05 junho 2008


desenho de haru shinan kuntanáwa

qual o quadro que se compõe hoje na reserva extrativista do alto juruá com o processo de revitalização étnica vivido pelos kuntanáwa;
os kuntanáwa eram então conhecidos como os milton, a família de seu milton;
os milton foram uma família central em todo o processo de constituição dessa reserva;
por sua condição de seringueiros ao longo do século vinte, participaram como extrativistas do processo de constituição da reserva;
esse processo de organização dos seringueiros/extrativistas colocou-os em contato estreito com os movimentos indigenas e assessores que trafegavam por esses dois universos;
esses contato com outros mundos e outros universos de valor deu início a um processo de revisão de sua auto-concepção, deu partida ao processo de transfiguração [valorativa, subjetiva, econômica, social, informacional] a que foram convidados todos os 'extrativistas' especialmente os milton, reconhecidos sob a alcunha de 'caboclos';
os milton reconheceram um status atribuído aos povos indígenas antes nunca visto por eles;
um status construtivo, afirmativo e de organização, bastante diferenciado daquele atribuído à sua indianidade cabocla, a qual resultava numa mistura em que o elemento indígena era a parte marcada e valorizada negativamente pela sociedade em que estavam imersos;
segundo os valores da sociedade seringalista a dimensão indígena dos caboclos tendia ao desaparecimento em relação à parte branca que devia predominar e com a qual se deveria identificar;
sua porção indígena funcionava como parte maldita servindo à economia de valores dessa sociedade;
o caboclo foi um marcador subjetivo oportuno para essa sociedade de exploração seringalista pois estabelecia uma hierarquia naturalizada na relação com [e em relação a] os nativos;
essa hierarquia de valores subjetivos atravessada pelos racismo em relação aos nativos operava oportunamente na relação colonialista do opressão ocidental que impunha e impõe o modelo capitalista de gestão não só como o único possível, como o único imaginável;

articulado a isso, é inegável que os milton foram acompanhando o prestígio dos povos indígenas em relação ao reconhecimento do estado e às políticas públicas, ao mesmo tempo que amargavam a marginalização que persistia, ainda que abrandada com os novos tempo de reserva extrativista;
enfim, em termos de poder e reconhecimento públicos, ser índio fora do 'senso comum' racista dos seringais, ou seja, ser índio, ainda que marginal, naquilo que ficou conhecido como 'tempo dos direitos' era melhor do que destacar-se entre os extrativistas da reserva, ainda mais em tempos de decadência da ordem comunitária [e dos projetos] da reserva;


foi a partir desse encontro, também conhecido como encontro de povos da floresta, quando os brancos pela primeira vez reconhecem nos [e necessitam dos] índios a definição política e jurídica de suas demandas, que o sentido de afirmação da etnicidade indígena se definiu para os kuntanáwa;
foi a partir daí que deixaram de aceitar sua condição étnica como processo passivo de progressiva e irreversível ocidentalização para assumirem sua subjetivação kuntanáwa;



desenho de haru shinan kuntanáwa

nesse momento, em que os próprios extrativistas 'brancos' reconhecem sua proximidade em relação ao modo de vida, aos costumes, à cultura [e, portanto, aos direitos constitucionais] dos povos indígenas, os milton, família de 'caboclos', toma contato com a cultura de seus ancestrais de uma forma que os transfigura, de uma maneira em que eles se transfiguram definitivamente;
a ordem da história que sempre valera para os milton na forma opressora do irrevogável, mostra-se como operacionalizável;
o processo de conquista dos seringueiros que haviam se tornado extrativistas, bem como a organização e enfrentamento com que os povos indígenas passaram a se afirmar para a garantia do seus direitos inspirou os milton a investir em sua subjetivação kuntanáwa;

o impacto desse processo no senso comum foi notável, visto que, o que para os milton/kuntanáwa fazia todo sentido no contexto de sua experiência de caboclos, continuou parecendo algo artificial e absurdo na experiência do senso comum que os envolvia;
esse senso comum continuava a conceber o processo da etnicidade como uma progressiva ocidentalização das diferenças;
assim, o que há de mais interessante nessa abordagem relativista [barthiana] do processo é a associação da subjetividade cabocla ao senso comum, a expectativa do senso comum quanto ao processo de ocidentalização, bem como a ruptura que os milton fazem com essa expectativa, com essa concepção da etnicidade e da identidade ao tomarem contato...

desvincular o impasse vivido hoje por toda a reserva [projeto e pessoas] do processo vivenciado por essa família pode empobrecer seu entendimento;
isso porque, na abordagem aqui proposta, o que de mais importante se constitui no projeto coletivo dessa primeira reserva extrativista [no momento de sua constituição], mais do que qualquer projeto de viabilização econômica para ex-seringueiros, consiste nesse devir, nesse processo de subjetivação resultado dessa aliança com os povos indígenas;
ao optar por se reconhecerem e serem reconhecidos como extrativistas, os seringueiros identificavam-se mais ao modelo sustentável da socialidade indígena, renunciando ao capitalismo predatório da exploração madeireira e da pecuária [que pensavam combater] identificado à figura dos paulistas;
no entanto, apesar da força que agrega o grupo, não foi possível romper com o senso comum em relação ao valor da socialidade indígena e resistir às investidas do poder público na gestão da reserva;
parece mesmo que não foi possível nem uma identificação mais efetiva dessa experiência de subjetiva já na formulação dos primeiro projetos que visaram desde o início a perpetuação de um modo de produção dependente do capitalismo e a política de estado, os dois maiores adversários de uma experiência de gestão comunitária autônoma;
o que sustentaria o discurso extrativista de forte apelo ambientalista desempenhado então pelos seringueiros e seus assessores não seria as boas intensões como pensaram [ou acharam melhor pensar então] e sim um processo de subjetivação como esse vivido pelos kuntanáwa;


foto de haru shinan kuntanáwa

dessa forma, na pele dos kuntanáwa, essa família traça uma linha de fuga para o impasse vivido hoje por seus antigos companheiros, os ex-seringueiros que cada vez mais se identificam com a vida urbanizada trazida pela administração pública do município [esses, para os quais a reserva era simplemente sinônimo de melhoria de vida a qualquer custo, nem se lembram mais dela] e mesmo por aqueles que ainda não compreendem o que houve com o projeto da reserva, ou que, como a maioria, acredita que o impasse da reserva deveu-se a um problema de índole pessoal dos envolvidos ou de oportunistas;

de certa forma, pode-se dizer que o futuro [o que equivale ao nosso presente] da reserva teriam sido os kuntanáwa;
no entanto, muitas das armadilhas em que os mesmos kuntanáwa caíram no processo da reserva ameaçam-nos novamente;
a começar pela própria armadilha da indianidade/etnicidade, a idéia de que é necessário ser indígena para estabelecer um programa de socialidade que se contraponha diametralmente ao capitalismo e à ordem pública do estado;
há uma ambigüidade no discurso kuntanáwa que pode levar a uma confusão entre os kuntanáwa que desapareceram no século vinte e os que emergem no século vinte e um;
um dos problemas que leva a essa confusão muitas vezes é a necessidade de se justificar perante do senso comum [que não reconhece processo subjetivante que não seja o ocidental-capitalista], de justificar seus 'direitos' perante o todo poderoso estado;
outra dessas armadilhas foi confundir o projeto da reserva com a disputa ou conquista de terras;
essa terra que seria o princípio definiu-se como fim;

entre os perigos dessa etnização se perder em sua sombra e se subestimar, ou seja, dos kuntanáwa se acreditarem um povo indígena como os demais, está a subestimação de sua experiências no processo [de dilapidação] da reserva extrativista do alto juruá;
os kuntanáwa por tanto quererem ser como os demais perderem sua especificidade e a sua contribuição específica aos processos de autonomia e gestão organizacional com que os indígenas ainda podem lutar para combater o capitalismo em sua terra, sua vida, suas relações;
isso pode tornar-se por exemplo uma conseqüência dos discursos que visam justificar a emergência kuntanáwa;
a justificativa dos preconceitos sofrido enquanto caboclos vai de encontro a um discurso afirmativo em que se problematiza um modelo de gestão territorial que hoje não existe na realidade da reserva;

por outro lado, os kuntanáwa têm uma contribuição insubstituível ao processo de imersão nas políticas públicas vividos pelos povos indígenas resistentes no acre e mais especificamente na região do alto juruá;
o processo de desestabilização da reserva motivado por uma municipalização agressiva, pelo conflito de interesses com o poder público e privado local, pela cooptação dos 'extrativistas' pelo modo de produção paulista;
enfim, a face e as funções do estado, os modos de operação dos aparelhos de estado, a articulação entre esferas municipais, estaduais e federais, toda essa concatenação que levou à desmantelação da frágil organização comunitária da reserva pode contribuir na definição dos projetos de gestão territorial indígenas;
porfim, a experiência kuntanáwa deve servir, como bem tem percebido os ashaninka, para uma aproximação com as comunidades locais e colaboração na constituição de um projeto coletivo de futuro comunitário que substitua o cenário caótico de futuro oferecido pelo capitalismo e sua economia da exploração predatória;

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