02 setembro 2005

Tempos Modernos


Tempos Modernos

O filme de Charlie Chaplin pode ser considerado como um tratado crítico de técnicas corporais. Utilizando-se de seu arsenal de gestos, trejeitos e movimentos articulados por um corpo cultivado na escola mambembe do circo num período anterior à emergência tecnológica, o autor opera uma crítica da modernidade tendo em mira o uso que se fazem dos corpos nessa era das máquinas. Corpos e máquinas se misturam. Operam em continuidade, ao ponto de se inventar uma máquina de alimentação, ao ponto do empresário perseguir o operário dentro do banheiro (consciência).
A apropriação que o filme faz do espaço coordena-se com a possibilidade de explorar os corpos. Trabalha-se com planos abertos, poucos cortes e manipulações da imagem. Os recursos sonoros são apropriados nas vozes das máquinas e dos apitos (cenas: fábrica, voz do patrão, toca-disco, apitos da prisão). A música tem função narrativa e visual fundamental (cena do refeitório, cenas: início, intensidades, tensões sociais).
Um ponto central na abordagem do filme é seu caráter meta-teórico. Por meio do filme o autor teoriza o cinema. O autor se refere ao próprio cinema ao explorar espaços como a fábrica ou a prisão. Demonstrando como o corpo é apropriado nesses espaços, refere-se à apropriação do corpo pelo cinema. A primeira cena do industrial em sua sala, monitorando todo o espaço, coloca-nos a questão central primeira da sociedade de controle que aperfeiçoa antigas técnicas de vigilância, apropriando-se agora dos recursos tecnológicos. O espaço que vemos na tela é o espaço da produção. Carlitos é o agente da disfuncionalidade. Lembremos que é assolado pela loucura que opera a ruptura de espaços e sai do espaço da fábrica para a luz do dia. Não sem antes bater o ponto.
É o filme dentro do filme. Assim como vimos que as vozes que soam são as vozes das máquinas, a imagem inicial do filme é a tela dentro da tela.
Esses corpos-máquinas (corpo do operador de controle da fábrica) são sobrevalorizados por sua artificialidade, sua reinvenção em descontinuidade com a máquina. A espontaneidade é o elemento que ameaça essa ordem.
O corpo produzido pela indústria cinematográfica (lembremos do corpo de John Wayne, por exemplo, de sua barriga e de sua maneira de subir ao cavalo nos filmes da maturidade) é o corpo dócil, o corpo moldado na poltrona (e, no nosso caso, no banco escolar). Assim, também, são os recursos de linguagem que se tornam cada vez mais explorados na confecção dos filmes como é o caso dos fechamentos dos planos em plano americano e em close. Enquanto este foi cada vez mais se tornando característico dos filmes de ação (western e policiais), aquele ganhou notoriedade nas grandes narrativas, com o uso do plano/contra-plano, e nos filme de amor.
Nosso filme, no entanto, privilegia cenas abertas, à luz do dia, em ambiente externo. Cena clássica é a cena do líder comunista Carlitos, cena em que se mostra tanto a manifestação dos trabalhadores como a repressão policial. Essas cenas têm forte influência dos filmes documentários, tendência oposta à qual se encaminhava a indústria cinematográfica americana, no sentido da manipulação incansável das imagens, do fechamento cada vez mais intenso no interior dos estúdios, do cultivo da artificialidade de temas, enredos e personagens.
Ao invés da artificialidade dos estúdios, rupturas similares a do teatro épico, que denuncia o deus ex-machina dos recursos tecnológicos na produção artística. Até mesmo a máscara do palhaço Carlitos já se evidencia em cena e não mais se esconde. Com sua espontaneidade Carlitos denuncia a artificialidade funcional dos demais personagens.
Desse jeito, a intenção do autor com sua abordagem da corporalidade é denunciar certa degenerescência que acompanha a utilização dos corpos pela sociedade moderna. O corpo é, assim, evidenciado enquanto instrumento, revelando a apropriação e transformação das técnicas corporais por essa sociedade através dos símbolos e valores associados ao corpo.
É assim que o autor coloca em cena diversos discursos da modernidade, tal como o discurso da saúde perfeita proporcionada pela ciência farmacêutica. Por vezes os personagens tomam pílulas.
Outro discurso relacionado à saúde é o do anti-stress. Nessa cena, Carlitos-louco está tendo alta do hospital, quando o médico recomenda evitar emoções fortes e se despede com um tapa em suas costa que o desconserta. É assim que elabora a problemática moderna da produção de consumidores (de produtos, de serviços e de discursos).
Durante o devir comunista-presidiário, Carlitos vivencia situações exemplares. Depois da demarcação de espaços com seu companheiro de cela, todos os reclusos vão para o refeitório. Todos marcham ao som do apito. No refeitório é colocada a questão da cocaína (coca, cola?).
O valor do corpo e as transgressões a ele associadas podem conduzir o comentário sobre essa cena. A cocaína é o pecado moderno. Pecado extraído da natureza, coca, a cocaína pode encarnar o espírito da modernidade. É assim que Carlitos embala um devir junky.
A operação se dá por debaixo da mesa. O traficante sentado ao lado de Carlitos coloca o nose-powder dentro do saleiro. Ele, por sua vez, se farta do estimulante. Suas reações se dão na expressão facial antológica. Torna-se valente como os personagens de filme de ação. Ao voltarem para a cela, dá-se à cena em que o autor elabora uma cena circense em que parodia o cinema de ação americano, o western.
No jogo das certeiras previsões da modernidade, seja empiricamente, como pelos elementos que serão apropriados como modelos teóricos (prisão e a corporalidade em Foucault), brincamos com a referência à Matrix, na cena em que Carlitos desvia dos tiros.
O problema colocado na prisão com o elemento cocaína é o dos fluxos que atravessam esse corpo-máquina. Ao contrário do que se pode pensar, o tabu também produz consumo, estimula o desejo ao magnificar o proibido. Sem querer operar definições correlativas, a relação tabu-transgressão merece ser associada. Através da paródia o autor prenuncia a sociedade da ação e dos plantões policiais: sociedade tensa..
O poder da pantomima serve-lhe para chamar novamente a atenção sobre o corpo como a máquina mais fascinante a ser cultivada ao invés de posta de lado, em desuso, substituído. Lançando sua obra num vão atemporal desse tempo devorador da memória dos homens o autor faz rir do tempo das máquinas que avançam para ditar o que perece. Afirma a pureza...



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