11 junho 2010



Encontros

De certa forma este texto faz rizoma com o texto anteriormente escrito para essa disciplina. Tratou-se no primeiro texto de diversos pressupostos que nos estão impostos por uma abordagem histórica do teatro. Esse tema interessantíssimo já foi anteriormente tratado pelo professor Graça Veloso, em seu texto a respeito dos senões com as histórias do teatro que nos restringem a um eurocentrismo ultrapassado, ou mesmo no semestre passado quando se tratou da hegemonia e do pensamento hegemônico.

Quando se fala, no presente contexto, de ator, teatro, etc, há de fato o perigo de se entender esses termos como termos genéricos, desprovidos de toda sua complexidade.

Quando falamos, no entanto, do encontro de Tchekov e Stanislavski, tratamos de um contexto determinado, de um teatro determinado, de uma determinada concepção de ator e de teatro.

Quando se fala em termos históricos, a perspectiva que se toma desde o presente é definidora de toda a abordagem. Esta perspectiva é distinta daquela que desconsidera a enunciação, seus valores, suas intenções.

Comecemos, portanto, contextualizando a literatura de Tchekhov.


Uma leitura de Tchekhov

Estamos na virada do século XIX/XX. A literatura se deleita nas novas imagens da subjetividade que ela faz eclodir. Essa desconstrução do sujeito modelado pela modernidade nos pode ser oferecida por um Machado de Assis, primeiro autor a nos apresentar personagens psicologicamente complexas.

A delicada pena de Tchekhov desconstrói com mestria esse herói romântico do século XIX, colocando-o em contato com o mais banal dos cotidianos (a poesia dos chinelos de Bandeira) e extraindo desse cotidiano o mais profundo dos dramas humanos.

Decorrente das experiências subjetivas da narrativa teremos aquele caráter, comentado por Stanislavski, da fábula, do enredo etc que passam a escapar da ordem proposta por Aristóteles.

O teatro da época fracassaria por não se dar conta do contexto literário a partir do qual Tchekhov pretendia redefinir a dramaturgia (e mesmos o teatro) russa(os).

Ao desconstruir o herói, esse sujeito monolítico que segue animando nossos mass media, o dramaturgo iniciava uma desconstrução do próprio teatro como era compreendido em seu universo de influência européia.

Por isso a metalinguagem: o teatro, a peça, a atriz, os espectadores etc, a própria literatura e seu autor. Se a imagem do personagem era a imagem do herói monolítico, correspondente a imagem do sujeito, do indivíduo como produto social, a imagem do teatro consistia naquilo que concebia como representação da realidade.

Como se vê na literatura em geral, a desconstrução desse modelo de realidade se dará por uma subjetivação do foco narrativo que dissolverá a concepção de uma realidade objetiva. Outra forma de se desconstruir essa realidade objetiva será a elaborada por Dostoievski, que dilacera o foco narrativo numa polifonia que canibaliza o narrador.

No entanto, restringir o teatro de Tchekhov e suas contribuições a uma abordagem psicologista pode ser um equívoco. Esse equívoco será esclarecido na medida em que o século vinte dará sentido às conquistas desses mestres da literatura.

Não se trata de focar no velho dualismo interior/exterior. Nietzsche já nos proporia a imagem de uma subjetividade como superfície e o estruturalismo possibilitará definir um sujeito como pura expressão de linguagem.

O teatro, por sua vez, buscará sua especificidade em paragens distintas daquelas propostas pelo cinema e pela televisão.

Nessa desconstrução da imagem de um teatro reduzido ao logos e ao texto, cujo expoente na Europa foi Artaud, o nosso dramaturgo contribuiu em grande medida para sua época, ao realizar uma operação poética no texto dramatúrgico.

Transpor essa poesia para o corpo dos atores e trabalhar os diálogos que se dissipam em monólogos entre outras possibilidades, são algumas das apropriações que podem fazer de Tchekhov um dramaturgo contemporâneo.


Tchekhov por Stanislavski

Podemos dizer que a supressão do histrionismo e a opção de Stanislavski pelo intimismo consistiu num dos pontos do acerto dessa montagem histórica, desse encontro artístico histórico.

No entanto, reduzir a obra do dramaturgo à concepção que dela faz Stanislavski pode ofuscar tanto um quanto a outra.

Reproduzimos o trecho mais significativo do texto de Stanislavski, onde ele sintetiza sua concepção da dramaturgia de Tchekhov, como ela o teria influenciado definitivamente e orientado sua concepção de teatro.

Se a linha da história e dos costumes levou ao realismo externo, a linha da intuição e do sentimento nos conduziu ao realismo interno. Deste nós chegamos naturalmente à criação orgânica, cujos processos secretos se desenvolvem no campo da supraconsciência artística. Esta começa onde termina o realismo externo e interno. Esse caminho da intuição e do sentimento – do externo para a supraconsciência, passando pelo interno – ainda não é o caminho mais correto, contudo é o possível. Ao mesmo tempo, ele se tornou um dos principais pelo menos na minha arte pessoal.

Não há dúvida, em meio a toda inovação que representava o texto de Tchekhov, que a complexidade subjetiva impressa nas falas das personagens vai orientar o trabalho de Stanislavski para uma busca daquilo que ele denomina interioridade.

A palavra interno/interior é citada por 18 vezes em nosso pequeno trecho de Stanislavski. O vocábulo exterior, junto com esse universo semântico: profundezas, âmago, mineral aurífero etc, compõem uma imagem da subjetividade marcada pelo dualismo próprio do pensamento psicológico da época.

Essa dualidade se desdobra em outros binômios: corpo/alma, razão/emoção, forma/conteúdo, texto/gestualidade etc.

No entanto, se tais binômios nos foram fundamentais para o entendimento de nosso modelo de subjetividade e nossos processos de subjetivação, eles também servem para a reprodução de subjetividades em massa, como nos filmes do monopólio hollywoodiano ou das novelas da Globo, que muitos tentam nos passar, mesmo em nosso curso de formação em teatro, como sofisticada dramaturgia, interpretada por discípulos do mestre e seguidores do método.



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