13 fevereiro 2011

 

Que tipo de música produz um povo indígena com dezenas de milhares de pessoas, habitante de uma região de trocas culturais seculares e cuja história de contato com o homem “branco” remonta ao século XVIII? É claro que essa música será tão diversa e complexa quanto a própria sociedade que a produz.
Este disco apresenta apenas uma pequena mas representativa amostra do rico universo musical tikuna, no qual cantigas muito antigas convivem, e às vezes se misturam, com músicas tocadas em instrumentos eletrônicos, comuns nas margens do rio Solimões.
Embora nem sempre seja possível estabelecer fronteiras entre música “tradicional” e música “moderna”, os Tikuna que participaram deste trabalho identificam dois grandes grupos de expressões musicais: a música herdada dos antigos, da origem, ligada aos rituais e às ações cotidianas mais importantes; e a música feita desde o início do século XX, com a chegada das primeiras frentes seringalistas e o estreitamento do contato com a sociedade regional. De todo modo, qualquer tipo de canto, não importa se “tradicional” ou “moderno”, é chamado de wiyae.

Tikuna 1 (Magüta arü wiyaegü)

A partir da década de 1970, a luta pelo reconhecimento do território tikuna resultou também em uma recuperação e reformulação de práticas culturais. Desde essa época, os Tikuna têm chamado de “tradicional” a música cantada durante a Festa da Moça Nova e outros rituais nela reunidos, além de outros repertórios musicais, como as cantigas que trazem narrativas de origem e fundação do cosmos, do mundo e das coisas, das gentes e dos animais.

É o caso, por exemplo, do canto que abre o CD 1 (faixa 3), por Pedro Inácio Pinheiro, liderança histórica do povo Tikuna e conhecedor das tradições do grupo.
Perguntado sobre a origem dos cantos, da música, Pedro apresenta aquele que teria sido o primeiro canto na longa história tikuna, que começa nos tempos de Ngutapa, o “pai criador”, no alto igarapé São Jerônimo (território sagrado para os Tikuna, mais conhecido como Éware). Nele, narra o momento em que, aborrecido com sua esposa Mapana por ela não lhe dar um filho, Ngutapa amarra-a em uma árvore para ser mordida por formigas, pelo que e sai cantandode satisfação, andando pra frente e pra trás. Este evento é um dos que abre o principal ciclo de narrativas tikuna, que culmina com os nascimentos de Yoi e Ipi, personagens centrais na fundação do mundo.
Desde os cantos de origem, ligados ao tempo dos imortais (ü-üne), até os contemporâneos, encontramos a referência a Éware (CD1: 2, 4 e 10; CD2: 4 e 6), o território sagrado onde os Tikuna foram pescados por Yoi, o principal herói mítico do povo. Em meio a suas peripécias com seu irmão Ipi, Yoi resolve pescar peixes que mais tarde virariam gente. Após tentar com várias iscas, experimentacom macaxeira e finalmente consegue pescar aquele que seria o seu povo, os Tikuna. A narrativa que conta a história da menina Worecü, origem da Festa da Moça Nova, faz parte também das histórias de fundação do mundo.
A Festa da Moça Nova começa logo ao amanhecer, quando o som dos tutus (pequenos tambores com pele bem esticada) vai tomando conta da aldeia, e os tocadores vão caminhando em círculos ou em forma de oito dentro da Casa de Festa (to õ tchine ri tchöegune) (CD1: 2).
Os cantos que seguem a abertura dos tutus compõem-se: de cantos de conselho e os cantos para ralar genipapo (CD1: 8, 10, 12 a 16); cantos que podemos chamar de “improvisos” em que, em base melódica tradicional, o cantor narra sobre feitos acontecidos, ou sobre o que acontece no momento; e cantos ligados a outros rituais ou ligados à personagem ou eventos de narrativas mitológicas (CD1: 3, 5 e 9).
Quando registramos o que os moradores da aldeia Nova Jerusalém, T.I. Évare II, chamaram de “apresentação” da Festa da Moça Nova, dentre os primeiros cantos registrados, estavam os de improviso, alguns comentando sobre nossa vinda, outros sobre quem eram, a que clã e a que povo pertenciam, de quem era aquele território em que estávamos, de que aquela era sua cultura (CD1: 4, 6 e 7).
Os cantos de conselho (CD 1: 8 e 12) talvez sejam os de maior especialidade na festa, hoje conhecidos por uns poucos, sempre muito bem pagos com beiju, carne e pajuaru (fermentado de mandioca). Tradicionalmente, pode ser entoado apenas por algumas das mulheres do lado materno da menina. Nesta coletânea, o cantode conselho é performado pelo pajé da aldeia Nova Jerusalém, através do to’cü (ou aricano), trombeta de larga envergadura (cerca de 3 metros) (CD1: 11). Ao mesmo tempo, ao fundo, em outro to’cu, ouve-se outra melodia em improviso (CD1: 12).

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