05 dezembro 2011

alianças demoníacas 1



conversando ontem com um jovem pesquisador em biotecnologia, ouvi a seguinte frase: o pessoal fala de transgênicos, transgênicos são o futuro, para garantir alimento para a humanidade;
interessante, algo em sua fala, contextualizada no universo dos biotecnólogos, colocou-me a prestar atenção, em vez de responder imediatamente;
talvez por que minha experiência seja maior com argumentos que reiterem meu ponto de vista, do que com o debate;
então, pude ver o problema de um outro ângulo, do qual não tinha visto ainda;

é importante que se entenda que o exercício de perspectiva aqui proposto também se contextualiza com as políticas públicas que o estado do acre, estado com forte aptidão florestal, vem implementando: programas com sementes transgênicas para pequenos agricultores;
destaque-se que, por uma série de fatores que ainda precisam ser descritos e analisados, o acre, por outro lado, se destaca por um movimento organizado de produtores orgânicos;
diferente dos transgênicos, o apoio recebido do governo por esses pequenos produtores foram iniciativas isoladas, nunca um programa, as quais vieram geralmente do ministério da agricultura;
quem se debruçou mais sobre a proposta, colaborando com assistência técnica especializada foram grupos de pesquisadores da universidade;

também, assim como esse biotecnólogo, considero fraco o argumento de que tais modificações causem danos à saúde;
não por que não possam causar, mas por que a questão só serve para nos manter presos, ou seja, mais que a resposta, o problema está é na questão;
os agrotóxicos causam danos muito mais evidentes e os aceitamos ainda hoje como instrumento de primeira ordem da revolução verde (agronegócio pós-guerra);
usar tal argumento para manipular a opinião pública?
em todo caso, não creio que seja um argumento forte, ainda que seja o único que tenhamos, já que argumentar com a cadeia econômica e suas estratégias exigiria alguma formação política ou social, o que nossa opinião pública não tem ou quer ter;
assim, utilizamos o medo para aterrorizar o cidadão e desprestigiar o melhoramento genético;

no entanto, sabemos que o combate aos transgênicos e à visão de sociedade que os laboratórios ou corporações promovem, tem se travado também como um combate político pela possibilidade de outros mundos, outras sociedades, outras naturezas, outros conhecimentos, enfim, outras formas de relação que as da exploração e do extermínio;
inclusive por que a visão de mundo manipulada pelas corporações hoje alimenta-se da imaginação monista, do universo unificado numa gênese que vem desde as unificações de dimensões religiosas, passa pela síntese histórica da civilização e do estado colonizador, pela ciência positivista do progresso, com o seu grande divisor natureza/cultura a sustentar sua concepção universalizante do mundo natural, bem como seu complementar (multi)culturalismo, da unificação da realidade simbólica com a publicidade e a monopolização do futuro empreendida pela mídia, com toda a manipulação política que já conhecemos e aceitamos, da grande unificação do estado financeiro global que nos suborna com as esmolas do assistencialismo e aterroriza com seu poder de criar inimigos, enquanto o mercado financeiro empreende o sistema de escravização globalizado;

a resposta dos laboratórios também tem sido no mesmo nível de suas práticas de mercado: lobby, influência política, corrupção, propaganda;
o caso de marina silva (michael) pode servir de exemplo, bem como alguma notícia do que se passa no peru, que aprovou no congresso um resguardo de 10 anos para medir os impactos dos transgênicos antes de adota-los;

não tenho dúvida que se trate de uma questão econômica: estamos em um mundo em que as corporações saqueiam e escravizam diante de todos e ainda são homenageadas pela mídia como as grandes e únicas promotoras do nosso bem-estar;

no entanto, o que me chamou a atenção foi o problema de conhecimento aqui envolvido;
os transgênicos estão envolvidos em uma longa cadeia de produção de conhecimento, de ciência: direitos sobre propriedade intelectual, fórmulas, copyright;

o filme corporation propõe uma questão interessante: a da relação problemática das corporações com a sociedade;
comparando as corporações a indivíduos, pessoas jurídicas, analisa sua condição e descreve suas possíveis patologias; 
segundo a comparação e a análise proposta pelo filme, corporações são psicopatas;

portanto, parece interessante, a altura em que chegamos, estabelecer relações entre regimes de conhecimento, políticas públicas e os regimes de relacionalidade, a socialidade que se associa a tais conhecimentos;
o regime de conhecimento produzido pelos laboratórios e corporações traz embutido ou pressuposto toda uma imagem de sociedade e de relações sociais;
cremos que é importante começar a entender minimamente, ou pelo menos ponderar, o que está aí inscrito para podermos relacionar esse conhecimento e essa ciência com nossos regimes de saber-poder locais;
mesmo que sua megalomania nos ofusque os sentidos ou nos sintamos intimidados, penso que não há como nos contextualizarmos sem trazer para o jogo esse regime de saber-poder, sua influência, seu poder de decisão hoje quanto às questões mais decisivas da vida pública; 

isso, inclusive, por que nossos regimes de saber-poder são menores na medida em que escapamos desse determinado regime, que atualiza o majoritário e que hoje domina, que responde pela ciência régia;

aqui tomamos, ao lado do rizoma e dos saberes nômades, a noção de literatura menor também elaborada pela articulação deleuze-guattari: uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior;
o que caracteriza inicialmente essa modificação é um forte coeficiente de desterritorialização;

na ilha da ciência régia, bem localizada, territorializada, abriu-se um rasgo de caos por onde vazam devires-animais, por onde escapam toda ordem de estranhezas evitadas pelo bom senso comum de um mundo unificado;
enquanto regime da ordem, da explicação, da objetivação, do molar e do extensivo, do estabelecimento de valores para a determinação de uma verdade, de uma imagem do verdadeiro mundo, a ciência régia responde pelo controle pela territorialização (ver conclusão de o que é a filosofia?);

desterritorialização quando se investe na diferenciação em vez da identificação pela explicação;
em vez de uma convergência, conquistada pelo isolamento da perspectiva humana, operamos com a divergência, fazendo passar pela matriz da perspectiva humana uns tantos outros sujeitos, ou partes de sujeitos, ou devires[1];
aqui a perspectiva já não é mais função da identificação, ela se torna suporte para a diferenciação, num processo de desterritorialização em que nada será como antes;


mas não se trata de emprestar a perspectiva (oncinha pintada, zebrinha listrada, coelhinho peludo...), trata-se de aliança demoníaca;


[1] Um devir não é um nem dois, nem relação de dois, mas entre-dois, fronteira ou linha de fuga, de queda, perpendicular aos dois. Se o devir é um bloco (bloco-linha), é porque ele constitui uma zona de vizinhança e de indiscernibilidade, um no man's land, uma relação não localizável arrastando os dois pontos distantes ou contíguos, levando um para a vizinhança do outro, — e a vizinhança-fronteira é tão indiferente à contigüidade quanto à distância. Na linha ou bloco do devir que une a vespa e a orquídea produz-se como que uma desterritorialização, da vespa enquanto ela se torna uma peça liberada do aparelho de reprodução da orquídea, mas também da orquídea enquanto ela se torna objeto de um orgasmo da própria vespa liberada de sua reprodução. (deleuze-guattari, mil platôs 4: 91)

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