21 maio 2008



o que é conhecer?
- 'non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere', eis o que diz spinoza com toda simplicidade e a elevação do seu estilo;
mas o que vem a ser este intelligere senão a forma sob a qual as três outras operações nos aparecem ao mesmo tempo?
senão a resultante dessas tendências contraditórias do riso, da piedade, da maldição?
para que um um conhecimento fosse possível, foi primeiro necessário que cada uma dessas tendências desse a sua opinião parcial sobre o acontecimento ou a coisa a conhecer;
que em seguida houvesse combate entre essas parcialidades, e que desse combate, enfim, pudesse sair um apaziguamento, um equilíbrio das três tendências, cada uma delas recebendo o que lhe era devido por uma espécie de justiça e de contrato;
porque essa justiça e esse contrato lhes permitem subsistir todas e ter razão ao mesmo tempo;
nós, cuja consciência só regista as últimas cenas deste longo processo, a reconciliação e o regulamento de contas, pensamos que intelligere é alguma coisa de conciliante, de justo, de bom, de essencialmente oposto aos instintos;
ao passo que é muito simplesmente uma certa relação dos instintos entre eles;
durante muito tempo o nome de pensamento nunca designou mais do que o pensamento consciente;
e é hoje somente que começamos a entrever a verdade;
a saber: que a maior parte da nossa atividade intelectual se desenrola sem darmos por isso, sem sentirmos nada;
mas acredito que o instintos que entram em jogo no combate de que falamos se entendem muito bem em fazer sentir esta luta e em mortificar o seu possuidor: e daí que provém, talvez, este esgotamento repentino que conhecem todos os pensadores (o horroroso esgotamento repentino do soldado no campo de batalha);
há talvez mesmo, no fundo da nossa alma em luta, inúmeros heroismos que se não vêem, mas não se encontra certamente nada de divino, nada que repoue eternamente sobre si, como acreditava spinoza;
o pensamento consciente, e sobretudo o do filósofo, é o menos violento do todos, por conseqüência a mais suave, a mais calma das categorias de pensamento: também o filósofo é precisamente o mais exposto a enganar-se quanto à natureza do conhecimento;

nietzsche, a gaia ciência


nietzsche distingue a dobra, o ponto a partir do qual se projeta o fantasma, a dimensão transcendental do conhecimento;
a possibilidade de sua positividade;
o intelligere seria essa dimensão ideal do pensamento enquanto as demais expressões do conhecimento serão seu plano de imanência;

longe do conhecimento se dar apesar de seu corpo [instintos], é em seu corpo que ele se especifica;
em vez de estabelecer uma relação de distinção ou contraponto, nietzsche propõe que a luta, a injustiça, a disputa, a força entre outros modelem a dinâmica do conhecimento;
propõe uma imagem do conhecimento bem diversa da metafísica grega que modela e pressupõe a racionalidade até então;

esse é um antigo combate de nietzsche, que agora passa a se desdobrar em inesperadas consequências, atingindo o cerne do tradicional pensamento ocidental de maneira criativa;
desde os primeiros escritos tem contraposto uma inspiração estética para o pensamento em lugar de sua tradição metafísica que redundará no positivismo fanático da ciência régia das estatísticas de estado;

uma outra imagem da verdade, não-positiva nem idealista, redunda numa imagem outra do conhecimento;
uma imagem da verdade marcada pela justeza, o encaixe, a combinação entre um enunciado e uma idéia de realidade [a qual ainda persiste numa noção como ideologia] é desconstruída e, nesse processo, dá-se a perceber a luta inerente ao conhecimento e seu caráter tanto mais efêmero, quanto mais ...;

o sertão é...
esse contrato a que estamos submetidos, o qual nos configura uma imagem conformada da intelligeri, lembra o sertão de riobaldo, que consiste justamente em todo o outro lado, o lado do avesso da civilização, no qual os valores tem uma ordem diversa daquela da cidade, do mundo civilizado das leis, das regras;
daí a dimensão política do sertão, que passa como que fornecendo uma atenção distraída a este tema, dada a relação entre duas imagens da experiência narrada: uma do presente do enunciado (em que proliferam imperceptíveis) e a enunciação (que o concebe como um roteiro escrito, determinado destino);
a imagem da civilização aqui é a de uma conformação dos sentidos, da matéria vertente, enquanto a experiência se associa ao doido do sertão, desregrado com que riobaldo vai jogando em sua maneira enigmática ou caótica de governá-lo;
essa maneira de conceber a experiência, o presente, o destino que se define no sertão [e em o recado do morro];

no sertão, no entanto, e é isso que nos interessa sobremaneira, não se restringe à experiência pessoal;
o sertão e seu desconcerto consistem numa experiência que se contrapõe à civilidade;
a civilidade/civilização como campo do definido, do estabelecido;
o sertão como esse espaço e que o desconcerto está solto no mundo, em que o desregrado faz suas outras regras;
essa dinâmica de instabilidade, esse mundo movente, desdobra-se em diversos nomadismos: percepção, sentimentos, valores, cognição, subjetividade;

essa constante redefinição do sertão, que acaba sendo sua contínua indefinição, consiste numa estratégia perspicaz para captar em termos de linguagem, de figura estilística esse devir que define o sertão como os avessos da civilização;
é aí que se dá a projeção da experiência subjetiva do personagem, seu processo de subjetivação, numa experiência social e política;
se o sertão seria os avessos da civilização, que caracteriza os afetos do presente a enunciação, em que o autor pode organizar seu material desdobrado num plano de transcendência, do qual escapa, vaza, as impressões, as formas fugazes do devir, constituindo na enunciação também um plano de imanência, visto que [seguindo a tradição da literatura machadiana, que já propõe o deslocamento ou distribuição da matéria narrada no entre da relação enunciado/enunciação] essa estabelece relação sempre problemática entre os planos da enunciação e do enunciado, conforme admitido reiteradamente pelo narrador;

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