26 janeiro 2008

a performance e a dobra

ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? é necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer; só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nessa ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro; é só deste modo que somos determinados a escrever; suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível; talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio; falamos, pois, de ciência, mas de uma maneira, que, infelizmente, sentimos não ser científica;

(deleuze, diferença e repetição)

invisto nesse debate sobre a arte da docência instigado, por alguns dos comentários, a refletir sobre minha (falta de) experiência docente (e discente);

no conflito entre o esperado e o incerto, entre o saber e o não-de-todo-sabido ou por-acabar;

o problema apresentado na forma da 'proposição batalhadora' (kierkegaard/sócrates) sobre o 'lugar' do aprender, a passagem do não-saber ao saber;

conflito entre a transmissão de algo pré-definido, dado e a construção efêmera de uma vivência de conhecimento, que ganha corpo a partir de uma performance que pode não só colocar o apredente em contato com o não-sabido (conteúdo transformador), como chamar a sua atenção (pelo próprio contato imediato com o conhecimento vivo, proporcionado pela performance) para o próprio processo de aprendizagem, quando atenta para a própria reconfiguração da percepção-consciência sofrida em ato (percepção como plano de imanência);

daí a arte da docência, ou melhor, a arte do conhecimento que nos conduz diretamente contra a forma positivada que define a desinteressante imagem do conhecimento inofensivo e compassivo (em contraponto a um saber da violência e da crueldade (vontade de saber: nietzsche via foucault));

o problema é pontuado na mente vigilante dos estudantes (subsombra desumana dos linchadores) cumprindo o papel da zelosa vigília social, de guardiões conservadores (da moral) do normal, que não trocam o certo pelo duvidoso, engessando-se em suas certezas;

o patrulha é instigada quando se suscita as diversas abordagens de um mesmo problema e a condição de se optar por uma determinada abordagem;

e onde fica o certo e a certeza, aquilo em que devemos acreditar?

e os nossos artigos de fé?

olha que estamos pagando e podemos colocá-lo no olho da rua...

é, nem sempre as relações são as da convenção social, ou melhor, às vezes a convenção social se torna autoritária (ou assume seu autoritarismo);

e aí, haja convicção para não se tornar um cínico acossado ou, pior, simplesmente um acossado;

haja zen ou espírito de aventura para persistir e aperfeiçoar as performances;

numa disciplina como metodologia científica (generalizada) ainda dá para considerar a possibilidade de manobras mais arriscadas, mas quando se precisa passar toda a metodologia da disciplina na primeira aula, é de se arrepiar, pura crueldade, ainda mais num curso positivado e positivante como direito, em que os estudantes são fanáticos e fazem até peregrinação para o rio de janeiro para acender vela na igreja da religião positivista de comte;

a mente positivista dos estudantes, modelada no ambiente escolar, não admite o caráter performático da atividade docente ou discente, daí a dificuldade de se veicular qualquer aspecto construcionista nas atividades de docência e, daí, de aprendizagem;

pois um conhecimento construcionista resulta da maturação de práticas pedagógicas construcionistas;

durante minhas experiências como docente, sinto como que desafi(n)ando uma ordem pedagógica e, daí, do conhecimento;

criar em sala de aula, construir experiências em que o conhecimento e seus procedimentos de construção se dêem a ver, colocar os estudantes a par de seu processo de aprendizagem, eis o que sempre me pareceu um estimulante desafio;

ao que fui chamado à atenção na primeira reunião com o diretor acadêmico, que dizia que, por definição, não se coloca a questão do poder no diálogo professor-aluno, que ela se mantém latente (entendi mais tarde que sua colocação não se restringia à relação professor-aluno);

ou seja, a ordem estabelecida, para se manter o estudante na rédea curta, consiste em, assumidamente, deixá-lo ao largo dos procedimentos metodológicos: evitar referências à incerteza, à variações e discordâncias entre teorias ou hermenêuticas, em suma, à diferença, não tratar a perigosa relação entre saber e poder, a produção social das verdades etc;

por isso, no contraponto libertário, tender a experiência docente para seu caráter performativo,

pesquisar performances que correspondam ao saber que se dá na chave n-1, da diferenciação, na chave da desconstrução, na chave da genealogia dos valores e das verdades e não do saber positivo, explicativo, que oculta o plano em que se constitui;

não se trata de fazer aparecer no quadro negro dos valores estabelecidos (estado) as brancas verdades positiva(da)s, e sim de estudar a constituição desse quadro (valores) que faz fundo e dá sentido às verdades positivas;

pois esses valores é que darão sentido ao que for escrito;

o caráter performativo da experiência docente decorre ou incorre na intensificação do caráter performativo do conhecimento, da experiência de um conhecimento que se constitui em ato;

essa experiência decorre, no entanto, da própria concepção de antropologia que venho perseguindo e constituindo em minhas pesquisas;

daí o interesse de tomar como ponto de partida para uma abordagem em fundamentos da educação e antropologia educacional, o texto de o nascimento da tragédia (a concepção do trágico) de nietzsche que se debruça sobre a questão do performático e da representação no teatro e na arte e no pensamento;

o trágico, que é concebido por nietzsche, consiste em retomar da tragédia um espírito, uma dinâmica que deverá caracterizar seus escritos;

esse trágico rompe com a disposição espiritual da ciência objetivista (também típica da economia espiritual judaico-cristã, baseada no arrependimento e do historicismo como disposição de um 'foi assim' fatalista), em que a arbitrariedade (aleatoriedade) dos acontecimentos é organizda pelo determinismo racional, donde recupera da tragédia antiga seu hiper-determinismo, ou melhor, lembrando aquilo que lévi-strauss chamará (a partir da consideração da magia como pensamento selvagem) determinismo global e integral (princípio de uma ciência dos possíveis que encontrará seus critérios/marcadores numa sociocosmologia, no animismo, na participação, e, depois, no perspectivismo e outros pensamentos que se pretendem pós ou para-levi-straussianos (perspectivismo ameríndio: 162-3), ou melhor, lembrando as considerações de gabriel tarde sobre os possíveis, numa ciência das possibilidades (outro nome para aquilo que hubert-mauss chamariam 'essa gigantesca variação sobre o tema do princípio da causalidade' (pensamento selvagem: 26));

(esse movimento, somado à dobra advinda da hermenêutica, conduz ao que mais recentemente juntou um amplo espectro de fenômenos sob a denominação de autopoiésis, cunhada a partir de uma certa biologia do conhecimento, proposta por varela e maturana;)

certo que esse trágico carrega consigo uma dose de fatalismo, melhor, de fatalidade;

no entanto, esse fatalismo se ocupa mais do aberto futuro que do inquebrantável passado;

é menos do fatal ou do fatídico, e mais do fático que trata esse trágico;

daí que se chega ao caráter poietico da filosofia (para o autor, sempre);

caráter esse que nos faz ultrapassar filosofia e poesia, em que filosofia e literatura passam a se interpenetrar em lugar de se oporem, em que se impõem novas categorias ou gêneros que dêem conta da literaturidade da filosofia ou vice-versa;

por aí que passa a discursividade nietzscheana, essa zona de indiscernibilidade que passa a circunscrever tanto os limites da ciência como da arte literária, que aglutina tais práticas discursivas numa mesma poiesis, mas consideradas segundo campos intensivos infinitesimais: teores de literaturidade, recursos da discursividade científica utilizados na literatura, ciências afins à literatura...

um exemplo clássico aqui é o da partilha de recursos entre a antropologia (classicamente classificada como ciência social, o que a mantém na órbita da ciência régia de estado) e a literatura (não-ciência por definição) no perspectivismo seminal de viveiros de castro, já bastante inspirado em clastres, elaborado em seu trabalho/sua pesquisa junto aos araweté;

estudando o xamanismo araweté, mais especificamente os cantos xamanísticos, de forma similar aos exercícios de clastres, eduardo viveiros de castro registra e analisa o regime enunciativo próprio desses cantos em toda a sua complexidade, fazendo (ou pelo menos extraindo) dessa análise o princípio metodológico de sua etnologia, segundo a qual o problema em antropologia resulta de uma ou de todas as possíveis (ou necessárias) convergências;

clastres havia apropriado esse mesmo recurso em seus artigos dos anos sessenta, e são, conforme proponho, a fonte de inspiração ou o princípio de composição (plano de imanência) da antropologia como máquina de guerra, ou seja, voltada contra o estado e não mais como aparelho colonial de dominação;

o que quer dizer a possibilidade de uma antropologia que mantenha em consideração e análise os seus instrumentos de trabalho tais como a enunciação, ou as formas de dispor as vozes no texto, o discurso, ou o caráter contra-positivo da linguagem, o que conduz a consideração das referências políticas que contextualizam o texto (vide o texto da mariana sobre o recente papel do estado no fenômeno de alagação no alto juruá, ainda que eu preferira quando se coloca a antropologia e os antropólogos no meio (do estado) e não olhando 'de fora' (ou seja, desvinculando conhecimento/ciência e política) entre outros);

essa abordagem dos seus recursos e de seus métodos mantém-na na dinâmica de uma genealogia, o que dificulta sua apropriação por um discurso positivista que busca alienar-se numa objetividade neutra;

deleuze-guattari falam de um plano de imanência que se revela enquanto dá a perceber, contraposto a um plano de transcendência, o qual dá a perceber sem poder ser percebido;

o caráter meta-teórico não consiste numa postura erudita da arte pela arte, estaria mais para uma arte enquanto política ou para uma ecologia subjetiva;


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