28 maio 2010


Acredito que o ponto de partida para um comentário da abordagem de Stanislavski consiste no seu contexto. Será difícil o entendimento de sua concepção da interpretação, do ator e de seu processo criativo se não contextualizarmos minimamente sua proposta de teatro, incluída aqui sua proposta de recepção do público, já que propor novos sentidos pressupõe novas sensibilidades.
Nesse sentido é interessante que se compreenda todo o contexto da arte na transição do Século XIX-XX. Nessa transição, o problema do real, da realidade e da melhor maneira para representa-la, para desdobrar a realidade é um problema das artes e das ciências.
Hoje, numa visão retrospectiva e historicista podemos compreender a importância desse processo de virtualização do real, ou melhor, de realização de um possível, já que o pressuposto do real se caracteriza como a marca fundamental de nossa cultura ocidental globalizada.
O problema da representação do real foi também um problema, senão 'o' problema, para Stanislavski.
Assim como Appia busca libertar o movimento daquelas telas pintadas em duas dimensões, utilizando-se da luz, Stanislavski quer libertar não apenas o ator da tipificação na elaboração de personagens, mas também o público.
Se o primeiro passo consiste em distinguir o ator de seu papel, é porque estamos preparados para dar autonomia ao movimento. O movimento como expressão, como construção. Tal como o impressionismo desfoca, cubismo estilhaça, o surrealismo distorce nossa impressão do real, também aqui nos apropriamos de técnicas que começam a trilhar um novo caminho para a representação, para a simulação do real.
Pausa. Por aqui cabe um comentário quanto ao caráter historiográfico de nossa abordagem. Se seguimos a abordagem nietzschiana segundo a qual o presente devora os vestígios do tempo e define as coordenadas do passado segundo sua vontade de potência, entendemos que falamos de diversos Stanislavskis, como se entrevê em nosso texto sobre tradutologia.
Como nos furtamos à busca frustrada por um verdadeiro ou mesmo original, nos regozijando com a multiplicidade de apropriações e recriações de uma interpretação criativa, focada no corpo, cabe aqui operar a desmistificação desse contexto original que estaríamos nos propondo a rabiscar, pois o contemporâneo emerge em nosso texto, em nossos comentários.
Enfim, estamos aquecendo nossa voz para não entrarmos em um personagem da estatura de nosso pensador com tantos reducionismos e generalizações.
A importância de Stanislavski pode estar em seu método, mas apenas se entendermos que não estamos a nos referir a um método ideal concebido e acabado, vindo direto da mente do pensador, e sim a coordenadas que seguem sendo apropriadas e recriadas e só fazem sentido nessa dinâmica.
Nesse processo, assim como Stanislavski rompe com determinadas limitações da interpretação e da concepção de teatro em sua época, cabe identificar o que em seu vocabulário será burilado ao longo das gerações que o sucederam.
Vou identificar tão só o psicologismo, que caracteriza uma via principal da apropriação de Stanislavski. É natural que hoje se evidencie o histrionismo na busca de um Stanislavski pela abordagem psicológica. Isso porque a psicologia pós-estruturalista (ou melhor pós estruturalismo) viu no sujeito mais um efeito de linguagem, desmontando de vez a aparelhagem que sustentava a alma e seu pressuposto cartesiano, a consciência racional (ainda que a psicologia educacional insista na abordagem desenvolvimentista).
Assim, quando a mente se percebe uma dimensão do corpo, como diria (poderia ter dito) Nietzsche, compreende-se também que Stanislavski continuará vigorando entre nós, mas um outro Stanislavski.
Esse Stanislavski será atravessado por um século de vanguardas, de revoluções e, principalmente um século que experimenta o mergulho da realidade no mundo virtual.
Por um lado, o psicologismo foi a dimensão fundamental do trabalho desse primeiro teórico da interpretação no ocidente. Isso se deu na preparação de atores para o cinema, a televisão e certo teatro que ou reproduz a realidade conforme o século XIX, ou reproduz a realidade produzida pelos filmes ou novelas.
Por outro lado, em vez de reificar subjetividades estagnadas, gangrenadas, num sistema de controle para o consumo, o Stanislavski que seguirá funcionando nas pesquisas de novos teatros, de novas linguagens vai apropriar-se igualmente de novas imagens da subjetividade.
Nessas imagens da subjetividade o corpo, a voz, articulados com os demais recursos, dissolvem aquela estrutura com que se acreditava representar a realidade.

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