10 abril 2008



ordem e desordem 2

ah, eu sei que não é possível; não me assente o senhor por beócio; uma coisa é por idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... tanta gente - dá susto de saber - e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons... de sorte que carece de se escolher: ou a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida só de religião só; eu podia ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços; para outras coisas não fui parido; mas minha velhice já principiou, errei de toda conta;
(gs:v: 8)

...e o 'urutu-branco'?ah, não me fale; ah, esse... tristonho levado, que foi - que era um pobre menino o destino...
(gs:v: 10)



nonada...
e dispara a máquina de desordenar mundo;
desescrever o idioma, de dentro, o idioma dos avessos;
homem-linguagem, um falador, rio-baldo, homem dos avessos, homem-linguagem dos avessos;
desfazer os lugares comum do idioma, desmontar o idioma dos condicionamentos, a linguagem-condicionamento, a literatura-condicionamento;

no grande sertão a memória é a forma do mundo, é a matéria da literatura;
não se trata de transcrever um vivido;
a experiência humana é plano de imanência em que riobaldo se inventa e se desfaz;

a narrativa cheia de pontas, marcadas com dêiticos e outras referências metalingüísticas, a linguagem dos avessos mantêm o leitor preso a essa superfície rugosa, esse plano de imanência;

desfazer-se;
o destino de desenrola dos avessos, da velhice à mocidade;
não se pretende construir um personagem, uma personalidade;

esta-se lidando com um personagem problemático discorrendo sobre si;
ele não se afirma, seu titubear, sua busca pelas certas palavras nos prende a superfície do texto;
como a vida e sua matéria efêmera nos escapa nos lábios, na fronte, não se trata de um personagem que se des-constrói indiferente, o próprio idioma se desconstrói com ele;

e lugar de estabelecer, de parear o sentido das palavras [sua lógica] com a ordem do mundo, riobaldo parte da incerteza de que somos todos doidos;
o que se tira disso é um mundo estranhado, contínua e gradualmente estranhado;
mundo estranhado - e entranhado - eis a experiência de linguagem riobaldiana;
eis sua agonia;

só em sua confissão riobaldo pode fazer a travessia obstruída pela consciência atormentada;
no entanto, sua análise não visa restabelecer qualquer ordem interna da psique;
delirar o sertão-mundo nessa máquina 'abstrata' aproxima-se sim de um processo de esquizoanálise;


diferença e diferenças
diferença
pode-se falar aqui em uma desgramatização da língua, num projeto em que se leva a extremas conseqüências o problema da diferença na literatura;
o padrão de uma langue é aqui colocado em função da diferença de uma multiplicidade de paroles;
e não é sem ironia que o autor confessa o desejo de publicar um dicionário;

é de se verificar aqui os elementos que distinguam a polifonia bakhtiniana do agenciamento coletivo de enunciação;

diferenças
no país em que o idioma normatizado funciona como discriminador social desde a condição colonial, o falar de riobaldo só pode mesmo se contrapor ao do doutor que nada sabe sobre o mundo do sertão, ou sertão-mundo, ou a máquina abstrata, ou o nonada inventa-línguas;

o lugar das diferenças sociais na linguagem, da linguagem como expressão das multiplicidades, ou a questão da política lingüística só soará algumas décadas depois do épico prenúncio roseano;

não que se deduza aqui a a política lingüística [ou da diversidade] oficial da experiência literária [algo típico do utilitarismo liberal, que não suporta a idéia de resistência], ou vice-versa;
a intenção é marcar o contexto e sua modificação, marcar diferenças;

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