18 agosto 2009


"As investigações etnomusicológicas tiveram importância ainda, por encaminharem a projeção da corporalidade como matriz dessa epistemologia, como já apontavam as investigações precursoras de Marcel Mauss.
A partir de seus estudos sobre o potlach, o autor concebe uma economia do dom sobre o valor positivo da perda que redimensiona a noção de valor da economia política, centrada na mercadoria, norteada, em sua forma primitiva, pelo escambo.
Ao tomar a categoria nativa como dínamo de sua teoria e, a partir dela, relativizar e circunscrever a economia baseada na mercadoria, o autor encontra suporte material para a recondução da reciprocidade simbólica. Dessa forma, ao abordar as técnicas corporais, assim como a noção de pessoa, aponta para essa opção epistemológica em que o corpo aparece como circuito da socialidade.
À medida que vai se definindo em relação às demais, ao longo do séc. XX, a etnologia brasileira vê se constelarem na órbita do corpo séries de problemas originais. Essa definição, tanto encaminha o corpo como categoria nativa, como fornece a corporalidade como princípio dessas cosmologias.
A atribuição do caráter axial da corporalidade nas cosmologias ameríndias, preparado nessas etnografias ameríndias, é finalmente assumido como programa na obra de Seeger (1980, [1979]1987). A corporalidade se insere na definição de processos de construção de identidades e alteridades, coletivas ou individuais, próprios a essas sociedades.
“Ele, o corpo, afirmado ou negado, pintado e perfurado, resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as sociedades indígenas tem da natureza do ser humano” (Seeger et alli, [1979] 1987:13)

Ao tomar a corporalidade como categoria epistêmica central do pensamento ameríndio, a partir de seus processos de metamorfose, não se toma aqui o corpo como metáfora, e sim, como algo diverso do que assim chamamos. O enfoque fecha-se na relação, no movimento.
“Se os Yawalapíti dizem que a reclusão é ‘para’ se mudar o corpo, esta afirmativa não pode ser tomada como ‘metáfora’; ela deve ser ouvida ao pé da letra, desde que se entenda que o ‘corpo’, para os Yawalapíti, é algo diverso do que assim chamamos.” (Viveiros de Castro, 1987:37)

A partir disso, se constitui o empreendimento de imaginar essa cosmologia não como objeto a ser explicado pela antropologia, e sim, lhe atribuindo valor epistêmico, ou seja, colocada ombro a ombro com as nossas descrições e conceitos. Viveiros de Castro propõe que as concepções desse pensamento sejam tomadas como conceitos propriamente. Essa operação conduz a uma concentração sobre os idiomas simbólicos que constituem a corporalidade, mais do que sobre relações sociais entre grupos, objetivadas em trocas de bens ou mercadorias. A objetividade é reelaborada. Uma polaridade central que converge no corpo é a relação indivíduo/sociedade.
“Tudo neste trabalho conduz a elaborar a noção de corporalidade não só como categoria fundamental das sociedades sul-americanas, mas também como um conceito básico que provavelmente nos permitirá interpretar certos papéis sociais como o chefe, bruxo, cantador e xamã.” (Seeger et alli, 1987:24)
O estabelecimento de uma etnologia que suporte essa teoria do conhecimento ameríndio promove a sonoridade e a ritualidade, até então consideradas como acessórias, ou mesmo desconsideradas, à condição de vetor da produção de conhecimento dessas sociedades.
Viveiros de Castro, num atordoante exercício de ficção antropológica, propõe o animismo como ontologia, ao cotejá-lo com o naturalismo e sua ontologia dual natureza/cultura. Ao multiculturalismo desta, propõe seu contraste com um possível multinaturalismo das cosmologias ameríndias.
“O animismo pode ser definido como uma ontologia que postula o caráter social das relações entre as séries humana e não-humana: o intervalo entre natureza e sociedade é ele próprio social.” (1996:121)
O corpo, via perspectivismo, abrigaria a multiplicidade das naturezas, enquanto circuito da socialidade nessa “cultura”. A ritualidade é referência nesse contexto, visto que fornece o seu recurso principal: o regime enunciativo.
Como plano intermediário entre as representações, propriedades do espírito, e a morfologia fixa da materialidade substancial dos organismos, encontra-se o perspectivismo, propriedade somática. Dessa forma, quando aqui se refere a corpo, considera-se o feixe de afecções e capacidades que é a origem das perspectivas, constituindo-se nesse plano intermediário.
A metamorfose fundamental, de que resulta esse movimento, é no próprio corpo da antropologia. As metamorfoses iniciam-se com a supressão da dicotomia as “idéias nativas” e o “que realmente acontece” (as idéias do antropólogo). Passa-se pela conversão de uma natura naturans a natura naturata, ou seja, uma natureza passiva que circunscreve a sociedade é redefinida a partir de um sociomorfismo cosmológico.
Viveiros de Castro redefine, assim, o animismo como uma “teoria da mente” aplicada pelo nativo e não como condição a que estaria submetido; “...ele não é um estado mental dos sujeitos individuais, mas um dispositivo intelectual transindividual, que toma, aliás, os ‘estados mentais’ dos seres do mundo como um de seus objetos.” (2002).
Por fim, ou melhor, num mesmo movimento, é o corpo o agente e o locus das transformações substanciais, numa dialética onde os elementos naturais são domesticados pelo grupo e os elementos do grupo (as coisas sociais) são naturalizados no mundo dos animais. Esses processos de metamorfose ou devir que constituem elemento central do pensamento e da socialidade desses grupos fornecem um princípio de causalidade dinâmico para a antropologia. O corpo não é mais um elemento estático, ele libera o que há de relacional, o puro movimento do conhecimento.
“A metamorfose reintroduz o excesso e a imprevisibilidade na ordem humana; transforma os homens em animais ou espíritos. Ela é concebida como uma modificação de essência, que se manifesta desde o nível da gestualidade até, no limite, o nível da mudança de forma corporal.” (Viveiros de Castro, 1987:32)"



esse fragmento, tirado de minha pesquisa de mestrado, permite a proliferação de alguns rizomas que se pretendem menos explicativos e mais lúdicos;
a primeira linha que se poderia traçar, atravessando a imagem do pensamento-corpo indígena, consiste na linha da ritualidade menos percursora de um teatro do que possibilidade de desconstrução de pressupostos do teatro, bem como da própria educação ocidental, concentrada no olhar e na imagem da mente como olhar;
esse debate se dará na dissertação por meio da obra seminal do pensamento trágico: o nascimento da tragédia ( melhor traduzido como 'a concepção do trágico'), de nietzsche;
dessa obra programática do pensamento do autor me apropriei para elaborar uma estética da ritualidade trágica para os rituais guaranis por mim estudados desde os anos 90;
penso que o viés indígena para uma desconstrução do teatro, mas principalmente da subjetividade, isto é, da imagem do humano, seja a atualização do devir-canibal formulado por nossos xamãs;

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