17 maio 2007

tradução e traição 2

ao problema

há pouco mais de um século, quando a antropologia começou a se definir como campo autônomo de conhecimento, tanto epistêmica como metodologicamente, desprendendo-se dos velhos preceitos transcendentais da sociologia cientista e positivista, passou, então, a teorizar sobre o processo de produção de socialidade, definindo o seu caráter psicológico a partir dos estudos de simbologia religiosa e dos esquemas mentais dos selvagens;

a partir daí, as ciências sociais não seriam mais as mesmas;

com a emergência do estruturalismo, a novidade se desdobra nas especificidades metodológicas dessa forma de produzir conhecimento entre uma e outra sociedade;

sem positivar (como se constitui) a substância da socialidade em uma ou em outra sociedade, o sentido passa a correr entre elas, no interstício entre sistemas de conhecimento que simulam socialidades culturalmente construídas e reconstruídas (especialmente no caso da antropologia, assim como no do xamanismo);

a produção de conhecimento antropológico toma-se a si não mais na concepção realista, que busca descrever um real pré-determinado, mas se apresenta na gênese auto-constitutiva em relação com outro sistema, o qual também não tem por objetivo descrever positivamente, na forma da descrição realista, e sim apropriar-se de suas virtualidades, de sua imagem, visando reconfigurar seu próprio realismo com alcance epistêmico;

tradução

poucos de nós entendemos o gesto de manuela carneiro da cunha ao procurar apoio teórico na filosofia da tradução de walter benjamin para teorizar sobre o xamanismo;

com uma mistura tão heterodoxa, não nos passava pela cabeça que a autora retomava um texto clássico e mesmo fundador de um novo horizonte para a disciplina, horizonte esse que ainda hoje a orienta, como tem demonstrado o trabalho de manuela, de viveiros de castro e outros antropólogos que vêem, na antropologia, chaves que a conectam epistemologicamente ao pensamento filosófico;

pois não são aleatórias e gratuitas suas referências à deleuze e serres em relação a um ponto que é o central de sua tese sobre a tradução no xamanismo;

a tradução aqui não traduz uma linguagem por outra, mantendo o mundo fixo de uma à outra; o que se tem é uma tradução que apresenta consigo possibilidades de intervenção no campo de sentido que configura o mundo traduzido, ou seja, esse híbrido de essência e aparência que é o sentido em sua constituição;

taí a eficácia simbólica comum ao xamã e ao antropólogo, que teria aprendido com aquele, via Lévi-Strauss, a exorcizar a vontade de verdade que o mantinha preso a sua projeção transcendental de entidades substantivadas pressupostas de seu pensamento e de seu texto, liberando para pensamentos movidos pela simulação, pela produção de sentidos e verdades a partir da aparência;

a lição do xamã é uma lição antropológica, compreende-se que o deslocamento da antropologia para a análise da mística e da produção coletiva de sentido tem uma porta secreta que vai dar no próprio pensamento antropológico, o pensamento antropológico simula o xamanismo ao invés de se referir a ele realística e positivamente;


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