17 março 2008



diferencialidade indígena 2

muitos dos procedimentos que podem ter servido à diferenciação entre grupos indígenas [tais como grafismos, rituais, formas de utilização da ayahuaska, cantos e seus estilos, entre outras marcas] podem ter adquirido outras funções no processo generalizado de revitalização que parece caracterizar o ímpeto identitário da política indígena contemporânea;

nessa nova dinâmica de diferenciação, esse processo se constitui antes na definição uma homogeneidade indígena [mais forte politicamente, na política dos brancos, que a heterogeneidade diferenciante] contra a homogeneização ocidentalizante, do que na forma de diferenciação interna, entre os grupos indígenas, que marcaria inclusive seus processos de cisão e constituição de novos grupos;

o processo de diferenciação, que antes seria interno e generalizado, tem pouco a ver com a imagem que fazem deles hoje os porta-vozes indígenas, de um suposto livre fluxo de informação;

nesse processo de diferenciação, interno e generalizado, os grupos se dedicavam a uma diferenciação mútua, o que levava antes ao valor pela diferença e a busca contínua da diferenciação por meio de alianças com aliados [humanos e não-humanos, mas principalmente não-humanos] os mais diversos;

hoje, a concepção [cada vez mais onisciente] de identidade como sumo ou forma da indianidade, passa a projetar uma subjetividade ocidental-izante no atual contexto de extinção dessas redes de diferenciação, em que os grupos não tem mais uns aos outros para se diferenciarem [e alimentarem] nessa guerra simbólica;

é essa concepção de identidade que justifica o atual livre fluxo de informações e procedimentos, nos processos de reconstrução/revitalização cultural, marcados geralmente pela retomada de práticas xamânicas por parte de jovens lideranças, seja pelos resquícios das gerações que se extinguem, seja através do apelo a outros grupos com que tem contato;

no entanto, o que se vislumbra no quadro geral, detidamente com práticas específicas como a preparação e o uso da ayahuasca, a preparação e o uso do rapé ou a aplicação do kambô, é a busca daquilo que se constituiria como uma identidade indígena em oposição [não mais interna e generalizada, e sim em relação] ao branco ocidental;

é certo que a diversidade é inerente a esse processo de identificação que, portanto, prossegue, de certa forma, ainda que alheio à vontade de seus agentes, como um processo de diferenciação;

assim, o problema da invenção de cultura, que foi durante tanto tempo investido de um caráter marcadamente identitário [devido ao emprego colonialista que fazemos dessas culturas], poderá ser tomado, nessa contra-perspectiva, sob o signo da diferença;

o que se opõe de fato [e no fundo], sob essa mesma problemática da economia de saberes, mas numa pegada epistemológica [e genealógica], não é o livre fluxo de conhecimentos [ainda que pondere a função de seus detentores/especialistas] versus a concorrência do mercado capitalista;

o que se está contrapondo de fato é uma prática da diferencilidade, que resulta na heterogeneidade de [espaços e políticas de] conhecimentos, a uma prática da homogeneização de saberes que, sob a pecha de 'conhecimentos tradicionais', inicialmente se unificam em contraponto ao saber ocidental para, em seguida, serem integrados pelo campo de valores [note-se a evidente polissemia] da unidade [lê-se mercado] ocidental;

o que se quer contrapor aqui, portanto, é a fertilidade das disputas diferencializantes, próprias aos processos de subjetivação dos saberes indígenas, dessa guerra simbólica dos conhecimentos, à esterilidade de uma demanda de mercado que homogeneiza as práticas indígenas de conhecimento;

um dos interesses sobre esse problema se refere aos conhecimentos como espaço de produção de subjetividades;

se quisermos colocar em questão a problemática do mercado de trabalho pressuposto nas práticas de escolarização entre povos indígenas,

se quisermos nos voltar para formas próprias das articulações do conhecimento na socialidade indígena versus escolarização como meio para transpor [em seus pressupostos] referências tipicamente ocidentais como mercado de trabalho, emprego, vestibulares, concursos etc;

pois, apesar dos indígenas fazerem seus próprios usos dos recursos viabilizado pela escolarização, e terem direito de o fazer, faz-se necessário voltar-se sobre tais processos;

pois o que se oculta sob a imagem de um plácido [e até útil para as realidades indígenas] conhecimento científico da vida [biologia], do espaço [geografia], do tempo [história] e mesmo da comunicação [informática], pressupõe os processos de subjetivação que deram origem a esses conhecimentos;

o preço que pagamos em nossa sociedade por esses saberes, o cheiro de sangue que os impregna, devem ser taxados igualmente para os indígenas;

levar para as sociedades indígenas esses conhecimentos escolares desprovidos de seus desdobramentos e funções na política subjetiva de nossa sociedade pode consistir num gesto que leve ao questionamento de nossa competência antropológica;

isso, menos por qualquer desconhecimento das socialidades indígenas, às quais temos nossos interlocutores especializados nelas, e mais pelo desconhecimento da dinâmica própria a nossa própria socialidade, pela falta de um olhar antropológico sobre nós mesmos e nossos valores;

não se sabe se será diferente com o ensino diferenciado e sua forma de produzir mão-de-obra para esse mercado de trabalho;

toma-se esse saber e sua dinâmica de uma perspectiva evolucionista como se isso fosse, ainda hoje, óbvio;

esse querer evoluir positivista no entanto, tem pouco a ver com os saberes indígenas;

a criação de um campo em que ele se projete tem uma influência crucial na imagem que esse saber faz de si mesmo;

de conjuntos de práticas heterogêneas, o mercado global constitui um espaço homogêneo para os saberes tradicionais;

a primeira prática na construção desse campo será, sem dúvida, a especulação;

os saberes tradicionais parecem uma instância pré-definida há muito;

a constituição já definiu que essas culturas tradicionais não só existem como devem ser preservadas, ou seja, estão sob a tutela do estado;

leis são feitas com o intuito de proteger ou resguardar esses saberes da exploração e do contrabando;

não se definem políticas para além das leis, pois essas políticas parecem caminhar no sentido inverso à natural tendência [de nossa vontade] à evolução e integração desses povos;


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