30 outubro 2008




entre o objetivo discurso etnográfico
e as implicações do pensar indígena
– desdobramentos –

diferente do branco – ou do antropólogo – que desfila seus conhecimentos (de forma que só um sistema de conhecimento da transcendência possibilita) num discurso de demonstração ou explicação [isto é, que se dobra pra fora], para os conhecedores [dos] indígenas, o saber-poder implica uma ação discursiva [razão pela qual também muitas vezes admirem os efeitos dos pensamento, das palavras ou das leis dos brancos];

saliento que faço um uso particular da noção de ação discursiva, distinto do de habermas, com o sentido foucaultiano de um discurso que exerce uma função social não-positiva ou anti-positiva;
caberia, portanto, em ação discursiva os efeitos do discurso em contraste com seu sentido ou significado, ou mesmo com sua interpretação;
uma coisa é o que se diz e o que se quis dizer, outra é o efeito do dito;
mas para não se cair na banalização da concepção que se quer conceito, ela tem uma serventia certa na desconstrução de discursos positivistas, em que o ouvinte ou interlocutor é fixado ou enfeitiçado pelo sentido do dito, pelo plano de transcendência que dá a ver sem ser visto, enquanto o acontecimento se passa no plano de imanência, cujos efeitos se dobram sobre o discurso, recursivamente;

são esses efeitos mais que propriamente as técnicas de nosso conhecimento que [me parece] fascinam os indígenas, visto que a nossa falação objetivante e positivista sobre a natureza das coisas é evidente que eles desprezam ou, pelo menos, desacreditam piamente [mesmo, ou principalmente, quando juram crer];
como diz viveiros de castro, é aquilo que para eles em nós não tem mais jeito;
enfim, seriam nossos discursos e as possibilidades de políticas de conhecimento e subjetivação que os impressionariam;
assim como as tantas possibilidades de subjetivação abertas pela socialidade comunicacional que, no entanto, permanecem reduzidas pelo controle do mercado publicitário [perdoe a redundância] sobre o consumo de subjetividades;

é aí que se dá um campo complexo de predação em que os indígenas se inserem para capturar os recursos ocidentais e acabam sendo capturados e subjetivados por eles;
isso é evidente nas políticas internas de educação e de inserção em cargos públicos;

é necessário que se explore melhor esse tema, devido a ser um argumento central de nossa abordagem;
pode-se enxergar aqui um duplo processo na guerra de conhecimentos/saber-poder;
enquanto os indígenas avançam sobre os conhecimentos ocidentais motivados por necessidades que se travestem em diversos discursos de estado ou do senso comum sobre educação e profissionalização, esses mesmos indígenas voltam 'nossos' próprios conhecimentos contra 'nosso' regime hegemônico de saber-poder;
nesse embate aparecem vários mediadores: a escola convencional não-indígena, a própria escola indígena, o cursos para indígenas na universidade, as pesquisas, as pesquisas indígenas, os centros de formação indígenas, os centros indigenistas de formação, o discurso e as leis dos conhecimentos tradicionais, cursos, associações e cooperativas etc;
o interesse sobre esses mediadores é notar de que forma eles mediam o cabo de guerra intensivo dos processos subjetivadores;
de um lado, os conhecimentos ocidentais mediados por suas instituições de ensino caracterizam-se por promover a integração à homogeneidade nacional;
em outro extremo, temos as experiências de apropriação e ressignificação de conhecimentos, que aqui consideramos como a prática [propriamente] antropológica propriamente indígena;
nessa guerra pelo saber-poder [ou por essa reversão antropológica do conhecimento] são muitos que se perdem, que são formatados no padrão subjetivo ocidental, enquanto outros poucos chegam a formular sua antropologia escapando aos aparelhos de captura: o pensamento-subjetividade ocidental;
trata-se de um problema que a antropologia se coloca nas últimas décadas, visando exorcizar os fantasmas da aculturação criados pelo positivismo colonialista de nossa matriz de pensamento fundada na transcendência;




no entanto, pode-se rastrear aqui toda a política indigenista de direitos do estado que influenciou decisivamente a antropologia das últimas décadas [o que, em nosso caso, significa praticamente toda a prática antropológica];
essa política de direitos baseada na cessão de direitos mais que na produção de direitos [algo totalmente alheio de nosso imaginário jurídico autoritário e positivista] levou a uma prática política assentada no assistencialismo e na cobiça das comunidades pelos 'mesmos direitos' dos brancos;
isso contribuiu decisivamente, moldando todo um imaginário político do 'índio brasileiro' difícil de se desconstruir, visto que amalgamou uma política da identidade que tem minado o característico nomadismo das práticas e do pensamento ameríndios;

nesse contexto, o aparecimento do discurso dos conhecimento tradicionais, que está centrado nesse imaginário do direito positivo, se desdobra em efeitos que problematizam o quadro;
falar tanto [ainda que tão pouco] sobre os seus próprios conhecimentos enquanto saber-poder cobiçado pelo capitalismo mundial, a grande força da sociedade de exploração global do século vinte e um, tem proporcionado a proliferação de discursos e de práticas que reproduzem o conhecimentos ocidentais numa espécie de antropologia indígena de si mesmo;

antropologia de si mesmo pois continua visando preservar a identidade, como toda política indigenista de estado, agora aplicada a uma identidade dos conhecimentos, o que se traduziria por propriedade intelectual, preservando-se assim a identidade dessa pessoa jurídica, o conhecimento tradicional;
em suma, a sociedade indígena se torna uma empresa que tem o direito de gerir seus conhecimentos: a nova era do índio empreendedor;

isso por que muitos povos se demoram a direcionar um olhar de diferença, de produção de diferença sobre o ocidental, visto que estão entretidos com nosso regime identitário, apregoado na antropologia e outras ciências régias de estado [desconsiderando-se o jornalismo, essa forma baixa de mercado de política enunciativa];
além desses discursos que se voltam numa antropologia do mesmo ou numa antropologia de si, há as linhas de fuga daqueles que se apropriam e ressignificam a antropologia e outros conhecimentos ocidentais, operando propriamente uma antropologia indígena do homem global, o homem da mesmice ocidental;
nessa prática antropológica indígena fica difícil não resvalar para a linguagem do controle e da criação subjetiva de-codificada na socialidade ocidental por deleuze-guattari com forte inspiração numa política-psíquica [se posso assim me expressar];
isso porque essa prática antropológica [nesta experiência de pesquisa] parece trabalhar com processos de subjetivação que acionam uma diversidade de discursos políticos da diferença que por aqui aportaram junto com a revolução molecular das diferenças, a qual, como se sabe, foi cooptada pelos discursos de uma esquerda de estado;
indigenismo, ecologismo, extrativismo e até feminismo aportaram por aqui como supostos movimentos sociais de base que rapidamente se tornaram nossa 'macumba pra turista', com seus santos milagreiros e tudo mais;
passados anos e décadas de experiências comunitárias e projetos de trocas de conhecimentos, a chamada aliança dos povos da floresta voltou à cena;
agora como pretexto para um trabalho de antropologia indígena;
reprocessando e reciclando essas propostas subjetivas, articulando uma diversidade de discursos que se configuram em nossos segmentos institucionais: educacional, profissionalizante, tecnológico, ecológico, sustentável etc, os ashaninka desenvolvem uma proposta que aqui interessa especialmente pelo caráter antropológico de seu regime enunciativo, do agenciamento coletivo de enunciação proposto;
esse interesse se intensifica com a contraposição do centro de pesquisas indígena yorenka ãtame ao projeto institucionalizado de uma universidade da floresta, cujo nome já chama a atenção pela contradição de termos, pois de as práticas de subjetivação indígenas operam na chave a multiplicidade e da multiplicação subjetiva, como que se poderia integrar num projeto uni-vers-itário;
portanto, esse agenciamento coletivo de enunciação é o que nos interessa aqui mais que qualquer descrição minuciosa das práticas do centro;

o contexto em que se insere precisa ser reduzido para não se projetar ou motivar historicamente nosso problema;
estamos numa área de reservas indígenas e unidades de conservação tais como reserva extrativista e parque nacional em que o assédio das economias locais que sucedem o seringalismo, ao lado da política partidária regional, triunfou sobre um política ambientalista de estado, por vezes comprometida com os poderes locais, e um frágil movimento social que eclode e é forjado como oportunismo histórico, longe de se definir como um agente constituído em relações longínquas de solidariedade, como o são relativamente as sociedades indígenas, as quais, no mínimo, tem alguns milênios de resistência a seu favor;
a história, como ciência constituída, pode fazer dessa simples narrativa motivo para uma subdisciplina, não é o nosso caso;

o que nos interessa a partir desse rascunho é tratar de processos de subjetivação, de construção de diferenças e identidades a partir de certas forças (projetos, política local,), de certas instituições (estado, funai, universidade, prefeitura, ibama, associações), de certas práticas (pesquisa, reuniões, encontros, xamanismo) , de certo discursos (ecologismo, discurso histórico, política estadual), que vão se desdobrar em processos subjetivos e nos discursos sobre tais processos (indígenas, seringueiros/extrativistas, emergência étnica, pecuarização e desenvolvimentismo, urbanização);

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