não passe de) seja um capítulo da filosofia (o pensamento selvagem não atesta isso..., deleuze já não afirmou isso em anti-édipo...);
em minha prática de pensamento, ambas se articularam em propósitos definidos: fazer do pensamento um jogo, uma prática e um exercício de se desvincular da concepção de verdade explicativa do positivismo, desautomatizar o pensamento e a forma-sujeito que ele implica utilizando-se desse intercessor que é o pensamento outro;
pois isso só se faria compreendendo minimamente do que se trata o pensar ocidental, quais as formas que a filosofia utilizou para se desdobrar, para refletir o pensamento em seus princípios e pressupostos;
as formas do rebanho e as maneiras de lidar com ele, de moldar-lhe o pensamento: afinal, não há psicologia senão a do padre...
portanto, para desconstruir o meu sujeito devo articula-lo com minha dimensão de sujeito de conhecimento;
inicialmente para romper essa unidade inicial em que me confundo com o pensamento;
essa ruptura se dá com a multiplicidade do devires que definem o pensamento;
é isso! pois fora essa a invenção de sócrates, essa consciência racional, essa identidade do sujeito com a razão, com o pensamento;
nisso ele foi predestinado, na confecção desse modelo de subjetividade que ainda hoje no engana;
por isso o jogo, a multiplicidade, contra essa unidade essencial;

***

incita-me que a moral seja uma grande incógnita seja para a antropologia, a filosofia, ou os pontos em que elas se articulam;
a ordem moral é um poderoso instrumento do discurso religioso de nossa civilização;
é um elemento central para uma história da verdade que proponha qualquer continuidade entre a verdade religiosa e a científica;

qualquer questão a ser colocada pela antropologia deve partir de uma perspectiva epistêmica, deve lidar com o confronto de pensamentos diversos;
quando se parte de um horizonte de pensamento homogêneo, não problemático, já se fez a redução, já se colocou a serviço o arsenal da moral civilizatória e colonizadora;

o confronto desses pensamentos tem o mérito de desestabilizar um campo para verdades, um horizonte positivo que possa afirmar verdades sobre o outro e seu pensamento, dado que o outro também tem seu campo de relativas verdades;

acontece que o pensamento conflituoso dessa antropologia não poderia tornar-se unânime, havendo ainda muito espaço ainda para o positivismo;
essa antropologia do pensamento selvagem segue como resistência, como proposta de reformulação dos princípios do pensamento ocidental via crítica da representação e crítica dos regimes sígnicos;

Marcadores: ,

27 julho 2007

pingo em bate papo com lama (2)

arquitetos... continu...

para aqueles que não conhecem o pingo, posso apresenta-lo como um monstro dos saberes da floresta, que há décadas vem pesquisando as zonas de fronteira, pacíficas ou conflituosas, do conhecimento ocidental e do conhecimento local;

foi um dos fundadores do projeto seringueiro e de lá pra cá tem desenvolvido uma pesquisa teórica e prática para o reconhecimento das especificidades desse conhecimento, de sua organização, de sua didática, procurando fornecer elementos para a reflexão dos professores da floresta;

a idéia de modelo é um elemento em que pingo centra fogo;

atualmente procura desenvolver uma proposta de ensino de ciências para escolas indígenas baseada na articulação entre as disciplinas, um entendimento das ciências que opere a partir dos problemas, interligando os recursos da física, da química e até de outras;

a idéia é amenizar a importância exagerada dada à teoria, síndrome do modelo ocidental, e trazer as questões para a experiência;

Marcadores: , , ,

20 maio 2007

exibição e debate sobre o documentário La rota del Pacífico

foram diversas as intervenções do público, divididas em dois blocos;

glória perguntou sobre a intenção de inserir os seringueiros e seu problema no filme, questão que muito eu me fazia também; depois, insatisfeita com a resposta, ela mesma voltou ao microfone e comentou sua questão;

emilson deu a mesma resposta que dava pra mim; referiu-se ao problema dessas pessoas que são brasileiros e sofrem essa expulsão;

gerson pegou o gancho para teorizar sobre o nacionalismo do senso comum, cuja ideologia vemos ser reproduzida nos depoimentos, fazendo uma crítica impiedosa à essa ideologia que instaura fronteiras e diferenças;

em minha fala procurei colocar que minhas diferenças em relação ao pensamento de emilson tiveram papel criativo e complementar, admirava seu trabalho e sua convicção otimista que fez com que o filme acontecesse;

sentimos todos a falta do professor marcos afonso que estava em sala de aula e não pode trazer sua turma para a exibição do filme e o debate;

numa pergunta sobre o que tinham os seringueiros a dizer, emilson sagaz passou a palavra para raimundo chagas responder, quando este pode mostrar seu discurso articulado e trazer um pouco o ambiente da floresta, da fronteira e de seus perigos num clima de guerra;

seu pensamento conservador e militarista se fez sentir em sua animosidade aos bolivianos e mesmo seu preconceito com os índios que disse serem pessoas em quem não se pode confiar, criticando o governo boliviano, chamando inclusive evo morales pela alcunha de o índio, sem considerar o conflito numa perspectiva política;

a noite fechou com consistência, os estudantes estavam impressionados com o resultado do debate e seu rendimento, tendo podido estabelecer relações diversas com o que estamos estudando e as perspectivas antropológicas e políticas apresentadas;

Marcadores: , ,

rever o filme é uma experiência estranha, gosto das imagens, mas vejo muitos defeitos de continuidade, de narrativa; o interessante é que a maior parte das pessoas não percebe esses problemas técnicos e pode ver o filme mais por seu conteúdo; aí os elogios são muitos, as pessoas que puderam assistir ao filme ficaram encantadas;

emilson iniciou contando a experiência de produção do filme;

gerson iniciou com uma desconstrução do que entendemos por fronteira; acho interessantes as pontes que ele tem estabelecido entre seu marxismo de historiador e a antropologia; foi fazendo uma desmontagem histórica das fronteiras como marcos naturais, para fazer surgir a fronteira criada pelo homem na delimitação de seu território, pra chegar então à fronteira simbólica, referida no filme, de sentido metafórico; desta, inicialmente, ele beirou a fronteira;

foi delineando então o perfil monológico do estado que tem por fim integrar múltiplas culturas numa mesma ideologia institucional sob a idéia da nação e do nacionalismo;

o estado com esse seu perfil homogeneizador servirá de contraponto dialético perfeito para a exposição do multiculturalismo;

depois, em sua análise antropológica, via Bhaba e sua antropologia pós-colonialista, enveredou pelas características do homem pós-moderno, ou seja, depois que o estado já cumpriu a função de unificar o mercado global, o homem pós-moderno tem o direito à multiculturalidade;

o que interessou bastante foi que ele se referiu ao lixo humano, chamando a atenção para o caráter discriminatório e marginalizante do supercapitalismo do mercado global informatizado;

Marcadores: , ,

exibição de la rota del pacífico e debate na uninorte

foi na noite de ontem (18/05), na biblioteca da uninorte, a exibição do filme la rota del pacífico – culturas de fronteira, seguida do debate com o diretor do documentário, emilson ferreira, e do professor gerson albuquerque, doutor em história.

tivemos ainda a presença de raimundo chagas, figura fundamental na realização do documentário como articulador, interlocutor e guia;

além desses o evento contou com a presença dos professores valdir calixto, na foto, professora glória, bem como do meu parceiro na realização do evento, o professor de ciência política professor israel;

a resposta dos estudantes foi bastante positiva, o auditório improvisado estava cheio, as intervenções foram em grande número e aqueles que me procuraram ao final estavam animados com o resultado;

Marcadores: , ,

17 maio 2007

tradução e traição 2

ao problema

há pouco mais de um século, quando a antropologia começou a se definir como campo autônomo de conhecimento, tanto epistêmica como metodologicamente, desprendendo-se dos velhos preceitos transcendentais da sociologia cientista e positivista, passou, então, a teorizar sobre o processo de produção de socialidade, definindo o seu caráter psicológico a partir dos estudos de simbologia religiosa e dos esquemas mentais dos selvagens;

a partir daí, as ciências sociais não seriam mais as mesmas;

com a emergência do estruturalismo, a novidade se desdobra nas especificidades metodológicas dessa forma de produzir conhecimento entre uma e outra sociedade;

sem positivar (como se constitui) a substância da socialidade em uma ou em outra sociedade, o sentido passa a correr entre elas, no interstício entre sistemas de conhecimento que simulam socialidades culturalmente construídas e reconstruídas (especialmente no caso da antropologia, assim como no do xamanismo);

a produção de conhecimento antropológico toma-se a si não mais na concepção realista, que busca descrever um real pré-determinado, mas se apresenta na gênese auto-constitutiva em relação com outro sistema, o qual também não tem por objetivo descrever positivamente, na forma da descrição realista, e sim apropriar-se de suas virtualidades, de sua imagem, visando reconfigurar seu próprio realismo com alcance epistêmico;

tradução

poucos de nós entendemos o gesto de manuela carneiro da cunha ao procurar apoio teórico na filosofia da tradução de walter benjamin para teorizar sobre o xamanismo;

com uma mistura tão heterodoxa, não nos passava pela cabeça que a autora retomava um texto clássico e mesmo fundador de um novo horizonte para a disciplina, horizonte esse que ainda hoje a orienta, como tem demonstrado o trabalho de manuela, de viveiros de castro e outros antropólogos que vêem, na antropologia, chaves que a conectam epistemologicamente ao pensamento filosófico;

pois não são aleatórias e gratuitas suas referências à deleuze e serres em relação a um ponto que é o central de sua tese sobre a tradução no xamanismo;

a tradução aqui não traduz uma linguagem por outra, mantendo o mundo fixo de uma à outra; o que se tem é uma tradução que apresenta consigo possibilidades de intervenção no campo de sentido que configura o mundo traduzido, ou seja, esse híbrido de essência e aparência que é o sentido em sua constituição;

taí a eficácia simbólica comum ao xamã e ao antropólogo, que teria aprendido com aquele, via Lévi-Strauss, a exorcizar a vontade de verdade que o mantinha preso a sua projeção transcendental de entidades substantivadas pressupostas de seu pensamento e de seu texto, liberando para pensamentos movidos pela simulação, pela produção de sentidos e verdades a partir da aparência;

a lição do xamã é uma lição antropológica, compreende-se que o deslocamento da antropologia para a análise da mística e da produção coletiva de sentido tem uma porta secreta que vai dar no próprio pensamento antropológico, o pensamento antropológico simula o xamanismo ao invés de se referir a ele realística e positivamente;


Marcadores: , , ,

a hermenêutica literária e, mais recentemente, os estudos do teatro definiram meu estar à vontade no universo das aparências e simulações de que resulta o exercício de supressão da dimensão das essências no pensamento;

essa dicotomia aparência/essência está na gênese da filosofia, do pensamento racional, quando este se distingue da mitologia e da literatura, para lidar com a realidade exterior ao pensamento, para definir objetivamente o mundo e ordenar racionalmente o cosmos;

relacionar pensamento e realidade, eis ainda hoje, o problema metodológico que se procura dar conta;

quais as especificidades do pensamento e as especificidades do mundo? poderá o pensamento refletir fielmente esse outro universo? como evitar os erros dos sentidos e faze-los parte da construção do conhecimento? se a linguagem não reflete, e sim constrói realidades por meio do sentido, como lidar com a tradição do nosso pensamento?

essas são questões que atravessam os séculos de pensamento filosófico no ocidente e estão articuladas com a dicotomia referida;

o exercício de supressão dessa dicotomia é típico de certa teoria antropológica que tem criticado a substantivação de alguns de seus conceitos, tornados entes no tal processo de atavismo do pensamento clássico;

refiro-me à velha parentela de dicotomias pensamento/real, natureza/sobrenatureza, natureza/cultura, essência/aparência;

na antropologia, o problema filosófico da representação versus construção da realidade via linguagem ganhará novo sentido devido ao seu trabalho na fronteira das culturas, das línguas e do sistemas de conhecimento ou dos pensamentos, assim como, pelos problemas político-epistemológicos que serão colocados por essa disciplina;

essa problematização de origem filosófica está na gênese da antropologia francesa de mauss a lévi-strauss;

mauss, a partir de seus trabalhos com durkheim, dá início à definição metodológica de um instrumental que viabilize a abordagem da produção de socialidade, redefinindo a abordagem cientista da sociologia, que intentava objetivar os fatos sociais;

buscando suporte no lado frágil da sociologia, o indivíduo e sua psique, a antropologia de Mauss vai dar vazão, vai desdobrar metodologicamente, para as dimensões metatextuais, enquanto a sociologia de durkheim buscava na sociedade, os processos de produção de sentido na sociedade, onde conduzirá sua concepção de cultura, não restrita a produto da sociedade, e sim numa dialética de produção e reprodução da própria socialidade;

Marcadores: , , ,

13 maio 2007

o pensamento que predomina no século dezenove, para universalizar sua realidade econômico-política de revolução industrial, assume radicalmente um caráter doutrinário, daí advém nosso desenvolvimentismo obsessivo, ensinado nas igrejas e nas escolas;

esse pensamento insiste no velho par opositivo evolução/atraso, associado à técnica, à tecnologia, que lhe serve de critério, de aval para atestar sua superioridade desenvolvimentista;

esse critério de valor é típico de nossa sociedade ocidental, cuja retórica evolucionista servirá como instrumento político-jurídico para dominar e explorar os grupos que se encontrassem à margem da suposta unidade transcendental evoluída da sociedade européia, resultado do enxerto das tradições judaico-cristã e greco-romana;

contra um discurso tão unidimensional e conservador, numa realidade tão desigual (brasil), em que mesmo o capitalismo, essa doutrina da desigualdade, se mostrava desconfortável dada a estrutura colonial governada pelas oligarquias, a qual deveria ser encaixada na retórica liberal, o que o movimento sociais utilizaram, não só no acre como no brasil, foi a boa e velha retórica marxista;

no contexto em que surge a antropologia, não havia, à disposição, instrumentos políticos de manifestação e seus respectivos espaços de expressão (hoje haverá...?);

Marcadores: , ,


o interesse de se estudar a luta pela garantia dos direitos sobre conhecimentos tradicionais na perspectiva jurídica no estado do acre se deve às contribuições que o estado tem na definição da legislação socioambiental federal e no ordenamento do sistema nacional de unidades de conservação;

o estado possui um campo fértil para a pesquisa com profissionais que atuam na área com o referido tema;

desde as primeiras intervenções no estado por parte dos ambientalistas já tinha em vista esse suporte jurídico em formação, o qual não se imita ao ordenamento jurídico interno, e sim já está associado a um sistema que tem sua referência numa legislação internacional;

o socioambientalismo resulta da aliança entre essas forças internacionais e os insípidos movimentos sociais que, mesmo sem condições políticas no período da ditadura (a qual também resulta da velha influência imperial[ista]), emergiram nos marginalizados contexto da exploração ruralista, no qual a propriedade da terra e a exploração do trabalho remetiam, até essa época, à velha estrutura escravagista da experiência colonial;

assim, os movimentos sociais que tem sua gênese na luta operária, quando se instaura a função do indivíduo que, ao mesmo tempo que vende sua mão de obra, é o consumidor dessa sociedade, o que lhe dá um outro status nesse jogo econômico, associado à exploração dos trabalhadores, esses movimentos se desdobram com a expansão desse capitalismo europeu, acompanhado de seu modelo de ordenação política e jurídica, chega de forma particular às colônias, as quais já estão preparadas para recebe-lo com suas ditaduras devidamente instauradas;

foi por essa época que os trabalhadores do campo começaram a se organizar em sindicatos para conhecer e garantir os seus direitos junto à esfera pública, constituindo/efetivando mesmo essa esfera pública, visto que a política e o estado no brasil se constituem sob o signo do patrimonialismo liberal, que tem cooptado o estado liberal em função de políticas nada públicas que mantém a estrutura colonial e ruralista do brasil, mesmo com toda maquiagem progressista e democrática;

pois ainda se tem a impressão que a esfera pública, esfera do exercício da política se cria com decretos régios ou presidenciais, visto que em nossa histórica repressão o coro dos contentes é que sempre é agraciado com os bacalhais (pra lembrar o popular chacrinha);

o bom é que esse coro dos contentes que oprime as novas configurações de realidades políticas está sempre aí, marcando presença pra que não esqueçamos da ilusão de paz e acomodação em que estamos imersos, pois essa paz tem que ser mantida à custa de uma violência explícita;

estamos num contexto de uma total polaridade entre estado e populações tradicionais, polaridade alimentada pelo próprio capitalismo, pelas estruturas históricas de apropriação dos dispositivos públicos de poder por parte das oligarquias;

aqui a união entre estado e movimentos sociais, devido à própria natureza do poder do estado funciona como institucionalização e burocratização de um poder cuja força é justamente a de fazer polaridade ao poder dito público;

a convivência dos movimentos sociais junto ao estado e seus ricos projetos serve, sobretudo, para amansar e fazer o marketing democrático de um estado autoritário;

o sistema nacional de unidades de conservação determina assim que, dada a experiência política do socioambientalismo, que, como já se falou, não resulta exclusivamente da luta dos movimentos sociais, não fosse o interesse da política internacional do ambientalismo, se componham, determinados pelas instituições responsáveis (ibama, mma) grupos de trabalho definidos por pesquisadores e cientistas que vão estudar e dar legitimidade às formas tradicionais de conhecimento da natureza;

essa normatização, e esse contexto, que fará surgir o conhecimento tradicional como figura jurídica.

o primeiro elemento dessa apropriação coletiva da propriedade, característica principal na definição jurídica desses conhecimentos, o fato de serem coletivos, é a forma de organização da terra, que deve, no caso da reservas extrativistas respeitar as estradas de seringa e outros ordenamentos espaciais da sua organização social, enquanto o lotes que o incra tinha como modelo de colonização visavam recortes aleatórios em relação a essa organização;

assim, a primeira face dessa figura jurídica dos conhecimentos tradicionais já se define na própria organização e determinação do território na forma das reservas extrativistas, que, se acreditava, possibilitariam a reprodução da cultura extrativista ou sua reconfiguração própria;

a figura epistemológica desses conhecimentos resultará, nesse recorte, principalmente do problema que consiste na organização desses grupos de trabalho para reconhecimento das formas do conhecimento tradicional por parte dos cientistas;

essa questão problemática se dará no choque e incompatibilidade milenar e histórica desses conhecimentos, visto que esse choque e incompatibilidade se encontram no próprio mito fundador da sociedade ocidental e sua cultura científica de matriz greco-romana;

nesse mito fundador, o saberes tradicionais e coletivos se contrapõem aos saberes individuais, assinados, com autoria, individuais, os quais inventam, atestam e dão forma à figura jurídica do indivíduo como figura pública ideal portador de direito e deveres;

Marcadores: , , ,

o interesse sobre a dimensão da discursividade, a abordagem discursiva, o método filosófico que se volta para o conceito e seu plano de imanência como dimensão estrita do relacionismo, em que o sentido se movimenta nas superfícies, é o da supressão da dimensão transcendente;

nesse campo, segundo as regras que o definem, nada escapa à construção de sentido discursiva, a linguagem é o campo que determina o sentido;

dessa forma, a distinção primordial entre cultura e natureza perde o sentido devido à supressão de qualquer campo exterior à cultura;

a existência aqui passa a ser uma existência conceitual, o conceito só tem sentido e opera num campo de sentido prescrito e determinado;

essa dicotomia serve à definição do homem e sua imediata separação desse suposto universo: a natureza;
***

o que se requer talvez seja fazer uma análise das experiências que deram certo desde a criação das reservas extrativistas;

analisar, assim, os projetos de gestão em sua matriz epistemológica, pois aí está a contribuição da antropologia brasileira;

o que a experiência me mostrou, portanto falo com base na amostragem, num recorte, e não a partir da análise geral dos processos de gestão em todas as reservas extrativistas do acre, foi a falta de uma dimensão antropológica;

aliás, esse era justamente o problema que se visava abordar como demanda: a integração entre técnicos de gestão ambiental (seater) da resex e os moradores, agentes florestais comunitários;

no entanto, essa integração não parece muito clara ao próprio processo de gestão como um todo, no qual impera o tecnicismo;

nesse processo, o manejo aparece como forma oficial dos processos de gestão de território;

a falta de um distanciamento antropológico leva os técnicos do manejo, os engenheiros florestais, a uma ilusão bastante antiga, uma lição elementar da filosofia que foi apropriada pela antropologia como princípio da disciplina; trata-se da confusão entre natureza e cultura;

os desdobramentos de nossos dogmas modernistas e humanizadores de tradição colonialista e evolucionista conduziram o senso comum dos técnicos a um pseudo-respeito às culturas tradicionais;

digo pseudo por que não se sabe ao menos o que é cultura e se quer arrogar sobre o respeito a essas culturas, sem um devido acompanhamento antropológico e seus respectivos pareceres;

não que eu ache que tais questões só possam ser abordadas pelos antropólogos profissionais, esses técnicos da cultura;

é assim que esses cérebros tecnicizantes querem respeitar a cultura de seus interlocutores inserindo o seu tecnicismo no cérebro desses, afinal seu horizonte é este e não tendo sido dele, isso seria respeito;

pois é, para quem só conhece o mundo pela televisão, esta é seu critério de humanidade;

por que isso acontece, digo epistemologicamente, por que esses cérebros acreditam, com toda sua convicção que podem coexistir muitas culturas, é até humanisticamente muito bonito e, aliás, a engenharia florestal poderia ser uma ciência humana, não fosse o fato de que, quanto à natureza, aí a conversa é outra, estamos falando se seu território e, neste não se admite que entre e seria até absurdo, onde já se viu, que entrasse qualquer outro;

é assim, que a cultura do outro deve ser respeitada, mas não tem valor de mercado, é só de direito, café com leite;

taí o problema político que está minando o modelo das reservas extrativistas e já se generaliza na boca dos engenheiros florestais como fracassos das reservas;

só não assumem que o fracasso é da reserva deles, de seu modelo de gestão, seu manejo madereireiro;

Marcadores: , ,

cabe situar a questão dos conhecimentos tradicionais como tema que nos possibilitará o entendimento dos movimentos e das veredas da antropologia;

o caminho de conquista do reconhecimento de saberes que se contrapusessem à ciência ocidental tem sido um árduo caminho de conquistas políticas;

trazer o conhecimento para o campo da cultura, deslocando-o do âmbito da natureza, ao qual o havíamos assimilado equivale a uma revolução política;

como toda revolução, os movimentos populares são também aqui utilizados como massa de manobra e o processo é assumido por grupos hegemônicos que dele se apropriam;

dois casos são: a apropriação do Estado em seu reconhecimento da educação indígena e o reconhecimento legal dos conhecimentos tradicionais visando reprimir a apropriação indevida desses conhecimentos na forma da biotecnologia e do sistema de patenteamento;

como a antropologia chegou a esses problemas, quais e como se deram as transformações de seus marcos teóricos, dos problemas por eles abordados e neles resultantes?

são essas questões que tornam a serem feitas, que podem ser reformuladas, a partir do novo contexto e de suas emergências, reformulando assim os problemas;

o evolucionismo resulta nas ciências humanas dos desdobramentos da dialética hegeliana como forma de contextualizar o pensamento numa dinâmica histórica e cultural;

um golpe no universalismo idealista, mas que acaba por incorrer, devido a pertencer à mesma matriz, em outro universalismo: o evolucionismo e derivados;

a antropologia se concebe como produto do meio evolucionista, fazendo do primitivo seu material de estudo;

sua constituição como disciplina autônoma, no entanto, com independência metodológica, dependerá da ruptura com o seio em que foi gerada;

de estudo dos povos primitivos à análise do etnocentrismo, seus pressupostos e conseqüências, como forma própria do pensamento ocidental, consiste numa reviravolta e tanto;

o estruturalismo leva a cabo a ruptura com as formas do evolucionismo, iniciada pelo difusionismo e pelo funcionalismo;

o estruturalismo desloca o problema da antropologia do exterior, da análise da sociedade indígena com nossos conceitos e pensamentos, à análise indígena como produção, num primeiro momento de um pensamento da sociedade (em que se discute ainda o problema do consciente e do inconsciente), num segundo momento como produção de socialidade e da socialidade como produção de pensamento;

nesse exterior, nessa análise da realidade, que coloca de lado o pensamento indígena, estamos em vantagem;

politicamente, muitos processos serão desdobrados; para não se colocar, assim o problema político da epistemologia, por muito tempo ainda se vai desqualificar não só o sujeito agente do outro, sua pessoa estritamente política, supostamente incapaz de cidadania, forma própria da retórica da igualdade democrática, também será, num mesmo gesto, desqualificado seu pensamento, seu sujeito pensante, o outro como sujeito do conhecimento;

é assim que definimos a natureza como uma instância própria e evidente de nosso modelo de conhecimento; é a esse modelo que a natureza de fato pertence;

natureza, aqui, refere-se a essa dimensão transcendente que determina o conhecimento, ditando sua ordem ao plano de imanência, que se constitui na chave discursividade, subjetividade e política;

o deslocamento estruturalista, ao suprimir essa dimensão transcendental com instância organizadora, propõe uma experiência textual que resulta na articulação dessa chave;

é nessa chave que a antropologia conduzirá um método que resulta na constituição de um pensamento indígena virtual;

esse problema, possibilitado pela discursividade, pela autonomia metodológica da linguagem como instância de produção social de sentido, deverá voltar a antropologia para uma análise abrangente dos pressupostos epistêmicos que condicionam o pensamento;

taí o porque de Deleuze e Guattari afirmarem a Genealogia da Moral de Nietzsche já como a obra capital da antropologia;

Marcadores: , ,

08 maio 2007

pensar diferentecabe situar a questão dos conhecimentos tradicionais como tema que nos possibilitará o entendimento dos movimentos e das veredas da antropologia;

o caminho de conquista do reconhecimento de saberes que se contrapusessem à ciência ocidental tem sido um árduo caminho de conquistas políticas;

trazer o conhecimento para o campo da cultura, deslocando-o do âmbito da natureza, ao qual o havíamos assimilado equivale a uma revolução política;

como toda revolução, os movimentos populares são também aqui utilizados como massa de manobra e o processo é assumido por grupos hegemônicos que dele se apropriam;

dois casos são: a apropriação do estado em seu reconhecimento da educação indígena e o reconhecimento legal dos conhecimentos tradicionais visando reprimir a apropriação indevida desses conhecimentos na forma da biotecnologia e do sistema de patenteamento;

como a antropologia chegou a esses problemas, quais e como se deram as transformações de seus marcos teóricos, dos problemas por eles abordados e neles resultantes?

são essas questões que tornam a serem feitas, que podem ser reformuladas, a partir do novo contexto e de suas emergências, reformulando assim os problemas;

o evolucionismo resulta nas ciências humanas dos desdobramentos da dialética hegeliana como forma de contextualizar o pensamento numa dinâmica histórica e cultural;

um golpe no universalismo idealista, mas que acaba por incorrer, devido a pertencer à mesma matriz, em outro universalismo: o evolucionismo e derivados;

a antropologia se concebe como produto do meio evolucionista, fazendo do primitivo seu material de estudo;

sua constituição como disciplina autônoma, no entanto, com independência metodológica, dependerá da ruptura com o seio em que foi gerada;

de estudo dos povos primitivos à análise do etnocentrismo, seus pressupostos e conseqüências, como forma própria do pensamento ocidental, consiste numa reviravolta e tanto;

o estruturalismo leva a cabo a ruptura com as formas do evolucionismo, iniciada pelo difusionismo e pelo funcionalismo;

o estruturalismo desloca o problema da antropologia do exterior, da análise da sociedade indígena com nossos conceitos e pensamentos, à análise indígena como produção, num primeiro momento de um pensamento da sociedade (em que se discute ainda o problema do consciente e do inconsciente), num segundo momento como produção de socialidade e da socialidade como produção de pensamento;

nesse exterior, nessa análise da realidade, que coloca de lado o pensamento indígena, estamos em vantagem;

politicamente, muitos processos serão desdobrados; para não se colocar, assim o problema político da epistemologia, por muito tempo ainda se vai desqualificar não só o sujeito agente do outro, sua pessoa estritamente política, supostamente incapaz de cidadania, forma própria da retórica da igualdade democrática, também será, num mesmo gesto, desqualificado seu pensamento, seu sujeito pensante, o outro como sujeito do conhecimento;

é assim que definimos a natureza como uma instância própria e evidente de nosso modelo de conhecimento; é a esse modelo que a natureza de fato pertence;

natureza aqui, refere-se a essa dimensão transcendente que determina o conhecimento, ditando sua ordem ao plano de imanência, que se constitui na chave discursividade, subjetividade e política;

o deslocamento estruturalista, ao suprimir essa dimensão transcendental com instância organizadora, propõe uma experiência textual que resulta na articulação dessa chave;

é nessa chave que a antropologia conduzirá um método que resulta na constituição de um pensamento indígena virtual;

esse problema, possibilitado pela discursividade, pela autonomia metodológica da linguagem como instância de produção social de sentido, deverá voltar a antropologia para uma análise abrangente dos pressupostos epistêmicos que condicionam o pensamento;

taí o porque de Deleuze e Guattari afirmarem a Genealogia da Moral de Nietzsche já como a obra capital da antropologia;

Marcadores: , ,

09 abril 2007

antropologia e filosofia V

é a partir desse princípio epistêmico, desse pensamento da diferença, que o pensamento de clastres nos conduzirá rumo às sociedades anti-estado, às máquinas de guerra como foram chamadas por deleuze-guattari quando de incorporação como referência na filosofia das multiplicidades de mil platôs;
a proposta de clastres é a da constituição desse pensamento da diferença; percebe-se em seu trabalho a intenção de se pensar com o pensamento outro, de buscar nesse pensamento não apenas sua ordem interna, mantendo-o como objeto passivo de nosso pensamento (como faz certo estruturalismo, desprovido dos fundamentos epistêmicos que fundamentam qualquer estruturalismo), e sim reformular o nosso pensamento desde seus princípios, (fornecendo-lhe uma perspectiva, uma diferença) com o poder desse paradigma da diferença, afetando um pensamento cuja tradição está calcada na identidade; pensar o pensamento outro sem objetifica-lo na restrição de descrever estruturalmente suas categorias, demonstrando arrogantemente “olhem, eles pensam racionalmente, viram como a razão tinha razão, até o índios podem pensar, se encaixar no pensamento racional, desde que respeitem suas regras etc....”;
o potencial do pensamento selvagem será outro, no entanto; não poderá se manter tão comprometido com a tradição desse pensamento da identidade, sob a pena de se tornar um instrumento dessa própria tradição;
aí que se coloca o problema fundamental da antropologia, o da antropologia como instrumento do poder, da manutenção e intensificação do poder, utilizando-se da cultura e da história na definição dos povos estudados comportadamente nas categorias do pensamento ocidental;
de outro lado, a antropologia não cabe mais nos limites da história e seu paradigma; é a ela que compete o pensamento da diferença, seus problemas evidenciam os limites do pensamento da identidade, por mais absoluto que esse pensamento se imagine; é para ela que o pensamento do centro vai perder completamente ou sentido, (ou ganhar todo o sentido), visto que a sua imagem do pensamento se dará como margem, encontro, superfície, e não mais a imagem de um dentro para o qual todo o universo é trazido e só aí ganha sentido;

para um estado que se define pela homogeneidade racial, cultural e de pensamento, consequentemente, esse pensamento da diferença é sinônimo de anti-estado; portanto, o fato de as sociedades indígenas serem contra estado tem menos a ver com a análise do sistemas políticos, do que com as implicações de uma antropologia da diferença que valide politicamente esses povos; as sociedades contra o estado estão menos no campo da ciência política que no da epistemologia ou da filosofia, pois traduzem mais o posicionamento político da antropologia, ou o posicionamento estratégico de sua política epistemológica, centrada numa filosofia da diferença; essa é a ruptura com uno explicitada por clastres a partir do pensamento grego e que serve de preparo para a sociedade contra o estado;
abrir a linha de fuga da filosofia da diferença implica numa estratégia menos simples da antropologia;
o uno e o duplo; o duplo como a imagem da diferença, do relacional, do que não se define pela identidade consigo, pela história;
segundo castres, esse pensamento renuncia o uno como renuncia ao princípio de identidade; em seu discurso essa renúncia se expressa no próprio plano de imanência;
esse recurso de constituição de um plano de imanência a partir do pensamento estudado importa mais do que qualquer afirmação objetiva do autor sobre esse pensamento;
essa ruptura é o que faz a diferença em relação ao pensamento que não consegue sair de si, de sua imagem, para construir seu contraponto ou sua diferença, como o pensamento da tradição histórica de hegel e marx;

seu próprio discurso, ao afirmar a não identidade do pensamento indígena consigo, também ele não se identifica consigo mesmo, não instaura uma subjetividade substanciada e auto-afirmativa, não se define, portanto, pelo princípio de identidade;
esse plano de imanência definido pelo pensamento de clastres resulta do recurso que vem elaborando ao longo dos anos, a partir de seus estudos dos discursos guarani, dos cantos, do seu pensamento e seus regimes enunciativos;
consiste, essa sua apropriação do recurso enunciativo guarani, em explorar as zonas de indefinição entre seu discurso e os enunciados dos guarani, entre o antropólogos que fala e àqueles de quem se fala;
a objetividade aqui se desdobra e se perde nos liames enunciativos em que se tece o jogo de vozes próprio à antropologia; aprendemos com clastres que o campo discursivo é o espaço político por excelência; é nele que se definem sujeitos e objetos;
tal recurso discursivo, incorporado à sua antropologia como instrumento paradigmático fora encontrado por ele nos seus cantos e discursos guarani;
esse recurso se apresenta, dentre os diversos textos em que ele é experimentado, em do um sem o múltiplo; é o recurso com o qual os guarani fundem seus enunciados com enunciados divinos;
com esse recurso, o pensamento guarani de clastres renuncia ao princípio de identidade; sua filosofia guarani, no entanto, não o renuncia para adotar o contraposto forjado pelo pensamento ocidental, o múltiplo; esse pensamento guarani renuncia o um pelo dois; o duplo, o perigoso duplo do platonismo;
a renúncia ao platonismo idealista vem na forma do plano de imanência apresentado por clastres como conclusão do texto; a renúncia de uma conclusão filosófica objetiva, de que o autor se furta, pode parecer estranha, depois de sua introdução do diálogo com o pensamento filosófico ocidental, forma da epistemologia no texto; aliás, interessa entender que não se faz nesse texto uma mera interpretação de um discurso guarani, e sim que se propõe aqui uma contraposição do pensamento guarani, e alguns de seus princípios, os principais para o autor, à matriz filosófica do pensamento ocidental;
essa matriz é identificada pela identidade como princípio ordenador do pensamento, o qual é renunciado na gênese do pensamento guarani apresentado por clastres para a antropologia;
ao invés de uma conclusão objetiva, de uma exposição epistemológica que enviaria o autor novamente para o lugar de onde vinha sua antropologia, ou seja, o centro do pensamento ocidental, de volta para o plano de imanência desse pensamento da identidade forjado pelos gregos;
clastres declina do retorno e segue em frente, de carona no pensamento guarani; é aí que se enuncia a frase clássica de sua obra: “eu tupã, vos dou estes conselhos (...)”; sua análise nos custaria (como de fato custou) anos de estudo; o relacional inicia no pronome eu; esse pronome funde clastres aos guarani, via tupã que simboliza o recurso enunciativo que possibilita a fusão; o nome tupã é parte do enigma, não define, como já se disse (o próprio autor diz) o deus como instância ou entidade separada do homem, define-se como um recurso discursivo que possibilita o encontro, a relação; vós é igualmente polissêmico, designa o ouvinte, o leitor, antropólogo, a ciência ocidental;
nesse espaço se constitui o plano de imanência que define a antropologia de clastres; um plano de natureza epistêmica, visto que assume o lugar marginal que a antropologia ocupa no pensamento e na política da tradição ocidental, visto que se assume como filosofia da diferença que rasga o fundo homogêneo no qual se constituía então o pensamento hegemônico e o (pensamento do) poder dele resultante;
aqui se apresenta o dois não como número e sim em seu caráter relacional, como signo da diferença, desse pensamento da diferença que separa e confunde;

Marcadores: ,

08 abril 2007

ilusãofilosofia e antropologia IV

começou-se a desmontar a máquina metafísica, ou melhor, a compor a máquina nômade da imanência, com nietzsche; certo que há referências para chegar nele, mas foi esse autor que comprou a briga e profanou a tradição metafísica do pensamento ocidental, revelando inclusive seu comprometimento com a religião em pleno século vinte (pode-se dizer);

esse percurso tem paradas importantes nos pensamentos de kant e hegel, mas quem retoma o pensamento grego definindo, com os cacos de sua metafísica, um plano de imanência em mosaico é o pensamento nietzscheano; é esse plano de imanência que o autor pretende definir em sua obra a concepção do trágico; a ruptura com a linguagem universalista e objetiva da identidade hegeliana que proporá uma saída via história; essa saída via história é a partir daquilo que chama espírito do tempo, a forma que ele encontra de estabelecer uma diferença num campo de homogeneidade absoluta, no qual o pensamento ocidental só pode diferenciar-se de si mesmo, no tempo;

a cultura no pensamento ocidental, portanto, se define a partir de hegel e seu espírito do tempo, por via histórica, no tempo progressivo de uma única cultura; a cultura se define a partir da identidade e não da diferença; o problema da diferença é um problema que aparecerá mais tarde, quando o progressivo e o evolutivo forem mais um pouco exorcizados e o pensamento se libere de si mesmo, de sua identidade;

hegel, portanto, devolve o problema das alturas das idéias universais para o mundo social dos homens; no entanto, sua concepção de história e de cultura são forjadas nessa mesma matriz de tradição metafísica, não servindo muito para as vicissitudes apresentadas pelo problema por ele levantado;

como dizia, nietzsche ao problematizar a história nesse quadro, demonstrando o caráter político da epistemologia dela tributária, propõe uma entrada genealógica em que a história é circunscrita como operando em harmonia com essa epistéme da identidade metafísica;

em sua ruptura o autor não só escapa dessa tradição, como já fora buscar um plano de imanência próprio no pensamento trágico pré-socrático;

é a partir desse princípio epistêmico, desse pensamento da diferença, que o pensamento de clastres nos conduzirá rumo às sociedades anti-Estado, às máquinas de guerra como foram chamadas por deleuze-guattari quando de incorporação como referência na filosofia das multiplicidades de mil platôs;

a proposta de clastres é a da constituição desse pensamento da diferença; percebe-se em seu trabalho a intenção de se pensar com o pensamento outro, de buscar nesse pensamento não apenas sua ordem interna, mantendo-o como objeto passivo de nosso pensamento, e sim reformular o nosso pensamento desde seus princípios, através do poder trazido por esse paradigma da diferença para um pensamento cuja tradição está calcada na identidade; pensar o pensamento outro sem objetifica-lo na restrição de descrever estruturalmente suas categorias, demonstrando arrogantemente “olhem, eles pensam racionalmente, viram como a razão tinha razão, até o índios podem pensar, se encaixar no pensamento racional, desde que respeitem suas regras etc....”;

o potencial do pensamento selvagem será outro, no entanto; não poderá se manter tão comprometido com a tradição desse pensamento da identidade, sob a pena de se tornar um instrumento dessa própria tradição;

Marcadores: ,

filosofia e antropologia III

o problema é que há um preço a se pagar pela instituição desse plano de imanência a partir do qual o conhecimento pode falar de si mesmo, numa espiral que não encontra fundo numa realidade pré-conceitual; esse preço é o do plano de transcendência que será desdobrado daí, dessa conquista que não seria de sócrates como se pode pensar na chave de leitura do individualismo, mas de todo o pensamento grego, pois é todo o pensamento grego que dá condições à esse plano de imanência apropriado e invertido em transcendência por nossas leituras da filosofia platônica;

essa dupla superfície é definida numa imagem do conhecimento: a caverna; na caverna se concebe essa concepção de conhecimento, esse plano epistemológico que define o espaço de imanência no qual se constitui o saber filosófico em sua especificidade conceitual; é por isso que a especificidade conceitual da antropologia se dá quando se estabelece o campo virtual no qual se desdobram as teorias (e os conceitos) nativos; por que o plano de imanência que se havia constituído com base na identidade descobre seu duplo, a alteridade; acredito, assim, que a antropologia possibilita a redefinição de pressupostos desdobrados em muitas das ciências do pensamento ocidental tributárias do pensamento grego (cada qual com seu compromisso mais ou menos específico com essa matriz) tais como a história, o direito, entre outras, tributárias portanto de seus princípios de identidade do sistema de representação que as sustenta; esse pensamento, como instrumental político e bélico, determina seu plano de imanência como homogeneidade absoluta, desdobrando qualquer diferença nesse campo fictício ou, mesmo virtual, furtando-se a toma-la como perspectiva limite, sujeito do conhecimento virtual que possibilitasse um rasgo heterogêneo;

esse rasgo heterogêneo é a chamada multiplicidade; sair do universo da identidade com sua habitual entropia, para ganhar o universo neg-entrópico das multiplicidades exige que já se possa respirar debaixo d’água ou que se agüente as pressurizações dos vacúolos de sentido que se atravessa;

a caverna é o espaço que só fará sentido a partir do plano exterior; não há caverna sem espaço solar e iluminado, a caverna existe em função da luz; enfim, não há caverna em si, ou seja, a caverna é relacional; a caverna equivale ao que se chama de ruptura epistemológica, o conhecimento adquire especificidade relacional e não em si mesmo; o que faz do conhecimento é que ele não seja doxa e não que lhe seja peculiar qualquer universalidade (que não seja universal no âmbito desse plano de imanência em que ele se encerra) exterior a um plano conceitual que não seja o próprio plano no qual ele está se constituindo;

da mesma forma é relacional o valor atribuído às dimensões do sensível e do inteligível; o inteligível não tem um valor em si, não vale mais que o sensível; a não ser para o pensamento, no plano de referências próprio ao pensamento; nesse plano de imanência é que fará sentido se falar das idéias e de seu valor sobre os elementos, sobre as coisas;

o valor do inteligível, sobretudo, está associado a esse plano de imanência que antes de situar qualquer pré-concepção de mundo ou qualquer mundo pré-conceitual, permite situar o pensamento para si próprio;

acredito que era essa a dimensão conceitual do só sei que nada sei, situar o pensamento no pensamento, em sua matéria, em sua especificidade, distinto das coisas pensadas: eis o platonismo idealizado/idealizante invertido;

esse plano de imanência traçado aqui tomará conta do pensamento ocidental, no entanto; ou seja, transfigurar-se-á em seu negativo; o instrumento que serviria para libertar o pensamento servirá para determina-lo, para encerra-lo em um campo de referências pré-definido; o plano de imanência desse pensamento se tornará o plano absoluto do pensamento a partir da fórmula do plano de transcendência cuja dupla função é ocultar-se enquanto plano de imanência, enquanto recurso discursivo, ao mesmo tempo em que se desdobra em plano de transcendência, em um plano do mundo, sobre o qual o saber se projeta, com o qual se identifica, o qual pode esquadrinhar, mapear com suas coordenadas imperceptíveis;

Marcadores: ,