12 março 2007

consulta pública sobre patenteamento dos saberes ancestrais (parte 2)

E se o direito fosse um saber...?

Acredito que o direito seja um saber. Gostaria de desenvolver e medir os efeitos dessa hipótese defendida por alguns pensadores do conhecimento.

Temos dificuldade em definir o direito como um saber, é o que constato com meus alunos em nossas aulas de ética, antropologia jurídica ou metodologia da pesquisa jurídica.

Se o direito é um saber, como todo saber está inserido e obedece às coordenadas da cultura que o criou.

Portanto, se o direito é um saber, não pode ser universal, valendo para todas as culturas. A menos que uma cultura pegue o seu saber, no caso o seu direito, e o imponha para outra. Essa imposição é o que temos visto no campo dos saberes há séculos.

Em alguns campos do saber ocidental, como a antropologia, já é claro que se deve garantir os saberes próprios das outras culturas, para que nossa sociedade não prossiga com seu processo de etnocídio sobre as poucas culturas ainda não ocidentalizadas.

Essas culturas não-ocidentalizadas, que são submetidas à categoria de minorias (não por sua quantidade, mas por seu poder de decisão no mercado global), são o que chamamos de culturas tradicionais.

Quero marcar com isso que essa abstração, que se tem chamado e proliferado no discurso jurídico sob o nome de culturas tradicionais, não se refere a nenhuma característica intrínseca a essas culturas.

O que define uma cultura como tradicional não é qualquer característica própria, qualquer propriedade interna dessa cultura.

O critério de tradicionalidade se refere sim ao seu grau de ocidentalização. Esse é o marcador.

Se o direito é um saber e, portanto, está restrito aos limites da cultura que o criou, tomar o direito de uma sociedade e aplica-lo a outra é uma prática que só se justifica pelo etnocentrismo, quando não pela imposição.

Algumas áreas como a antropologia e a educação já aderiram aos saberes não-ocidentais e procuram (com toda dificuldade que tal processo implica) exorcizar o etnocentrismo que as constitui.

No direito, essa imposição persiste mais. Um consistente padrão de moralidade funda o direito em concepções abstratas como justiça, certo, bem, verdade, liberdade.

Tais concepções, que no discurso moralista ganham caráter universal, são dos termos que mais carecem de especificidade contextual.

A concepção de saber que tomamos aqui é bastante restrita. Parece referir-se a um recorte desse saber, um recorte utilitário feito pelos ocidentais, um recorte utilitário feito, sobretudo pelo mercado dos ocidentais.

Esse saber objetivo de processos e produtos da floresta, resultado de uma imagem que se constrói do índio em nossa sociedade.

Segundo essa imagem o que justifica o direito à vida e ao território dos indígenas seriam os recursos de que dispõem sobre supostos segredos da floresta.

Assim, que muito do que está vindo no pacote, no discurso desses debates sobre patentes e direito à propriedade intelectual (convenhamos um papo movido por grandes laboratórios, já que as ongs que viabilizam comércio de artesanato não teriam tal influência no mercado global) condizem com essa perspectiva utilitarista dos povos indígenas.

Acho intrigante e estranho que muitos indígenas concordem com essa visão. É uma visão que parece contradizer a autonomia desses povos, inclusive sua autonomia econômica, visto que esse discurso que se faz de que os índios dependem da tecnologia do branco é parecido com um velho discurso que o primeiro mundo tem usado para explorar países como o Brasil, de forma que esses ainda se sintam agradecidos.

Direito das comunidades X direito das comunidades

A partir da problemática desenvolvida anteriormente, quero derivar um desdobramento.

Há que diferenciar entre direito das comunidades e direito das comunidades.

Mas como assim, não é a mesma coisa? Vejamos.

O primeiro sentido de direito das comunidades se refere ao direito que essas comunidades podem vir a ter, garantidos por dispositivos jurídicos próprios do direito ocidental e pelo poder do estado de fazer cumprir tais determinações.

Nesse contexto, operam noções como propriedade privada, indivíduo, sociedade, leis, constituição, pessoa jurídica.

Um outro sentido para a expressão direito das comunidades seria a forma dessa sociedade resolver suas disputas internas, bem como suas transgressões. Nesse direito das comunidades, o das é um genitivo.

Análogo ao que se fez anteriormente gostaria de levantar alguns dos (ainda nossos) conceitos que sustentam esses processos, tais como direito coletivo, saberes coletivos, propriedade coletiva e individual, norma.

Na assimilação de um direito pelo outro, expressa pelo primeiro sentido da expressão direito das comunidades, oculta-se o etnocentrismo e a imposição do nosso direito ocidental.

Seus princípios são o indivíduo e sua propriedade, elementos estranhos a essas culturas não-ocidentais ou tradicionais.

O direito dessas comunidades então, quando pensado a partir dessa concepção, é assimilado pelo direito ocidental, por seus princípios e valores.


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