03 junho 2008



os kuntanáwa
que experiências, que exemplos levaram o grupo a acreditar e atravessar essa linha e o sentido irreversível que leva do índio ao caboclo e ao branco;
essas experiências poderiam fornecer a materialidade que proporcionaria uma escritura efetiva [efetivamente antropológica] desse processo, que não fosse uma explicação ou uma justificativa de porque eles estão fazendo isso [que por vezes parece simular um pedido de perdão, de clemência por eles estarem supostamente desrespeitando supostas leis];
não se trata de descrever, que fique claro, esses processos;
consiste em algo mais sutil, numa forma de apropriação estética desses fenômenos em sua dimensão estética;
o que há de estético nos processos de subjetivação que conduzem ou são conduzidos nesses processos de revitalização étnica;

não se trata de explicar o processo [mesmo e por mais que a situação o exija] para extrair-lhe dados, informantes, relatos, provas etc, trata-se de estabelecer vizinhança com ele para extrair-lhe partículas, dinâmicas, velocidades, impressões, ambientes, ares, cores etc;
por isso procurar um plano, o estético, que seja comum a ambas linguagens: esse plano possibilita o devir;
lévi-strauss estabelece em sua obra um comércio entre linguagens ao abordar o mito e inspirado nele e em seu estruturalismo muitos antropólogos buscarão as linguagens nativas que podem ser colocadas em vizinhança com a linguagem da antropologia, resultando numa inscrição já muito diversa da descrição etnográfica;
as linguagens da corporalidade desdobraram-se numa vasta teorização antropológica em que o xamanismo possui função similar ao mito para o pensamento de lévi-strauss;
isso porque o xamanismo elege a linguagem do corpo para sua expressão de enunciados;
essa linguagem colocada em relação com a linguagem antropológica rendeu aberturas para campos inexplorados até então;
além disso, o corpo é um elemento paradigmático para a literatura das sociedades contra-estado, pois se toda a epistême descritivista do positivismo guarda relações com a alma, com o caráter transcendental do pensamento-linguagem, com um plano de transcendência que explica sem ser explicitado, o corpo está marcado por uma epistême diversa;
desde sua polissemia, o corpo e sua linguagem são princípio para um conhecimento da imanência;
por isso não se trata de explicar, de referir, mas de construir, de compor;

e, a partir daí, tirar as conseqüências mais diversas desse contraponto epistêmico;
de um lado teremos uma escrita descritivista, amparada pela concepção positivista da linguagem e por sua função política, a qual encontrará similaridades com a história, com a sociologia, com a etnografia e toda a abordagem descritivista da oficialidade de estado;
por outro lado, lado mais árduo por que menos óbvio ou consensual, trata-se de tratar a antropologia como um devir, como uma linguagem em construção, trata-se de uma antropologia experimental que visa abrir caminhos, perspectivas, abordagens, formas, mais que cumprir com sua funcionalidade de estado colonialista;
trata-se de fazer da escritura antropológica um campo de tensão entre linguagens em lugar de pressupor uma linguagem definida e definitiva arraigada nos valores que a constitui;
esse campo de tensão estabelecido pela escritura antropológica não remeteria a qualquer realidade exterior, não busca explicar qualquer coisa, antes simula o encontro de linguagens, materialidade da antropologia;
trata-se de uma outra concepção de verdade, de imagens diversas do pensamento;
de um lado, tem-se o processo histórico, as referências, as origens, as pessoas;
de outro o processo de subjetivação que se compõe de uma gama variada de práticas;
será que se trata de abrir mão de um pelo outro, de optar por um em detrimento do outro;
acredito que o problema é outro, que se trata antes de um problema epistêmico de escritura antropológica;
não se trata de trabalhar exclusivamente com a sincronia ou com a diacronia, pois elas se implicam mutuamente;





por isso a noção de caboclo é tão significativa para colocar em contato essas duas formas de abordagem a subjetivação: seu processo estático na imagem diacrônica do tempo e seu processo dinâmico na sincronicidade;
essa noção guarda essa ambígüidade entre o processo histórico e a sua confecção ideológica;
o conceito opera como palavra de ordem ao apoiar-se em pressupostos valorativos e querer veementemente caracterizar um suposto processo histórico e social: o irreversível embranquecimento da sociedade;
a forma de pedrinho abordá-la desconstrói a noção, evidencia seus pressupostos, seu contexto e função;
além disso, sua abordagem do termo [termo que marca profundamente sua experiência de vida, sua consciência] não só diz como faz: essa desconstrução do termo caboclo com que eram conhecidos [devido à referida irreversibilidade do embranquecimento] faz parte de um processo efetivo de subjetivação que evidencia [para os demais] e põe em prática [para si] a reversibilidade do embranquecimento;
caboclo como um purgatório, como um espaço intermediário entre a branqueza ideal e a indianidade pura;
entre esses dois pontos ideais que se perdem no infinito, as experiências da etnicidade e os valores que dão sentido a elas;
entre esses valores, o consenso sobre a irreversibilidade do enbranquecimento, pólo de referência para o qual toda etnicidade [e toda cidadania] converge;

por isso me posiciono tão incisivamente contra a noção de raça ou de cor enquanto identidade que tenta parecer a redenção as minorias raciais, mas só serve pra reproduzir um sistema que tem o 'branco' como matriz;
o branco não se contrapõe [tão simplesmente quanto querem as mentes simplificadoras no intuito e reafirmar as categorias simples que conseguem compreender] ao negro ou ao índio;
o branco, por encarnar a idéia de pureza, opõe-se ao mestiço, à mistura, à fusão de povos ou à noções etéreas ou nômades como culturas indígenas ou povos indígenas;
chamou-me a atenção o problema da noção de etnia [até pelos ecos com que remete à velha noção de raça] ao trabalha-la no contexto jurídico [contexto positivista por excelência] com os próprios indígenas;
percebi um mal estar generalizado com a noção até que ele veio à tona na forma de discordância explícita;
o grupo me afirmou discordar da noção e não ver validade efetiva nela e por isso defenderam seu boicote;
em lugar da noção biológica de etnia afirmaram as noções de povo ou cultura;
assim, a noção de etnia que reforça a identidade e, portanto, pareceria reforçar cada grupo em sua identidade, pode ser pensada, pelo contrário, como estratégia de marcar uma identidade, característica própria da socialidade branca;
então teríamos de um lado o 'branco', ou seja, a identidade, e de outro a diferença marcada numa socialidade como a indígena marcada pela guerra e as alianças de casamento;
a noção identitária de racialidade [por seu caráter excludente e maniqueísta [oposicionista/dicotômico], que pode se estender à autoconcepção generalizada das minorias] é facilmente assimilada pelo mercado de subjetividades, que define e controla cada vez melhor os nichos de consumo e consumidores;
assim os conflitos raciais são tornados problema de consumo [espaço na mídia com cotas para atores negros, toda uma indústria do politicamente correto etc] e a resistência das minorias passa a ser encarada como potencia de consumo;
segundo essa apropriação capitalista da resistência subjetiva o objetivo das mobilizações, dos projetos etc será a qualidade de vida garantida pelas políticas públicas, isto é: que as minorias tenham direito ao consumo, que nossos jovens indígenas possam estudar para disputar uma vaga no ercado de trabalho, para que os jovens negros não se sintam inferiorizados por não terem seus tênis e precisem assaltar para garantirem a autoestima e o amor das minas;
são esses enunciados que estão latentes no discurso da identidade;
tudo isso por conta de uma associação da subjetividade racial à cor da pele ou às características fenotípicas, por conta da concepção monolítica de identidade que valora, por exemplo, os níveis de negritude ou indianidade, sempre se pautando pela supremacia da pureza de raça;




o que surpreende as pessoas que estão às voltas com a família d'os milton quando esses deixam de ser caboclos para se entenderem como índios;
talvez a opinião ou o reconhecimento dos demais não tivesse tanta importância se a antropologia não determinasse o reconhecimento alheio como um dos critérios para reconhecimento oficial de etnicidades;
enfim, o que surpreende as pessoas...http://www.blogger.com/img/gl.bold.gif
o que surpreende as pessoas ao seu redor é a inversão de um processo que se acreditava irreversível: a lei da gravidade da subjetividade étnica só prevê o embranquecimento, a história só teria lugar para a assimilação das etnias indígenas, quando muito para sua precária manutenção, mas nunca para uma revitalização;
um processo como esse por não caber na história poderia ser pensado mesmo como processo anti-histórico;
assim, não teria nada de errado com ele [inclusive para que precisássemos justificá-lo e desculpá-lo] mas com a história e seus pressupostos;
o que se quer com isso é evidenciar que o que sustenta essas categorias [da etnicidade, tais como caboclo ou índio] na história são valores bem determinados no senso comum, nos consensos sociais, nos preconceitos, enfim, nas diversas formas do controle social, e que seu caráter explicativo, descritivo, histórico, definidor da realidade pode consistir numa linguagem perigosa e numa concepção da linguagem que se apóia em valores que podem nos escapar;
a menos que se opte efetivamente por conservar a linguagem e a concepção de linguagem e conhecimento do estado, com seus pressupostos, suas funções e os interesses daí advindos;




a relação dos processos histórico de um lado e de outro o processo de produção subjetiva, de ‘ressurgimento’ ou revitalização étnica;
a matéria desses dois processos é diversa;
não se pode mistura-los simplesmente, o que se pode fazer é imaginar sua articulação, mas diferenciando sua especificidade;
o processo histórico se dá, mas esse processo histórico pode ser apropriado e se desdobrar de formas diversas;
o que não dá é para historicizar o processo subjetivo, pois ele reformula certa imagem da história;
não dá também para abolir a história nesse caso, pois o processo de subjetivação no caso é imaginado por uma relação de ascendência étnica, marcada por eventos imaginados na forma da história;
a própria história, no caso, possibilita um processo de diferenciação que é distinto de sua função de integração do diferente (indiferenciação) numa homogeneidade envolvente;
as diferenciações internas desses regimes de socialidade é reduzida a uma única socialidade definida como indígena;
apagam-se as diferenciações que fazem desses regimes um complexo de relações sociais;
seus processos de subjetivação constituem a chave da dinâmica diferenciante nesses regimes de socialidade;
nesse processo há perspectivas diversas: dessa miríade de pontos de vista dos povos que se diferenciam em suas práticas diferenciantes de socialidade à perspectiva englobante e homogeneizadora da sociedade envolvente;
trazer para o pensamento e para o papel a possibilidade de outros pontos de vista, de perspectivas diversas, é romper com a imagem de um universo monolítico e etnocêntrico;
cabocla regina: história ou mito;
qual a matéria da história e a matéria do mito?
o mito e a história são incompatíveis?
segundo qual imagem do conhecimento histórico o mito lhe seria incompatível?
o interesse nessas questões se deve ao fato de se perceber que não existe um ponto em que acaba a história e começa o mito;
o que há são forma de elaborar, escrituras e maneiras de imaginar diversas, formas de dispor e de considerar o discurso;
a teoria do enunciado de foucault visa demonstrar o caráter de convenção dessa linha demarcatória que definiria a diferença entre o discurso científico da história e a ficção mimética do mito;
trabalhar com histórias de vida já é uma opção por se abandonar a grande e não para vivenciá-la de dentro como se poderia pensar;
as micro-histórias e micro-políticas servem mais para se voltar contra o método histórico, para contradize-lo, que para aperfeiçoa-lo;
o caso dos milton é um caso paradigmático disso, pois com eles a história se transforma em experiência, ela deixa o espaço intocável dos livros e dos documentos, das datas irreversíveis e dos macroprocessos;
o flerte entre antropologia e história no livro d’os milton pode servir para reforçar a dependência disciplinar da abordagem antropológica em relação à história, a antropologia como discurso inerentemente histórico (e, daí, sociológico) ou para revelar pressupostos do discurso histórico, para demonstrar que, no limite, não existe história (que não seja um intensificador de poder), que não existe a história como a imaginamos, como uma grande narrativa científica dos acontecimentos definitivos, contraposta ao discurso mítico;
a idéia de verdade que daria sentido a essa imagem da história pode ser desconstruída como exigência extrínseca, como valor atribuído por sua função (de instrumento político);

nessa relação e nesse embate entre história e mito, o mito assume aqui uma função que sempre foi a dele mas que agora se evidencia: é a de articulador de um complexo de subjetivação;
esse complexo é composto de uma série de processos articulados;

o contrário ou o inverso desse processo que aqui sugiro é a intenção de se utilizar da autoridade de um discurso histórico para provar o processo subjetivo, para lhe dar legitimidade;
o discurso de poder histórico, com suas provas factuais, legitimaria assim a suposta verdade jurídica do caso, como tantas vezes tem sido feito na configuração da legislação ambiental brasileira, com seus ‘laudos científicos’, ou como sempre o fez a própria antropologia que reconhece no discurso histórico o discurso de estado que pode viabilizar a chamada ‘identificação’ e sua legitimidade jurídica;

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