30 dezembro 2007

metamorphoses

há tanto tempo conheço o marcos, mas só hoje, numa foto, fui reparar em seus traços indígenas por trás da sua facha de branco;
estranha a forma como isso se deu, como se ele de repente assumisse essa sua identidade, como se ele até então fosse um dos nossos e de repente...
essa percepção e principalmente esse estranhamento me abrem os sentidos para perceber o circuito em que considero as pessoas, minha maneira de tomá-las e integra-las numa cultura e etnia homogêneas, assumidas por mim, na qual eu me reconheço, na qual eu mesmo me vejo tentado a cair numa homeostase;
estabeleço esse circuito integralizante que me configura dragando-me com voragem;
essa maneira de apagar-lhe a diferença, de toma-lo como um dos nossos como um ocidental, afinal de contas ele já não aciona meu estranhamento, pode passar incólume por minhas hostilidades à diferença e aos meus estigmas, pois a percepção dessa operação de redução começa a trazer à minha mente outras pessoas;
pessoas essas, contra as quais, mesmo afirmando sua diferença e sofrendo as consequências disso, eu mesmo pensava comigo: mas que caboclo nada, é um ocidental, vive aqui entre nós, como pode;

daí, enfim, nada dá a entender tão bem um processo, no caso esses circuitos em que se dá essa redução perceptiva (que também e principalmente é valorativa, como veremos) aparente), quanto compará-lo a outros circuitos que se estabelecem em relação a esse referido;

a percepção está estreitamente vinculada ao valor que atribuímos às coisas e às pessoas;
no caso operamos numa tradição em que a percepção-valor que dirige os recortes e investimentos com que configuramos a realidade, com que construimos nosso contexto, está referenciada pela identidade;
a imagem do conhecimento equivale a retirar o objeto de seu universo de interações, de seu movimento em devires, de sua singular diferencialidade;
são os padrões que orientam seja o conhecimento das coisas, a partir de um mundo e de uma percepção fixos, seja o conhecimento do humano, baseado na pré-noção de normalidade e no valor com que ela se contrapõe ao que lhe é marginalizado;

há muito tempo operamos com um sistema pautado na identidade;
sua forma de operação consiste em imobilizar o campo da percepção, universaliza-lo num sistema fixo e comum a todos;
essa construção (tradição, cultura, matriz) será então tomada como princípio, pressuposto, dado;
fixa-se essa instância, aquilo que chamamos de natureza (forma de percepção do mundo que imobiliza seu caráter aberto, de construção, de elaboração, de auto-poiesis) e libera-se a instância valorativa sobre aquilo que chamamos de consciência;
assim como a natureza, a consciência, por ser pautada na identidade, logo se definirá em função de leis que lhe serão estabelecidas;
confundimos mesmo as noções de consciência, como na expressão: tenha consciência, que se refere a tenha uma certa consciência, que, por sua vez, equivale a tenha uma consciência certa;

um pensamento da diferença e da multiplicidade, que borra a linha divisória que demarca as identidades, as subjetividades;
um pensamento da diferença que implica a percepção no processo de constituição das coisas, redefinindo o problema dos valores, que acompanham o infinitesimal no qual se perdem as leis e se transformam/redefinem as coisas-pessoas;
a ordem que estabelecemos para compreender as coisas acaba por constituir a dinâmica do próprio pensamento, passando a servir a fins de política institucional de conhecimento, em oposição à concepção de um conhecimento libertário, que vise acompanhar os devires do mundo como devires da percepção-valor;
por mais que busquemos valorar/valorizar a diferença, nosso pensamento persiste em manter como referências para seus padrões de verdade os princípios identitários e padronizantes;
a própria forma da argumentação volta a esses princípios, contra o que, o que pode funcionar será deter-se sobre a concepção de verdade dessa tradição em que nos movemos;

é certo que isso é claro;
mas não creio que seja tanto;
muitas questões relativas à busca e à conquista do poder se satisfazem consigo, como se fosse idiotice pensar nelas;
no entanto considero o poder um dos melhores temas para pensar, pelo menos dos mais bombásticos;
estava com o jairo e ele disse algo interessante;
disse que nós precisávamos mostrar para os extrativistas como era in, como era pop, enfim como era positivo, como podia ter valor;
isso, nessa mesma sociedade e nesses mesmos circuitos poderiam eles ganhar status;
segundo ele, era isso que a cpi teria feito junto aos índios: mostrado que, em contraponto a uma postura que os absorvia e estigmatizava, havia outra que os diferenciava e valorizava;
era apenas mudar a chave e se entrava nesse circuito;
a própria sociedade branca e seus circuitos midiáticos deixou brechas, ou melhor abriu mercados para serem ocupados pelo discurso do índio, pelo discurso do extrativista: esses espaços sendo acionados, esses personagens se projetam politicamente;
há muitos mercados envolvidos: mercado da diversidade cultural, das culturas tradicionais, mercado do ecologismo, mercado das identidades etc;

portanto, isso tem menos a ver com autoestima, como pensam algumas ingenuidades, e mais a ver com mercado;
essas subjetividades estão no mercado político (mas também em outros) há anos;
sua incapacidade de gestão desse processo resulta de um contexto complexo;

no entanto, é relativa a surpresa que me causou esse reconhecimento da porção indígena do companheiro;
a porção de ocidental do colega o permite passar por ocidental, mas também transformar-se eventualmente em indígena ou em acreano, que é algo que relaciona etnias de uma forma curiosa, ao constituir o biotipo e as feições desses descendentes de indígenas;
esse tráfego interétnico é que foi flagrado por mim, que não o registrara até então;



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