31 janeiro 2011


entrevista com rafael menezes bastos na revista música e cultura

Acácio – Como você vê a importância de se estudar a música indígena amazônica ou indígena em geral hoje, e, aproveitando essa questão, você poderia falar um pouco sobre seu livro que está em vias de ser finalizado para publicação, e que é a sua tese de doutorado sobre a música kamayurá, e também a sua própria experiência com os kamayurá que está completando quarenta anos em 2009. Como você vê as transformações que ocorreram tanto na música quanto na sociedade ao longo desses anos?
Rafael – Essa é uma pergunta que me dá a oportunidade de refletir um pouco sobre coisas teóricas e metodológicas que considero muito importantes. Muito obrigado pela pergunta. Vocês sabem que uma das fronteiras do conhecimento antropológico do planeta está exatamente na Amazônia, nas Terras Baixas da América do Sul. Imagine que você queira estudar lingüística, por exemplo. Estudar línguas indígenas onde o fenômeno da linguagem falada tem características absolutamente irrepetíveis em qualquer outro lugar. A variedade das línguas amazônicas, conforme estudado pelo Prof. Aryon Dall’Igna Rodrigues, é algo de estupendo! Um pequeno grupo de troncos e famílias lingüísticas e, ao mesmo tempo, um número fantástico de línguas. Então, no campo da língua você pode ver como é importante estudar a Amazônia. E no campo político, imagine, o que é o Estado? Nós sempre pensamos sobre essa questão nos estudos clássicos sobre o estado africano, por exemplo, sobre o estado na Índia, sobre o estado no Oriente Médio. Dentro da história, sobretudo, as considerações sobre o estado na Mesopotâmia. Agora, sabemos que nessa região do planeta - nas Américas – temos estados, ou configurações estatais, que têm uma caracterização completamente diferente. Então, estudar qualquer coisa, praticamente, na Amazônia significa estar em contato com a ponta da perspectiva teórica, da inovação do conhecimento. No caso da música, que é o nosso campo, ora, como pensar a música hoje? Não se trata daquela velha questão que sempre me pareceu um absurdo hermenêutico, a de que os índios não têm a palavra para música, como não têm a palavra para quasar, não têm a palavra para isto ou para aquilo, mas que, sem dúvida alguma, têm alguma coisa que nós podemos, adequadamente, chamar de música. Só que isto, que nós podemos, adequadamente, chamar de música, na Amazônia, tem paralelismo, encontra similaridade, com tudo
aquilo que se passa na África, na Melanésia, na Europa, etc e tal. Apresenta, entretanto, coisas bem específicas. Eu publiquei um texto, recentemente, no qual mostro algumas destas especificidades, que eu busquei estudando a literatura produzida pelos meus colegas. Como, por exemplo, o papel da música na cadeia intersemiótica do ritual, além da questão da seqüencialidade, do processo composicional e do variacional, e coisas desse tipo. Acho que nós, aqui e agora, estamos tendo a oportunidade de descobrir coisas novas do que seja a música, e que têm, portanto, interesse para aquilo de que já falei anteriormente, de deslocar o conhecimento sobre o humano e, inclusive também, sobre o não humano – porque sabemos muito bem que, não somente aqui nesta parte do planeta, sons não humanos fazem parte da música. Lembro-me que, no campo da música erudita  ocidental, os trabalhos de Messiaen, onde você tem a integração de cantos de pássaros. E, no caso da música amazônica você tem coisas similares. Vocês se recordam do trabalho do Domingos, sobre os kulina, que mostra como o pulso da música está dado não por sonoridades ou por um cálculo humano, antropocêntrico, mas que estaria no cantar dos grilos. Então, eu acho que quem quiser ficar famoso, sendo estudioso da música, venha estudar a Amazônia, e é o que eu tenho dito para os meus
alunos e para os meus colegas de outras regiões. Bom, quanto ao meu livro, ele é a minha tese de doutorado defendida em 1990, na Universidade de São Paulo. Levei algum tempo para concluí-lo, porque havia em mim certo medo – pensava que, ao concluir esse texto, o livro, estaria terminando a minha própria vida. Estou revelando uma coisa engraçada... Ele é a descrição de um ritual de longa duração, xinguano, dos índios kamayurá, chamado Yawari, que significa jaguatirica e espinho de tucum, e que inclui uma transcrição integral do ritual, feito de música vocal masculina. Esse livro, portanto, abre algumas possibilidades de refletir sobre a própria idéia de ritual na Amazônia, e nesse sentido eu trabalho muito com o conceito da Ellen Basso, ritual musical. Quer dizer, os ritos na Amazônia são basicamente ritos musicais, e trabalho com algumas idéias, de algumas características da música amazônica que me eram insuspeitadas e que só recentemente eu tenho percebido. Esses rituais são rituais de longa duração. O ritual que eu descrevo aconteceu em 1981, mas ele remonta há muitos anos antes de 1981, com a morte de uma pessoa. Relendo recentemente a tese de doutorado de Maria Ignez Cruz Mello, vi que ela descreve rituais que têm a ver com a construção de pilões feita há dez, quinze anos antes da época de sua descrição. Esses pilões iriam ser queimados exatamente durante os rituais que a Mig estudou. Numa região famosa por não ter muito interesse pela profundidade cronológica – na Amazônia nós temos essa célebre amnésia cronológica: o tempo, depois de algum tempo, é cancelado. É o caso nos sistemas de parentesco, isto fica muito claro, nos sistemas terminológicos. Pois bem, como é curioso, numa região famosa por descurar o tempo, ter a sua música, vista no mundo indo-europeu como uma arte que cancela o tempo, exatamente como aquela que trabalha a longa duração? Esta é uma questão muito interessante. É como se a música fosse uma espécie de caixa onde se guarda a história.
Quer dizer, as sociedades frias, no caso, amazônicas - concordo integralmente com Lévi-Strauss, são realmente sociedades frias, ou seja, sociedades para as quais a história não é que não exista, mas não é um valor -, trabalham muito mais no eixo do mito. Mas na sua música nós vamos encontrar alguma coisa curiosa. A música (tonal) não é famosa no mundo ocidental por trabalhar a historicidade, mas o mito. O próprio Lévi-Strauss, aliás – como também Spengler e Adorno - vai mostrar que a música no Ocidente trabalha com o mito. No mundo ameríndio vai trabalhar com a história, que curioso isto, não? Isto é um improviso, eu nunca tinha pensado assim. Tenho, então, trabalhado na finalização daquilo que será um livro baseado em minha tese de doutorado. Qual é a última parte da pergunta?

Acácio – Sobre a observação que você tem tido dos Kamayurá, a longo prazo, quarenta anos que você tem estado com eles. Principalmente na questão da música, bem como em outros aspectos.

Rafael – Uma vez escrevi um texto que dizia que no mundo xinguano, amazônico, Parmênides e Heráclito se encontram, ou seja, sempre o mesmo acerca do mesmo e tudo flui. São duas formas muito interessantes de olhar, ouvir e ver as coisas. Nesses quarenta anos, é evidente, os Kamayurá passaram de uma sociedade quase totalmente não monetizada para uma sociedade que usa, cada vez mais, a moeda. Passaram de ser uma sociedade quase completamente ausente do mundo da chamada mídia e tudo o mais, para ser uma sociedade cada vez mais interessada em estar presente na mídia, inclusive no mundo do show, do espetáculo, da gravação fonográfica. Então nós temos aí a linha de que a água do rio nunca será a mesma. Ou seja, nós temos, efetivamente, através de fatos como esses, evidências de que nesses quarenta anos - que é algum tempo, embora seja pouco numa dimensão histórica – os kamayurá têm tido, sim, a capacidade plástica, digamos assim, de se articular com o mundo do dinheiro, da mídia, com o mundo dos brancos. E não somente se articulam, é como se tudo isso tivesse sido postulado por elas mesmas, no princípio. A própria idéia das máquinas, do gravador, da máquina fotográfica, tudo se passa como se elas estivessem no princípio de sua cultura.
Agora, se, de um lado nós temos esse mundo das mudanças, de outro, temos de reconhecer ali, no Alto Xingu e entre os kamayurá, uma forte presença do mundo da permanência. E aqui me recordo do que disse Lévi-Strauss sobre isso, que o grande problema da antropologia não é somente a mudança, mas a permanência. Porque que as coisas permanecem? Ao mesmo tempo em que estas mudanças se evidenciam, e portanto, aquela história do jogo de cintura, os kamayurá são os mesmos. Ou seja, tudo se passa como se eles mudassem para poderem permanecer iguais a si mesmos (Lux Vidal me falou uma vez assim, sobre os ameríndios em geral). A minha resposta é um
pouco paradoxal. Acho que é como se você tivesse encontrado no mundo amazônico essas duas leituras do mundo. Uma leitura na linha de Parmênides, que conforme Platمo é aquilo, sempre o mesmo acerca do mesmo – o tempo nمo passa -, e de outro lado o Herلclito onde você vê o fluir contيnuo da mudança. Numa visمo popular de tudo isso, hل a despolitizaçمo da mudança, e, naturalmente, todos devemos nos preocupar com a questمo da mudança e de como ela estل impregnada de exploraçمo, de dominaçمo e de prلticas perversas em relaçمo às sociedades indيgenas - a invasمo de sua terras e coisas assim. O caso agora em Roraima, é extraordinلrio. Como um general, que é comandante de um exército, é capaz de dizer, publicamente, que é contra a lei? Fosse eu o ministro da defesa, mandaria prender o general. O problema é que, no Brasil, os generais nمo podem ser presos por descumprir a lei. Eles a descumprem, publicamente.

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