arte hegemônica
parece contraditório falar de arte hegemônica e fazer a crítica da arte hegemônica sem sair de seu circuito fechado, de suas referências;
não se trata de esquecer as referências da arte hegemônica, e sim trabalhar sobre outras perspectivas que mudem, que transformem nosso prisma sobre a história e a prática da arte;
algo que sempre acompanhou a arte e o pensamento hegemônico foram as artes e os pensamentos minoritários, que sempre visaram criar bordas e margens férteis e potentes para abalar o sistema teocêntrico do pensamento majoritário;
a institucionalização do minoritário pelo majoritário cria, no entanto, muitos fantasmas;
por outro lado um minoritário de certo majoritário, sempre pode ser o majoritário de outro minoritário;
não se trata de um sistema simples e fixo, e sim de um jogo complexo e em constante movimento;
no entanto, no momento, o que nos interessa mais é o processo de captura do minoritário pelo majoritário por meio de um complexo regime social, econômico e político que vivenciamos;
pode-se chamá-lo globalização, mercado de direitos, cultura do politicamente correto, emergência das minorias etc;
o comércio dos direitos sociais fazem parte do discurso hipócrita da democracia capitalista;
os liberais já chegam a atribuir, numa lição de reescritura da história, não apenas mais a abstrata ‘liberdade’, mas os próprios direitos sociais às conquistas do capitalismo;
essas ‘minorias’ e suas ‘diferenças’ ao passarem a compor o quadro do regime majoritário, o comércio de direitos e subjetividades, deixam o que teriam ou poderiam ter de minoritário;
matéria difícil de objetivar essa da subjetividade;
o feminino ou o devir-mulher, como foi devidamente conceitualizado, não se confunde com a mulher;
ele a atravessa, como pode atravessar outros sujeitos;
o feminino, quando tornado devir, ultrapassa o sujeito mulher e até mesmo o ser humano;
e se o minoritário não se confunde com a minoria (ainda menos com a minoria institucionalizada), em que consiste o minoritário?
se o majoritário nos conduz, por sua natureza teocêntrica e etnocêntrica, isto é, unicizante, ao centralizador regime arbóreo (forma de árvore), o minoritário pulveriza essa obsessão pelo centro num fragmentário regime rizomático (forma de rizoma);
multiplicidade é a natureza do minoritário, assim como o majoritário está sempre guiado pelo unicidade, pelo homogêneo;
imaginar o minoritário é diferente de explicá-lo, de encerrá-lo numa definição comum;
o minoritário pode ser imaginado como uma linha limite;
sempre que nos aproximamos dela (no sentido da captura), ela tende a se afastar, infinitamente, ou, ao menos, indefinidamente;
por isso, a captura que se pode fazer é da ‘minoria’, do ‘excluído’, do ‘marginalizado’, enfim, desses vitimizados subprodutos do majoritário, mas não do minoritário;
esse escapa por todos os lados, dele só temos vestígios, pistas, micropercepções;
porém, todo nosso pensamento ocidental está organizado em torno de centros que lhe dão sentido;
a arte, por natureza irracionalizante, é de nossas raras práticas que possibilitam escapar a essa obsessão pelo centro;
no entanto, dificilmente conseguimos pensar (mesmo a arte) sem nos colocarmos numa ordem temporal, numa organização linear, numa cultura hegemônica, segundo os padrões homogeneizantes das categorias e conceitos;
caso exemplar, no século vinte, é o da história se tornou alvo das críticas dos pensamentos que se propuseram a desmontar esse dentre tantos automatismos do pensamento;
entretanto, não se trata de mera diferença de opiniões;
trata-se da atividade política do pensamento, isto é, de voltar o pensamento contra os valores que estão ocultados nele há séculos e até milênios;
essa psicanálise do pensamento foi muito bem calada na marginalização dos pensadores que a propuseram e na eleição de outros tantos que nos ajudem a conviver mais pacífica e amenamente com nossos valores e os conflitos contra os quais eles nos lançam;
dar vida a esses valores e seus conflitos pode ser um dos tantos talentos do teatro;
dessa forma, o minoritário pode vir à tona num teatro maduro que atravessou o século vinte experimentando todo tipo de deslocamento de seus centros de sentido;
a partir daí o absurdo do teatro deixa de ser tão absurdo assim e mesmo sua crueldade com os nossos valores não pode mais ser taxada de gratuita ou sensacionalista;
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