12 agosto 2008



uma coisa é pensar os caboclos como categoria étnica, resultados do cruzamento entre brancos e índios;
outra é pensar caboclos como uma categoria adotada para definir os índios de forma pejorativa;
outra ainda diversa é pensar no uso que se fez de uma categoria como caboclos para ocultar e promover identidades, para forjar subjetividades, para traficar alteridades;


a diferença entre essas três utilizações da noção de caboclos está em que nas duas primeiras se sustenta uma substância que justifica o nome, com a diferença que na segunda se lança uma visão crítica na forma de relacionar o signo ao que ele significa, essa refração que se costuma denominar ideologia;
na terceira, essa redução sígnica (não cínica) dá lugar a uma outra relação discursiva de enunciados;
aqui a noção de caboclos não ocorre com a naturalidade nominativa das palavras, ela acorre às necessidades daqueles que forjam discursos

nesse uso da expressão caboclo interessa menos o que seja [ou não seria] o tal caboclo e mais o funcionamento ou a utilização da expressão em determinado [e restrito] campo discursivo;
em tal campo discursivo a expressão não vale por sua suposta substância ou referente pois um enunciado como 'no acre não existem mais índios' [comum neste co-texto] pode redefinir tais interpretações/apropriações que fazemos da expressão aqui;

essa distinção de abordagens que agora me interessa marca formas de distintas e até dissidentes de apropriação da subjetividade;
na primeira se processa concepções identitárias que veiculam blocos homogêneos que encontram referência em coletivos humanos, seus referentes;
na outra a concepção que atua como marca subjetiva opera numa dinâmica molecular e serve para produzir recortes, alterações, distinções, para constituir ou destituir subjetividades;
serve menos para nominar e mais para criar subjetividades ou identidades, como se insiste em reduzir, sempre num campo gravitacional que tende para a ocidentalização compulsória;
assim, a concepção identitária se define ainda pelos pressupostos temporais que regem as transformações subjetivas das sociedades ocidentais modernas;
isso quer dizer: sempre evoluindo ou progredindo em direção à ocidentalização;

no entanto, o que se pode ver com a redescoberta dos índios que viraram caboclos para voltarem a ser índios é menos um fatalismo dessa condição e mais os mecanismos com que se apropriaram desses processos subjetivantes brancos e suas regras;
os próprios índios possuíam seus processos de subjetivação, muitas vezes mais complexos que esses com que tiveram que lidar;
apesar de sanguinárias e arbitrárias, essas regras não eram complexas: cristianização e batismo para garantir a sobrevivência, proibição do idioma para se disfarçar de caboclos, a marca do patrão tatuada na pele, ocultar qualquer marca da vida tribal etc;

a sua facilidade de tráfego entre essas subjetividades molares [as tais identidades] em que nos identificamos, de se disfarçarem [o que muitas vezes confundimos com uma qualquer capacidade de tolerância à diversidade como traço de brasilidade] consiste mesmo numa característica dos povos indígenas das mais interessantes a serem pesquisadas contra as etnocêntricas concepções do tempo, da história e do progresso encravadas em nosso conhecimento e que persistem latentes sob o verniz da novidade;
essa disposição de trafegar pela ocidentalidade ou mesmo pela diferença/alteridade pode resultar de algo como um anticorpus do processo de retaliação a que os tentamos submeter;
só assim, resistindo ao fatalismo e ao ressentimento que teremos vigor suficiente para empreender ou ceder à tão falada influência dos índios sobre nós, sobre o nosso pensamento, sobre nossa concepção do tempo, do progresso e do nosso futuro;
apenas percebendo sua diferença sob a capa de identidade [etnocídio gratuito mal disfarçado de civilização] que julgamos envolve-los, justificada na idéia de aculturação, é que poderíamos passar a reformular os valores do progresso que persistem referenciando nosso campo epistêmico;
tomando essa diferença onde antes só se vira identidade e afirmando a apropriação de diversos recursos e agenciamentos visando a proliferação de multiplicidade consiste numa possibilidade afirmativa de composição com os povos indígenas;

Visitor Map
Create your own visitor map!