12 agosto 2006

a produção de conhecimento entre os indígenas do acre

referencial teórico

“O conjunto dos mitos de uma população pertence à ordem do discurso”. (Lévi-Sttrauss, Le cru et lê cuit)

articular a tradição de mauss de pesquisar o conhecimento indígena e não objetualizar o indivíduo e/ou a sociedade indígena, e sim compreende-la como construção simbólica similar à nossa, o que leva a deslocar o problema de um campo homogêneo no qual se situam as diversas sociedades (o índio genérico) para campos específicos de construções simbólicas e sistemas de produção de conhecimento;
a partir dessas propriedades específicas essa tradição antropológica inaugura um campo de estudos no qual a teoria nativa passa a ser a matéria privilegiada, pois possibilita a experiência prática e teórica com esse conhecimento, seus métodos, seus procedimentos;
essa escola conduz a partir dessa sua concepção de antropologia e de produção de conhecimento e o corte proposto, segundo o qual o problema das culturas não se restringe ao mero problema de conteúdo, principalmente no que diz respeito à produção de conhecimento, o problema da especificidade própria ao olhar etnológico entre as culturas ganha dimensão formal;
dessa forma é que se pode escapar ao etnocentrismo vigente na origem da antropologia e se propor uma ampliação de seu espectro, de sua área de abrangência;

referenciais filosóficos: do pensamento da imanência de gilles deleuze ao perspectivismo de viveiros de castro

nesse sentido toda a filosofia da imanência em que consiste a obra de deleuze tem servido ao estabelecimento de possibilidades metodológicas para a etnologia;
deleuze fornece subsídios filosóficos, instrumentalizando-nos para problematizar uma possível etnofilosofia;
em autores como platão, nietzsche e leibniz, deleuze traça um percurso que circunscreve esse princípio de homogeneidade que caracteriza a cultura ocidental, fundamentalmente em sua tradição judaico-cristã;
com os instrumentais dessas filosofias redefine conceitos que abrem possibilidades de fecunda apropriações para a nossa área de pesquisa;
voltando assim à tradição de mauss, problematizada após o estruturalismo e a problemática da forma, do significante, da estrutura, pode ficar mais claro essa abertura que se faz no sentido de deslocar o problema do conteúdo, princípio de homogeneidade que leva à comparação quantitativa as culturas, para a questão da forma, que traz no seu bojo, associada à ruptura com a homogeneidade citada, um princípio de diversidade, de multiplicidade;
essas reflexões teóricas advém de problemas práticos de pesquisa e metodologia; não haveria uma forma mais apropriada para o tratamento de qualquer tema; a pesquisa, a dúvida, o problema conduzem à produção de um percurso, a elaboração de uma forma; a forma passa, assim, a operar com sua potência produtora, criadora e não mais como mero suporte do conteúdo; ela não só é parte da experiência de elaboração do trabalho, mas toda potência criadora do mesmo;
na contracorrente da afirmação positiva de metodologias gerais, que serviriam a qualquer tema a ser abordado, a antropologia oferece a seguinte fórmula: o tema determina e é determinado pela forma;
portanto o tema, a matéria que o pesquisador se propõe forjar determina sua forma, ou melhor, sua gama de possíveis, seu coeficiente de possibilidades formais que será articulado com a experiência prática de campo, com suas contingências, coincidência, novos aprendizados, novas fontes, novos temas, enfim, seus inúmeros feed backs;

a explicação e sua imagem a partir do princípio de implicação

o método proposto por este referencial não tem por fim a explicação, cujo pressuposto seria a neutralização da especificidade formal, especificidade formal que é a grande contribuição da antropologia, via estruturalismo, para o pensamento humanista;
visto que a explicação, fixada sobre os conteúdos, se definiria pela homogeneização da forma, deslocando sua atenção ao plano da heterogeneidade de conteúdos colocada, por exemplo, por uma metodologia centrada na história, em detrimento da heterogeneidade formal que afirma a multiplicidade e coloca em questão uma forma homogênea e universal, seja ela naturalizada com a história, ou artificial como modelos metodológicos formais (matemáticos, estatísticos etc);
o que se busca com esta reflexão é estabelecer duas imagens do pensamento para que se defina a prática que constitui, a prática em que consiste nosso atávico pensamento da explicação;
para tanto, pode-se contrapor à explicação o princípio de implicação que rege esta metodologia;
princípio de implicação devido ao trabalho estar situado no mesmo plano de sua realização, de ele não se retirar do plano empírico da pesquisa de campo para o campo transcendente das idéias de onde o descreve; e essa imagem do conhecimento que estamos problematizando;
instrumental

dada a apresentação do referencial teórico específico da área que nos conduz a este problema e sua pertinência metodológica dá-se prosseguimento à sua apresentação, explorando-se agora seu instrumental;
a articulação da etnofilosofia com a etnopsicologia já vem expressa há muito, pelo menos desde os texto de mauss; o primeiro instrumental que nos servirá para explorar a produção de conhecimento é a configuração discursiva do texto, o jogo de vozes que constitui o texto, elemento formal central na construção do sentido em antropologia;
a peculiaridade de nosso material deve oferecer bom material já não nos limitaremos exclusivamente à material etnológico teórico ou produção de conhecimento metateórico;
a maneira de ir além desses limites clássicos do estruturalismo, metateoria entre textos de antropólogos brancos, é a abordagem de um material que foge à estrutura clássica de enunciação da produção antropológica: o antropólogo escreve sobre o grupo, apresenta seus costumes e seus conhecimentos com seu olhar objetivo;
a problemática enunciativa na qual se inscreve nossa matéria problematiza já a princípio o primeiro instrumental que estamos abordando, o jogo das vozes, o regime enunciativo próprio ao tem abordada, definidor da forma que dará luz ao texto, à narrativa antropológica e etnográfica;

instrumental: o regime enunciativo

um dos campos que se abre imediatamente à exploração de instrumentais de um pensamento da imanência próprio a este princípio de implicação se refere às implicações dos regimes enunciativos no campo das ciências sociais;
a associação do estruturalismo à lingüística continua bastante fecunda visto que um dos instrumentais formais mais utilizados na área em questão são estudos de construção de complicados sistemas de enunciação;
esse instrumental vai desde o simples uso do discurso indireto até intrincados jogos de vozes que constituem a base de aplicação, de configuração, de constituição, de produção do princípio de implicação em determinados pensamentos;
temos aqui como obra de referência em nosso pensamento os araweté e eduardo viveiro de castro, em que o regime enunciativo do xamanismo araweté se dobra na superfície do texto, sendo problematizado e atualizado no próprio texto, constituindo uma experiência limite de implicação da teoria nativa na narrativa etnológica;
dessa forma, as possibilidades discursivas práticas não se restringem às reflexões em teoria do discurso; constituem o exercício de práticas discursivas, práticas formais que darão constituição a produtos distintos daqueles;
um exemplo são os trabalhos de autoria coletiva que problematizam a constituição formal da produção de conhecimento; o modelo de pensamento que aqui se problematiza opera com uma concepção de autoria cujo modelo é o da constituição psicológica individual, o modelo do sujeito ocidental forjado pela tradição racionalista de platão a descartes; é o modelo da explicação que situa o exercício da produção de conhecimento na dimensão transcendente, sem automatizar a implicação do conhecimento sobre o conhecido, criando, dessa forma, um abismo entre conhecimento e experiência;
portanto, redefinir a imagem ou o formato do narrador e da narrativa antropológica é um desafio que nos é proposto; ainda que possamos desacreditar da importância de tal problema, considerando-o mero preciosismo formal, é desta propriedade formal que advém a especificidade da antropologia e sua contribuição não só às demais disciplinas e ciências, como à própria matriz do pensamento ocidental;

o problema da produção de conhecimento

situando-se, assim, no campo da produção de conhecimentos, faz-se necessário ao pesquisador traçar sua linha, seu próprio método que dê conta de retratar o ângulo de sua observação ao problema selecionado;
a vantagem inicial de operar com o viés da produção de conhecimento, de abordar este problema, advém certamente de sua natureza simbólica;
além desta propriedade, que nos permite estar constantemente atento à natureza produtiva, constitutiva de nosso material, não correndo o risco de naturaliza-lo ou essencializa-lo, problematizar a produção de conhecimento nos fornece uma possibilidade metodológica interessante, visto que o material possibilita a dobra e o constante reflexo autopoiético de que resultará a pesquisa;
o que se quer dizer com isto: o tema da produção de conhecimento constitui a prática da própria pesquisa; esta natureza comum possibilita um jogo entre forma e conteúdo que deve resultar numa reflexão interessante;
não se distinguirá meramente forma e conteúdo, pelo contrário, a natureza do tema conduzirá a uma reflexão metateórica e prática sobre o problema da relação forma/conteúdo;
o material abordado possibilita portanto uma reflexão que se passa no plano do conteúdo, mas que em momento algum deixa de estar vinculada à problemática formal;
a própria análise do material recai sobre os procedimentos da metodologia empregada na produção do material em análise;
esta descrição dos métodos empregados na obra analisada torna a se dobrar sobre o próprio corpo do trabalho, abrindo caminho para uma reflexão sobre o método empregado na pesquisa em andamento e para pautar a método-logia que esta sendo constituída pela pesquisa em ação;

a biblioteca de babel e o problema político da antropologia

esse jogo da pesquisa dentro da pesquisa nos abre uma ampla gama de possibilidades criativas que conduzem a fecundas reflexões teóricas resultantes desta prática;
o metatexto nos desvincula da ilusão da objetividade própria do texto científico em sua narrativa realista e direta; reconhece aqui a natureza textual dos discursos, sua natureza simbólica, mesmo material de que é constituída a cultura;
esta propriedade caracteriza a linha de fuga própria à antropologia: a descoberta do significante nos lança no universo das produções simbólicas que se alimentam de produções simbólicas, problema que nos conduz ao cerne da antropologia: a questão política;
já é claro como o positivismo radical de há poucas décadas perdeu sua eficiência política com a intensificação do discurso democrático que pudemos ensaiar no fim do século da modernidade, que para nós foi o século as ditaduras;
ainda que esse positivismo radical tenha caído em desuso, o século das ditaduras foi um terreno propício ao seu enraizamento, e aqui está o nosso problema: nos é difícil reconhecer até onde vai as raízes dessa planta;
esse problema é que faz do campo em que nos situamos um terreno minado, no qual os discursos mais democráticos, que pregam a igualdade podem ser os mais populistas e reacionários a que já deu a luz;


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