10 outubro 2008


emergentes da floresta
é importante que se compreenda que na perspectiva aqui adotada não se trata de tematizar os índios emergentes no processo histórico que se imporia a eles, ou mesmo neles como agentes no interior de qualquer processo histórico transcendente [ou imanentizado nos livros e em nosso tradicional historicismo];
parece-nos que o que se evidencia seria antes uma necessidade de desconstruir uma identidade pressuposta na/da antropologia, que seria a sua definição como ciência das identidades;
por isso nosso desafio de tomar o tema dos emergentes para destrancendentalizar não a disciplina, mas nosso olhar sobre ela;
dessa forma, tomamos não os emergentes como o nosso objeto de estudo [até porque seria mais o caso de o tema ter nos escolhido ou se imposto por conta de experiências recursivas], como nossa identidade antropológica ou nosso território etnológico, até por que nossas interposições territoriais não são mutuamente excludentes;
o que nos interessa sobremaneira no problema será propor uma perspectiva do tipo: ‘na pós-humanidade, todo mundo é emergente exceto quem não é’;
para tanto, nossa intenção é definir o processo de emergência ou revitalização étnica como um corpo-sem-órgãos da disciplina, vidrada na idéia de uma identidade por trás de toda cultura ou de todo cultural, para dinamizar o velho e surrado conceito;
não se trata de qualquer novidade nos debates contemporâneos da disciplina;
trata-se assim de abordar o problema dos emergentes a partir do princípio da relacionalidade, em lugar do viés dos processos de conscientização étnica ou da auto-consciência cultural;
para além da identidade, debruçar-se sobre processos relacionais poderá esclarecer uma intensa retomada de parcerias entre povos indígenas e não-indígenas daqui do alto juruá;
assim, mais pela relacionalidade, isto é, pelos devires-emergentes ou devires-diferenciais da economia subjetiva das identidades, do que pelos devires-identitários, é que o nosso pensamento poderá lidar com as propostas e as práticas de se estender a subjetividade indígena ou a ecologia subjetiva da floresta ao território dos não-índios, ao entorno;
fala-se portanto aqui em devir-emergente, o que se poderia chamar de diferenciação, como contraponto ao processo antropológico e estatal de produção de identidades;
produzir tais devires ou tais processos de subjetivação possibilita a apropriação de conceitos que lidam com a dinâmica diferencial dos processos pós-identitários;

a realidade vivida no alto juruá nos exige problematizar, ou mesmo sabotar, a visão convencional da/da disciplina, a qual, por sua vez, está baseada na imagem convencional [e/ou convencionada] do pensamento de tradição ocidental;
trata-se, em suma, de tomar a emergência como princípio de compreensão;
trata-se, então, de ir buscar nas práticas de subjetivação acionadas por esses agentes, nossos interlocutores, princípios de relacionalidade que marcam tantos outros usos do cultural;
portanto, a cultura não como um fenômeno estático e identitário, mas como processo dinâmico e relacional;
no mais, essa perspectiva proporciona uma linha de fuga em relação aos simplismos que reduzem tais práticas a identidades, sejam majoritárias ou minoritárias, isto é, à falsa diferença das minorias idealizadas para usos de aparelhos de estado e seus legalismos afins;

dessa forma, podemos nos aproximar dos efeitos e impactos da antropologia e de outros agentes de estado seja na função de imposição de ordens [legal, histórica, científica etc] ou mesmo quando já apropriados, adaptados, colocados em uso contra o próprio aparato de estado;
conceitos e processos tais como: identidade, diferença, direitos, território, gestão e tantos outros que propõem novas formas da relação com o não-indígena, com o ocidental, com o estado, com a sociedade envolvente e até ou principalmente consigo próprio;
daí, chegar às nossas práticas de valorização e validação de processos de subjetivação, os quais abrem linhas de fuga aos valores determinados pela sociedade envolvente, os quais geralmente se querem monolítico e absolutos;
e então, lidar com processos relacionais mais complexos, me lugar de reproduzir universos estanques na forma de identidades;

observar e imaginar então, as formas de apropriação da antropologia pelos nativos [ou povos da floresta] [sejam as antropologias legalistas das identificações e reconhecimentos, sejam antropologias que as contradigam] nos fornecerá linhas de fuga para os impasses da relação entre os conhecimentos antropológicos e as teorias nativos, resultados da imagem de uma antropologia apegada à ciência régia;
aí, interessará problematizar a apropriação das teorias nativas a partir do desdobramento em experiências de apropriação da própria antropologia na, digamos, antropologia nativa;
portanto, já não podemos nos imaginar no horizonte de uma antropologia unilateral;
de conceitos nativos adaptados e redimensionados em nosso pensamento e nossa disciplina, passamos a lidar com uma guerra de perspectivas, com uma disputa ‘xamãnica’ pelos poderes de decisão atribuídos à antropologia em suas funções de aparelho de estado ou parecerista jurídica;

enquanto isso, cabe lidar com as crises existenciais da disciplina enquanto mediadora de novos contratos com a sociedade majoritária;
resgatou-se os indígenas de subproduto da periferia do capitalismo ocidental para conceder-lhes o direito ao consumo;
passadas poucas décadas de redemocratização já se pode constatar os limites do estado pós-ditadura, manobrado pelos interesses dos mercados internacionais, e, com esse balanço, identificar as novas linhas de fuga apontadas pelos indígenas no manuseio das tais ferramentas disponibilizadas;
não se trata de seguir reproduzindo a retórica artificial dos direitos como forma de solução aos assédios do capitalismo;


no contexto em que nos encontramos, contexto de sobreposição de territórios, o debate e as propostas em torno da gestão territorial e da gestão dos recursos naturais surgem como justificativa central no discurso da emergência étnica kuntanawa;
por outro lado, o trabalho desenvolvido pelo centro yorenka ãtame, tem por objetivo estender as experiências de manejo e gestão de recursos naturais da aldeia kampa do rio amônea para outra terras indígenas e às comunidades não-indígenas da reserva extrativista do alto juruá, do parque nacional da serra do divisor e do município de marechal taumaturgo;
ambas experiências, pode-se dizer, ambas interposições subjetivas ultrapassam a relações entre territórios ‘étnicos’ para estabelecerem interposições territoriais múltiplas;
nosso interesse tem convergido para a problemática da ecologia subjetiva, como temos chamado a resistência ao modelo regional de subjetivação capitalística, voltadas ao fetiche da pecuarização e ao culto à urbanidade;
esse modelo de desenvolvimento não difere do implementado desde a ditadura ao neoliberalismo que dela descende nos planos da federação de aceleração do crescimento e amazônia sustentável, descendentes diretos de programas como o iirsa, iniciativa para la integracion de la infraestructura regional suramericana, programas multilaterais de ‘estruturação’ da américa latina para atração de investimentos dos partidários da organização mundial do comércio;


à ecologia subjetiva caberá identificar o padrão valorativo local e propiciar linhas de fuga às suas convergências;
se, de um lado, se tem a imagem unidirecional do homem intervindo na natureza, de outra perspectiva, teremos subjetividades afetadas pela biodiversidade, processos de subjetivação que redefinem em novos contextos [urbanos, não-indígenas, neo-xamãnicos, de juventude etc] os valores atribuídos à biodiversidade na mística indígena;
trata-se de dois processos de subjetivação que, inevitavelmente, se interpõem e, por vezes, contrapõem-se para se definir;
isso porque a dinâmica da subjetivação capitalística opera na chave da norma, enquanto a subjetivação ecológica consiste na multiplicidade que se define contra a unidade, ou melhor, investe na multiplicidade imanente;

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