19 outubro 2006

longa é a história que precede esse assunto, no entanto, vamos lá;
definiria hoje a antropologia como o estudo das perspectivas: como se constituem perspectivas, de que são feitas, como funcionam, para que servem, como se relacionam, como caracterizar sua gramática... etc.;
o que levou a antropologia de seus objetos abstratos e metafísicos – os estudos do homem... etc. – a uma tal abordagem pragmática e imanente, foi seu exercício de voltar-se para si, mobilizando seu instrumental em seu favor, colocando-se como experiência em estudo, e, com isso, redefinido sua matéria;
o tal homem não subsistiu ao estruturalismo, menos ainda ao capitalismo, foi pulverizado pelo arsenal produtor de realidades econômicas, sociais, políticas, cotidianas;
ao longo do século vinte os instrumentos de produção e transmissão de vozes coletivas se proliferaram, fazendo o falar pelo outro, prática clássica da antropologia, um dos dispositivos centrais das micropolíticas urbanas desse tempo;
a imprensa, com sua natureza política de quarto poder, consiste no laboratório de experiências das enunciações coletivas que vão nos caracterizar, a nós brasileiros;
ela já nasce o grande irmão, se não em escala, em discurso, já possui o olhar megalomaníaco do discurso homogêneo e autoritário que define a política e a história do brasil;
dado certo contexto, a antropologia, especialmente a da periferia, ao se auto analisar, analisar seu próprio discurso, descobre sua natureza híbrida, entre nativo e pesquisador;
tal processo desnuda sua natureza discursiva, relacional, bem como a pulveriza nas micropolíticas cotidianas, como prática molecular, como agenciamento autônomo de perspectivas pelo mais diversos grupos;
os grupos, os marginais exploram práticas discursivas: os beatniks na literatura com suas narrativas experimentais, explorando os devires marginais mais diversos visam criar um idioma para um novo povo, desconstróem o viés homogêneo que caracteriza a literatura do século dezenove, investem na derrocada, abortam os últimos suspiros da narrativa épica que trabalha as enunciações homogêneas;
o processo de popularização da antropologia, esse dar voz ao outro descoberto na imprensa, ainda retomou a roupagem do século dezenove, como se fosse essa a possibilidade de expressão do proletariado, dos marginais;
no entanto, não obstante o caráter fundamentalmente político de tais práticas, o que esse conjunto de procedimentos possibilitava era justamente uma desconstrução do sujeito do século dezenove, agenciado por essa vozes coletivas e homogêneas, não sendo, portanto, possível, para revidar politicamente a esse processo de dominação dos processos de produção ressuscitar categorias que só faziam reafirmar a ilusão de sujeito, de personagens conceituais no caso;
foi quase todo um século para exorcizar tais fantasmas, o que só ocorreu na segunda metade do século vinte;

antropologia e cinema
quando a antropologia – ou melhor, se se tomar aqui tanto a antropologia central como a periférica, dir-se-á as antropologias, assim: – quando as antropologias se voltaram, deram-se conta, e, principalmente, passou-se a praticar a concepção de antropologia submetida e marcada pelo processo sobrescrito, as velocidades aumentaram, as narrativas se tornaram mais complexas, as crises sucessivas provocaram deslocamentos de eixo na disciplina;
seu caráter relacional, central na construção das narrativas antropológicas, detonou a noção de perspectiva, conceito tanto visual quanto lingüístico;
a escritura verbal, mais especificamente a lingüística, teve função chave nos processos atravessados pela antropologia aqui referidos;
em termos lingüísticos, a noção de perspectiva remete aos processos de enunciação, processos decisivos para a definição dessa antropologia, seja em sua operacionalidade discursiva, estendendo-se pelos problemas epistêmicos em que redunda, seja em suas dimensões políticas;
quanto à escritura audiovisual, antes de assimilá-la a um instrumento etnográfico por seu caráter simplesmente descritivo, cabe rastrear as experiências antropológicas e, inclusive etnográficas, feitas por esses criadores enquanto experiência de linguagem análoga às propostas pelos movimentos aqui atravessados, tendo por guia a antropologia;
assim, o que se procura definir com perspectiva em termos de linguagem audiovisual? é o recorte feito pelo quadro, o olhar por trás da câmera, a seleção de imagens feita pelos cortes, a montagem e o encadeamento de imagens, o olhar do sujeito, do personagem, a troca entre a câmera e esse olhar...?
onde estará, assim, a perspectiva que é o elemento que promove a conexão entre cinema e antropologia, ou melhor, antes de se definir conceitual ou idealmente tal problema, como defini-lo pragmaticamente, em termos de linguagem, como instrumento operatório;
portanto, como se opera com a perspectiva nesse interstício que define a antropologia visual – interstício que abrange tantas experiências de linguagem que muitas vezes se pensa distantes dele e que ao mesmo tempo exclui tantas experiências que se acreditam representar-lhe?

para impulsionar esse devir, propõe-se retomar a gênese da concepção de perspectiva em antropologia;
a conceito é liberado ao se neutralizar o viés positivista – racionalista e empirista – do princípio de representação que pauta esse processo de produção de conhecimento;
quando a linguagem se volta para sua natureza operatória, quando se coloca em questão a tradição metafísica que define a ciência por seu objeto e por sua capacidade de neutralidade na representação desse objeto e de seus processos, passa-se a trazer para os procedimentos o processo de construção do conhecimento, esse processo passa a fazer parte do próprio conhecimento, do próprio resultado, exorcizando, com isso, a idéia de um método e de um conhecimento absolutos, para além de qualquer juízo de valor;
para que a objetividade continue sendo objetivo da ciência a noção de objetividade precisa reformular-se;

o caráter formal passa então a coabitar esses processos de produção de linguagem ombro a ombro com o conteúdo ou, por vezes, destacando-se em primeiro plano, desdobrando vertiginosas metanarrativas ou metateorias;
tais procedimentos requerem outros métodos de construção textual, bem como uma outra sensibilidade para recepção de tais obras;
a perspectiva resulta, assim, dessa outra sensibilidade, dessa inteligência voltada para a percepção de tais desdobramentos narrativos e enunciativos;
o olhar que olha se percebe a olhar, a experimentar olhares, captura-los, apropriar-se desses outros olhares, ou melhor, devir esses outros, deixar-se apanhar, assimila-los numa memória corporal, material;
esse olhar que experimenta com sua própria materialidade, sua percepção, resulta do processo que aqui se traça;
experiência metalingüística da sensibilidade, entre a sensibilidade recriada in actu do criador que, enquanto cria, opera a sensibilidade do espectador como seu intercessor, co-autor do trabalho;
jogo de perspectivas que se associa à dinâmica da caça: o criador busca circunscrever e caçar a sensibilidade do espectador num cinema da crueldade;
no caso, se o criador se deixa vagar, inconsciente de sua mira, pode ser ele a estar na mira desse espectador conceitual;
o xamanismo como ciência da percepção, que tantos instrumentos forneceu à antropologia, certamente os terá a oferecer à antropologia visual;

documentário e ficção
uma característica da operação realizada pelo pensamento desse período, no caso, se buscarmos regularidade que alinham procedimentos de construção de conhecimento, é o trabalho sobre a indistinção entre sujeito e objeto via olhar, contato;
o processo de separação, de distinção entre sujeito e objeto, visando a neutralidade do discurso, típico do racionalismo e empirismo precedentes, conheceu seu limite, cumpriu sua função, e passa-se então à busca de outros pressupostos;
é nesse processo de experimentação, nessa alquimia entre sujeito e objeto possibilitada pelos recursos discursivos, antes alheios e mesmo invisíveis do campo perceptivo e do campo semântico dos antropólogos, que será reformulada a noção de objetividade;
o processo de construção de objetos conceituais passa para o primeiro plano, passando a ser tratado no mesmo plano, no mesmo nível com que se trata o objeto;
alinha-se, portanto, no texto os níveis de tratamento do objeto e procedimentos de pesquisa, de apreensão, bem como procedimentos de linguagem com os quais ele é construído;
no caso da antropologia, o objeto é trazido para o primeiro plano, o plano do discurso do narrador-autor: mesmo valor, mesmo nível epistêmico;
estabelece-se uma simetria entre tais discursos, simetria essa que será problematizada na reflexão sobre os procedimentos de pesquisa que deverão trazer igualmente a marca desse pragmatismo próprio dessa simetria;
o exemplo de partida é a entrevista que será vista, a partir de agora, com mais desconfiança, por criar um espaço discursivo de laboratório, que isola o entrevistado de seu uso cotidiano e espontâneo da língua;
tal prática não será descartada, mas só fará sentido acompanhada de estratégias que visem dirimir o impacto desse procedimento, trabalhando-se paralelamente com outros procedimentos, como por exemplo procedimentos que promovam a autoria coletiva do material produzido para a análise ou mesmo para a própria pesquisa;

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