28 janeiro 2009

foto: txuta tenê
a disputa por conceitos
relato eventos que embasam as reflexões que se seguem;
há alguns anos, presenciei uma palestra de gilvan müller num evento denominado diálogos interculturais que trouxe ao acre ailton krenak;
o palestrante fazia uma interessante desconstrução dos conceitos de cultura e identidade;
terminada a palestra, ailton tomou a palavra e o que se seguiu foi um debate acalorado;
ailton colocava em questão o que estava sendo dito diante das noções de cultura dos povos indígenas, da identidade que advém dessa noção de cultura;

os kuntanawa
outra situação, deu-se na última reunião com os kuntanawa e opirj, em que, entre outras eles reivindicavam uma forma de reconhecimento que não seja intermediada por antropólogo, mas que seja realizada por eles mesmos;
no disco que gravaram recentemente, há uma música que relata antropologicamente o massacre dos kuntanawa e o que se sucedeu, terminando com um apelo ao 'presidente' que lhes reconheça a terra;

não se trata da relatividade dos conceitos ou de relativizar conceitos [o que remete ainda a alguma convergência, algum universalismo];
trata-se, antes, dessa necessidade de verdade, de convergência em torno de uma verdade, da verdade como convergência, unidade do sentido;
trata-se dessa disputa pela verdade, pela posse da verdade, pela propriedade do conceito;
trata-se dessa força que movia, no debate, de um lado, gilvan, no personagem conceitual do antropólogo, e, de outro, ailton, encarnando o personagem conceitual do nativo;
que os movia a disputarem o conceito de cultura e sua legitimidade [do conceito, de seu uso, de sua enunciação, de sua definição];
trata-se dessa força de convergência que os movia a impor, a partir da legitimidade de seu meio, antropológico e indigenista ou indígena e antropológico, sua noção do conceito sobre o outro;
que inviabilizava qualquer possibilidade de divergência ou partilha do conceito, a partir da igual legitimidade de seus contextos;
que impossibilitava a partilha do conceito segundo seus usos em campos distintos, segundo suas necessidades, suas realidades, seus pensamentos;
isso parece se dever, em grande parte, à idéia, à imagem do pensamento, como universo, como realidade unificadora da multiplicidade, como imagem da realidade e da verdade como unificação;
não se identifica nenhum fora do pensamento, em vez disso, investe-se a noção de cultura num mesmo plano de pensamento, unificado num mesmo plano político de realidade, isto é, investindo numa mesma ontologia ou numa ontologia uma;
não se identifica um pensamento outro, um pensamento não-ocidental, um pensamento nativo;
a ontologia da unidade, de um único mundo, uma única dimensão, uma única realidade e muitas culturas, resulta na imagem do pensamento/pensado como universo, identidade objetivada para ser pensada;

mas não se trata de partilhar experiências;
o conhecimento não se constitui à imagem da partilha e sim, na dinâmica da disputa pela razão e a verdade;
assim funciona o conhecimento conceitual;
a disputa pela verdadeira imagem da cultura era o que estávamos assistindo;
não a simples disputa pelo conceito, mas a disputa pelo conceito a partir de seu uso, de seu campo de utilização, de seus agentes;
o que via, de fato, era o[s] indígena[s] desautorizando o antropólogo [que 'desautorizava' o conceito de cultura ao desconstrui-lo] quando este propõe um conceito de cultura que escapa ao jogo das políticas identitárias de estado, ou mesmo sua utilização pelos indígenas em suas políticas internas;
[se não me engano, gilvan pode ter feito uma referência qualquer com relação ao uso do conceito de cultura e de identidade pelos indígenas [cf. weber]]
de fato, a disputa não seria propriamente pelo conceito, senão pelo território a que o conceito dá acesso e domínio;


sabe-se que a retórica da afirmação cultural e do fortalecimento identitário foi a política indigenista de estado que garantiu as últimas décadas de direitos fundiários aos povos indígenas;
desconstruir agora esse procedimento, ao mesmo que urgente se mostra bastante doloroso, visto que esses povos se construíram, se constituíram como identidades e como povos a partir dessa política que muitos crêem ser tradicional ou mesmo natural;

antropólogos e indígenas nunca cessaram de disputar territórios, o que aliás, pode definir a relação entre;
certo que o antropólogo sempre teve acesso ao mundo indígena na medida que dava acesso ao mundo branco, ao seu funcionamento, aos seus recursos;
que não se discuta aqui o valor e as conseqüências disso, questão problemática que remete a utopias e tutelas;
portanto, seria balela definir o conhecimento antropológico, construído a tantas mãos, como resultando de um trabalho colaborativo, como parceria;
trata-se, antes, de exploração, de enganação, de ilusão, de promessas impossíveis;
o conhecimento antropológico, por mais que o antropólogo busque ocultar, por uma questão moral[ista], inerente a seu conhecimento, é sempre o lugar da disputa de território, quase sempre de barbárie e colonização;


o conflito como plano de imanência
no entanto, o próprio conflito, mais que essa convergência num mesmo plano de pensamento, diz mais, ou melhor, age mais em relação a uma diversidade;
não seria assim o conceito de cultura que precisaria de um plano em que pudesse ser projetado, mas ele próprio se constitui como esse plano, a partir dessa prática de conhecimento que se dá nessa disputa pelo conceito;

uma prática de conhecimento que se da como disputa de conceitos, no caso, o conceito de cultura, fundamento da prática antropológica, o que possibilita remeter a uma disputa da própria disciplina, de suas práticas;

aqui o conceito se confunde com sua disputa, é o próprio momento, o próprio ato, a própria prática da disputa;
por isso nosso interesse de cartografar conflitos equivalentes a esses, quando os indígenas partem para disputar a antropologia com os antropólogos, quando notam que as promessas, que as negociações com o antropólogo não vão a contento;

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