28 dezembro 2011


Estado neoliberal e resistência na floresta

Tendemos a pensar a atuação do estado em nosso contexto, de uma reserva extrativista, geralmente de forma negativa; tendemos a pensar que os problemas da reserva se devem à falta de intervenção do estado para elaborar plano de manejo, conter os infratores, o desmatamento, contribuir na criação de alternativas sustentáveis para alimentação, moradia, transporte, produção.
Sempre ouvimos argumentos como: “o IBAMA não tem recursos”, “o ICMBio não tem funcionários”, “o plano de manejo resolveria o problema do desmatamento e da pecuarização”, entre outros que lamentam a ausência do estado.
Esforçamo-nos e insistimos que o estado é igualitário e faz cumprir todas as leis com o mesmo empenho. Não desconfiamos do estado, mesmo que seja um estado liberal.
Esses refrões acima, cantados em coro pelos funcionários do estado podem, em sua repetição, capturar outras vozes e serem cantados pelos próprios moradores das reservas que, cansados dos abusos de poder locais, assumem a ladainha como quem reza a nossa senhora das leis ou à divina constituição.

Não nos ocorre, porém, uma abordagem positiva da ação do estado: sua forma de manter o controle social na região é justamente por meio da ausência e do suposto descontrole.
Nesse sentido, podemos generalizar, ou ao menos, aplicar à nossa realidade do Alto Juruá, a leitura foucaultiana de Alfredo Wagner para a região em que se instalava o Projeto Grade Carajás em seu trabalho A guerra dos mapas:

Mediante o amplo desconhecimento das realidades localizadas e a não-atualização de informações elementares, pelas instituições públicas e pelos organismos de planejamento, pode-se afirmar que o descontrole funcionaria como forma de controle social. (p.25)

Diante da afirmação do antropólogo, fica evidente a ingenuidade de se pensar que o diálogo com o estado neoliberal não acontece pela falta de recursos para diárias ou corpo de funcionários disponível. Trata-se de uma política de estado que não só deixa de priorizar as ações garantidas em lei junto a essas populações (para cumprir compromissos com outros seguimentos locais), como vai mesmo operar ativamente no desconhecimento dessas comunidades, de sua cultura e seus saberes, de seus complexos regimes de socialidade, no ocultamento de qualquer função que não seja apropriada por essa política neoliberal e sua redução do social ao mercado do assistencialismo de estado.  

O pragmatismo dos planejadores prescinde de dados fidedignos sobre aquelas situações sociais apoiadas nas economias familiar e tribal, nas formas de cooperação simples, no uso comum dos recursos naturais, na pesca artesanal e no extrativismo em pequena escala. A dominação e o controle são exercidos mediante o desconhecimento e a aparente falta de controle. (p. 25)

É assim que as reservas extrativistas, supostamente garantidas pelo governo federal, acabam ficando (se não foram criadas para tanto) a mercê do jogo político local e da economia eleitoral de prefeituras e mesmo governo do estado, que negociam com as bolsas-assistencialismo criadas pelo mesmo governo popular.
 
Aliás não se trata apenas de ausência, o forte impacto na economia da região dos programas assistencialistas de monetarização generalizada e desordenada da parte do estado, os quais vem se juntar às aposentadorias e os salários de professores e outros funcionários da reserva, não são sequer pesquisados para uma avaliação e um planejamento local. O desordenamento é a ordem do estado.
A partir disso, e sabendo dos problemas criados por uma política assistencialista (e somente assistencialista, isto é, sem quaisquer projetos de supera-la), ainda mais se tratando de uma política assistencialista que opera pela monetarização generalizada e descontrolada entre florestãos (habitante da floresta) de uma reserva extrativista que o mesmo estado se escusa de apoiar, assumindo seus compromissos legais.
Essa política assistencialista tem servido muito bem aos interesses do estado, esse estado neoliberal, pois o dinheiro se torna moeda de troca da economia eleitoral;   

Entender tais conflitos na positividade pode, no mínimo, levar a um processo de politização no trato dos movimentos comunitários com órgãos gestores de um estado liberal em tempos de triunfalismo do agronegócio e do manejo florestal (mesmo que esses órgãos sejam parceiros estratégicos de alguns seguimentos desses movimentos).

No entanto, não estamos defendendo mais controle do estado. Nosso ponto é lançar-se num devir com os conhecimentos tradicionais, que chamaremos aqui de saberes, associados a tecnologias contemporâneas e voltados à resistência aos ataques dos complexos capitalísticos que há tempos colonizam a floresta e seus habitantes.
Vemos nesses saberes propriedades que lhes permitem produzir territórios, socialidade e subjetivação voltados à multiplicidade. Entender tais saberes devidamente imbuídos de seu aspecto político pode potencializar o que essas comunidades teriam de contra estado, apropriando-nos aqui do conceito de sociedades contra o estado de Pierre Clastres.
Quanto aos territórios, em vez do espaço estriado com que lida a ciência régia, o conhecimento científico do espaço apropriado pelo estado em função do controle social na forma de discurso, entendemos que os saberes investem um forte coeficiente de espaço liso na configuração de territorialidades.
O nomadismo próprio desses saberes elabora uma cartografia que conecta hecceidades, segundo um regime de causalidade nada convencional, que opera com as linhas de fuga de um saber da floresta, potencializando o duplo sentido da preposição, mas marcando menos sua função genitiva do que a possessiva, isto é, trata-se de um saber pertencente à floresta e suas subjetividades outras.
Em relação à socialidade, acreditamos que a subjetivação capitalística, potencializada por uma política de generalização da monetarização das relações, conduz ao individualismo ou, pelo menos, ao enfraquecimento da solidariedade entre os moradores da floresta que vêem suas complexas relações de vizinhança e compadrio, por exemplo, substituídas por um emprego na escola local ou pelo trabalho na diária (venda de mão de obra).  
Quanto à subjetivação, ela se articula com a territorialização e a socialidade, mas destaquemos um aspecto. Há muito já se fez notar o prazer e o gosto por conhecer e pesquisar desses povos da floresta. Seu convívio cotidiano com a floresta e a prática da observação que distingue e da atenção que organiza, coloca-os em uma posição privilegiada. Juntando isso aos preconceitos que sofrem por seus saberes, visto que só recentemente esses saberes passaram a ser reconhecidos e por um pequeno segmento da sociedade científica, é com grande prazer que nossos interlocutores apresentam o resultado de suas experiências bem sucedidas em agroecologia.  


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