09 abril 2007

antropologia e filosofia V

é a partir desse princípio epistêmico, desse pensamento da diferença, que o pensamento de clastres nos conduzirá rumo às sociedades anti-estado, às máquinas de guerra como foram chamadas por deleuze-guattari quando de incorporação como referência na filosofia das multiplicidades de mil platôs;
a proposta de clastres é a da constituição desse pensamento da diferença; percebe-se em seu trabalho a intenção de se pensar com o pensamento outro, de buscar nesse pensamento não apenas sua ordem interna, mantendo-o como objeto passivo de nosso pensamento (como faz certo estruturalismo, desprovido dos fundamentos epistêmicos que fundamentam qualquer estruturalismo), e sim reformular o nosso pensamento desde seus princípios, (fornecendo-lhe uma perspectiva, uma diferença) com o poder desse paradigma da diferença, afetando um pensamento cuja tradição está calcada na identidade; pensar o pensamento outro sem objetifica-lo na restrição de descrever estruturalmente suas categorias, demonstrando arrogantemente “olhem, eles pensam racionalmente, viram como a razão tinha razão, até o índios podem pensar, se encaixar no pensamento racional, desde que respeitem suas regras etc....”;
o potencial do pensamento selvagem será outro, no entanto; não poderá se manter tão comprometido com a tradição desse pensamento da identidade, sob a pena de se tornar um instrumento dessa própria tradição;
aí que se coloca o problema fundamental da antropologia, o da antropologia como instrumento do poder, da manutenção e intensificação do poder, utilizando-se da cultura e da história na definição dos povos estudados comportadamente nas categorias do pensamento ocidental;
de outro lado, a antropologia não cabe mais nos limites da história e seu paradigma; é a ela que compete o pensamento da diferença, seus problemas evidenciam os limites do pensamento da identidade, por mais absoluto que esse pensamento se imagine; é para ela que o pensamento do centro vai perder completamente ou sentido, (ou ganhar todo o sentido), visto que a sua imagem do pensamento se dará como margem, encontro, superfície, e não mais a imagem de um dentro para o qual todo o universo é trazido e só aí ganha sentido;

para um estado que se define pela homogeneidade racial, cultural e de pensamento, consequentemente, esse pensamento da diferença é sinônimo de anti-estado; portanto, o fato de as sociedades indígenas serem contra estado tem menos a ver com a análise do sistemas políticos, do que com as implicações de uma antropologia da diferença que valide politicamente esses povos; as sociedades contra o estado estão menos no campo da ciência política que no da epistemologia ou da filosofia, pois traduzem mais o posicionamento político da antropologia, ou o posicionamento estratégico de sua política epistemológica, centrada numa filosofia da diferença; essa é a ruptura com uno explicitada por clastres a partir do pensamento grego e que serve de preparo para a sociedade contra o estado;
abrir a linha de fuga da filosofia da diferença implica numa estratégia menos simples da antropologia;
o uno e o duplo; o duplo como a imagem da diferença, do relacional, do que não se define pela identidade consigo, pela história;
segundo castres, esse pensamento renuncia o uno como renuncia ao princípio de identidade; em seu discurso essa renúncia se expressa no próprio plano de imanência;
esse recurso de constituição de um plano de imanência a partir do pensamento estudado importa mais do que qualquer afirmação objetiva do autor sobre esse pensamento;
essa ruptura é o que faz a diferença em relação ao pensamento que não consegue sair de si, de sua imagem, para construir seu contraponto ou sua diferença, como o pensamento da tradição histórica de hegel e marx;

seu próprio discurso, ao afirmar a não identidade do pensamento indígena consigo, também ele não se identifica consigo mesmo, não instaura uma subjetividade substanciada e auto-afirmativa, não se define, portanto, pelo princípio de identidade;
esse plano de imanência definido pelo pensamento de clastres resulta do recurso que vem elaborando ao longo dos anos, a partir de seus estudos dos discursos guarani, dos cantos, do seu pensamento e seus regimes enunciativos;
consiste, essa sua apropriação do recurso enunciativo guarani, em explorar as zonas de indefinição entre seu discurso e os enunciados dos guarani, entre o antropólogos que fala e àqueles de quem se fala;
a objetividade aqui se desdobra e se perde nos liames enunciativos em que se tece o jogo de vozes próprio à antropologia; aprendemos com clastres que o campo discursivo é o espaço político por excelência; é nele que se definem sujeitos e objetos;
tal recurso discursivo, incorporado à sua antropologia como instrumento paradigmático fora encontrado por ele nos seus cantos e discursos guarani;
esse recurso se apresenta, dentre os diversos textos em que ele é experimentado, em do um sem o múltiplo; é o recurso com o qual os guarani fundem seus enunciados com enunciados divinos;
com esse recurso, o pensamento guarani de clastres renuncia ao princípio de identidade; sua filosofia guarani, no entanto, não o renuncia para adotar o contraposto forjado pelo pensamento ocidental, o múltiplo; esse pensamento guarani renuncia o um pelo dois; o duplo, o perigoso duplo do platonismo;
a renúncia ao platonismo idealista vem na forma do plano de imanência apresentado por clastres como conclusão do texto; a renúncia de uma conclusão filosófica objetiva, de que o autor se furta, pode parecer estranha, depois de sua introdução do diálogo com o pensamento filosófico ocidental, forma da epistemologia no texto; aliás, interessa entender que não se faz nesse texto uma mera interpretação de um discurso guarani, e sim que se propõe aqui uma contraposição do pensamento guarani, e alguns de seus princípios, os principais para o autor, à matriz filosófica do pensamento ocidental;
essa matriz é identificada pela identidade como princípio ordenador do pensamento, o qual é renunciado na gênese do pensamento guarani apresentado por clastres para a antropologia;
ao invés de uma conclusão objetiva, de uma exposição epistemológica que enviaria o autor novamente para o lugar de onde vinha sua antropologia, ou seja, o centro do pensamento ocidental, de volta para o plano de imanência desse pensamento da identidade forjado pelos gregos;
clastres declina do retorno e segue em frente, de carona no pensamento guarani; é aí que se enuncia a frase clássica de sua obra: “eu tupã, vos dou estes conselhos (...)”; sua análise nos custaria (como de fato custou) anos de estudo; o relacional inicia no pronome eu; esse pronome funde clastres aos guarani, via tupã que simboliza o recurso enunciativo que possibilita a fusão; o nome tupã é parte do enigma, não define, como já se disse (o próprio autor diz) o deus como instância ou entidade separada do homem, define-se como um recurso discursivo que possibilita o encontro, a relação; vós é igualmente polissêmico, designa o ouvinte, o leitor, antropólogo, a ciência ocidental;
nesse espaço se constitui o plano de imanência que define a antropologia de clastres; um plano de natureza epistêmica, visto que assume o lugar marginal que a antropologia ocupa no pensamento e na política da tradição ocidental, visto que se assume como filosofia da diferença que rasga o fundo homogêneo no qual se constituía então o pensamento hegemônico e o (pensamento do) poder dele resultante;
aqui se apresenta o dois não como número e sim em seu caráter relacional, como signo da diferença, desse pensamento da diferença que separa e confunde;

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