23 março 2010


A noção de representação ainda calará fundo por muito tempo em nossa forma de imaginar e criar os mundos que nos cercam.
A tradição de nosso pensamento está calcada na representação que hoje, mais que em qualquer outro tempo, vigora soberana.
Mas como isso pode ser fato num tempo em que os universos virtuais ocupam a maior parte das nossas vivências.
Essa distinção entre uma realidade vivida, uma realidade de fato, contraposta a uma realidade fictícia, de possibilidade, tem raízes profundas em nossas vivências religiosas, tendo encontrado no teatro uma expressão que atravessou e se modificou através dos tempos, modificando esses próprios tempos.
Na constituição da sociedade ocidental, o universo apolíneo do logos, da cultura, da razão, acabou por soterrar seu complemento dionisíaco encarnado no corpo, no feminino, do instintivo.
O teatro foi um dos instrumentos desse processo.
Como lhe é próprio, na medida em que serviu de instrumento, moldando a realidade segundo os valores dos tempos, o teatro foi também refletindo sua própria forma.
O mundo do ocidental é visto como um palco.
Seu pensamento objetiva o mundo e mesmo sua subjetividade é esboçada como um palco em que se reconhece em complexos encenados desde tempos imemoriais.
Medrosos e cagüetas, nossa experiência política consiste em entrever o mundo pelas frestas de nossas janelas. Sentimo-nos todos, no fundo, como participantes de um grande reality show.
Como diz Siba, de um grande big brother mental.
Incapazes de interagir com o real para além dos restritos critérios do mercado de trabalho, temos restritas e controladas nossas experiências de subjetividade e suas possibilidades.
Iludidos com as possibilidades da tecnologia e do consumo privilegiado, nos sentimos ainda mais frustrados, a mercê das indústrias farmacêuticas ou do mercado da auto-ajuda, que inclui a massificação televisiva da religiosidade intolerante e racista.
Não se trata, hoje, contexto tão particular em termos culturais, em que nos envolve essa rede onipresente, de pensarmos novos caminhos para o teatro.
Que futilidade nos reduzirmos a isso.
Trata-se mais de usarmos o teatro para liberarmos campos de possibilidade num real reduzido à liberdade de consumo.
Libertar-se da representação para assumir a performance como pura expressão.
Não se trata de arte pela arte.
Trata-se de assumir como real o que se passa no palco e a vivência que se tem de espectador.
Pois o surto báquico não consiste numa atuação do ator profissional, e sim na experiência a ser vivenciada com a abolição do espectador, do homem comum.
É essa irrealidade que ameaça a verdadeira realidade.
Se pareço louco é antes pela penetração dessa normalidade e a violência com que ela controla e põe ordem nos universos artísticos para que não invadam nossas ordens psíquicas.
Nosso corpo, nossa voz, nossa atuação, nossas performances.
Tudo justificado pelo tal ‘sujeito’ que somos cada um de nós, com família, nome, rg, cpf, história de vida etc.
Tudo justificado por essa linha divisória que marca (cada vez mais) tão bem (e serve tão bem nossa hipocrisia, afinal, Brasília é tão longe do Brasil) a diferença entre realidade e ficção.

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