12 agosto 2008



enfim, abrem-se perspectivas de concepção e uso do conhecimento que diferem da tradição que visa conservar o conhecimento como reafirmação de categorias ou noções fundantes;
a maneira de se utilizar do signo deixa de ser a da chave da representação para assumir uma funcionalidade política ameaçadora ao espírito conservador da tradição;
a abordagem essencialista implicada nesse representacionismo que define então as linguagens é questionada em sua necessidade e sua arbitrariedade;

a partir daí, com uma redefinição da imagem do conhecimento que consegue escapar dessa tradição coloca-se em questão as abordagens que deram origem à concepção de homem e à concepção de homem moderno;
nessa concepção se encontra o ponto nevrálgico de todo o impacto dessa revolução da política do conhecimento no conhecimento;
a construção milenar do sujeito que remonta a tantas tradições de pensamento, marcadamente a tradição da filosofia grega, encontra sua problematização definitiva ao sair do plano de transcendência ao qual remete a objetivação característica dessa tradição;
a desconstrução desse plano de transcendência para a projeção num plano de imanência não poderia ser feita sem uma concepção de linguagem que pudesse desconstruir tal plano, demonstrando seus usos e funções;
a possibilidade de uma abordagem configurada em práticas de subjetivação mais do que nas objetivações explicativas que remetem ao plano de transcendência se deu a partir de uma apropriação construcionista por assim dizer do conhecimento;

a concepção não se desvincula aqui de seu uso, o pensamento não possui status superior à ação, o plano de imanência consiste numa interação entre pensamento e ação, a subjetividade prolifera vetores inimagináveis na abordagem tradicional;
não se trata de relativizar, de se deslocar à uma auto-definição subjetividade como se se assumir a voz de outro, a voz de minoria fosse tão simples assim;
a apropriação de agenciamentos de enunciação que possibilitem a prática de máquinas de guerra, de ações de guerrilha no campo da política do conhecimento consiste em algo menos simples que pressupõem práticas de construção/produção de sentido e subjetividades e não afirmações de subjetividades dadas e pré-definidas;
toma-se aqui a subjetividade e os processos de subjetivação como projeto político-estético no qual a arte livra das pré-concepções enquanto a política imprime o caráter de resistência àquilo que é traçado como modelo conservador de reprodução de práticas e valores;
se essa prática construcionista de conhecimento/subjetividade não pode ser pensada desvinculada da tradição que lhe deu origem e lhe dá dinâmica, isso se deve à sua proposta de método genealógico ou desconstrutivista;

questiona-se assim a prática de tomar a voz do outro, visto que se propõe proporcionar agenciamentos de enunciação como prática política de estética subjetiva;
um dos problemas centrais para essa apropriação da voz alheia consiste na própria suspensão de uma concepção consensual de consciência e principalmente do lugar e da articulação da consciência na agência;
com o questionamento da concepção de linguagem como representação [e da noção de consciência] falar em nome do índio ou do proletariado;

não mais o que dizem os índios, mas como o dizem e, principalmente, o que significa dizer isto ou aquilo, ou seja, quais os desdobramentos dessa prática discursiva ou desse acontecimento sobre nossas posições conservadoras;
suprime-se o plano de transcendência no qual seria apropriada e projetada a suposta voz do outro [em seu fantasma];
as práticas discursivas, tal como as práticas subjetivas, enquanto práticas deixam de valer pelo conteúdo de discursos ou por identidades substantivas;
os processos e sua agência se projetam e o que se convoca são práticas que dêem conta de se pensar em ação;

a subjetivação proporciona um plano de imanência que renuncia a definir e explicar o outro por sua voz [consciência] ou sua categoria, proporciona uma prática de interação [conhecimento/ação] que se volta para as práticas político-estéticas de auto-constituição [e não uma auto-definição barthiana num plano de transcendência que já valorou de antemão o seu objeto a absorver sua prática];

esse plano de imanência se recusa, portanto, a tomar como princípio ou ponto de partida a neutralidade de um plano das idéias;
as idéias [assim como a verdade] não se configuram como abstrações, pois se fazem valer por sua utilização, por sua concretude, por seu caráter de acontecimento;


qual a relação entre essa desconfiança dos processos de subjetivação e a forma de apropriação da voz alheia, a voz indígena, para afirmar um mundo verdadeiro por trás das aparências: eis a questão que nos é colocada ou que nos sentimos convocados a desdobrar;
o uso da noção de subjetivação se deve ao alinhamento a uma abordagem epistemológica trabalhada ao longo do último século, a qual contraporá à tradição ocidental uma outra imagem do conhecimento do mundo e do conhecimento do homem;
essa imagem do conhecimento será detonada por um uso da linguagem que se libera de sua concepção representacionista e abre campos diversos que o do conservadorismo positivista;
com isso desloca-se o problema de um projeto colonizador e universalista de modernização racionalizante, característico do horizonte positivista ou iluminista, para o uso do conhecimento e das disciplinas na configuração de políticas de conhecimento;
o conhecimento se define então como um campo político de práticas de subjetivação, volta-se para si com questões próprias a essa concepção, pois se constituíram instrumentos para tanto a partir da abordagem e desconstrução do velho projeto civilizador que ocultava seus valores entre a enunciação e o plano de transcendência;
daí o uso da subjetivação como prática político-estética que borra os limites objetivantes em que se encerra a ciência;
daí a renúncia ao que estaria pressuposto numa concepção tal como a de um mundo verdadeiro e essencial oculto na realidade aparente;
a dicotomia essência/aparência, própria ao multiculturalismo, só pode ser sustentada por uma concepção representacionista da linguagem e seu uso, por uma imagem do conhecimento que sustenta uma verdadeira realidade, seja ela natural ou sobre natural;
distinta será uma abordagem perspectivista detonada por um multiculturalismo inspirado na corporalidade dos processos indígenas de subjetivação [indígena];
isso porque a dicotomia essência/aparência remete à série de dicotomias: corpo/alma, natural/sobrenatural etc;

o uso da linguagem na desconstrução e criação de valores e práticas conservadoras libera a dimensão política da prática do conhecimento e proporciona mais que seu uso explicativo, a apropriação do conhecimento como intervenção;
em lugar de conservar valores, as linguagens liberam seu caráter criativo de deslocar as referências tradicionais;

no entanto, o que curiosamente nos faz aumentar a desconfiança em relação à utilização de recursos xamanísticos para a definição de uma verdadeira realidade por trás da aparência consiste na forma com que essa explicação se faz agenciar;
se, mais que um personagem, a expressão os kaxinawá será apropriada aqui como processo de subjetivação [desprovido de substancialidade que os pré-defina] dificilmente se sustentará o seu uso molar;
o que significa definir a ayahuasca para os kaxinawá e para outros como a verdadeira realidade escondida por trás da aparência: eis o deslocamento que se propõe aqui;
trata-se de um problema de regime enunciativo;
falar em lugar do outro: eis um problema arduamente enfrentado pela antropologia, problema que ganha desdobramentos inesperados com o perspectivismo e sua problematização das imagens do sujeito e da consciência;
a partir daí, não é mais tão simples o tráfego [e o tráfico] do enunciado entre a boca do indígena e a caneta do antropólogo;
isso porque tanto um quanto o outro não consistem mais em pontos de partida, mas em problemas a serem desdobrados em suas dimensões moleculares;

o conhecimento do antropólogo tomado como construção ou prática de linguagem [mais que como explicação da realidade indígena [ainda que se utilizando de seus termos]] se volta para uma apropriação desse conhecimento visando faze-lo falar ou contrapor-se à tradição do conhecimento ocidental moderno;

para tanto, descarta a construção discursiva: para os kaxinawá o xamanismo é isso;
sua abordagem se caracteriza por dar voz ao material etnográfico com a seguinte ressalva: o que significa dizer que para os kaxinawá [dizer que] o xamanismo é isso;
só assim o enunciado ganha sua dimensão epistêmica que o colocará frente a frente com o saber branco;
esse deslocamento evitará um sem número de confusões na utilização dos recursos aqui disponíveis;



no entanto, ao se desdobrar tais questões, o que se tem como horizonte é o uso desse instrumental em campo visando a apropriação desses processos em práticas e intervenção definidas nos diversos contextos [conceitual, jurídico, político, econômico etc] que configuram nosso campo de ação;

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